Em sua 19ª edição, tradicional festival de música do Capão Redondo contou com mais de 40 atrações, entre elas Mano Brown e Thaíde
Nas periferias de todo o Brasil, o que o Estado mais leva é a violência e a desigualdade. Impossível negar isso quando a juventude negra (de 18 a 29 anos) totaliza 67% das mortes causadas pela Polícia Militar de São Paulo, de acordo com um estudo da socióloga e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Samira Bueno, divulgado em maio de 2018.
No entanto, boa parte da quebrada buscar mudar a realidade ao se inspirar no verso do rapper Sabotage: “favela pede paz, lazer e cultura”.
Recentemente, eu tive a oportunidade de ver isso na minha própria quebrada, o Capão Redondo, onde aconteceu o Festival 100% Favela.
Organizado pelo Instituto Periferia Ativa e Cúpula Negredo, a 19ª edição do festival contou com mais de 40 atrações, que se reuniram num grande palco montado na Favela do Godoy.
Entre os destaques do evento, estavam grandes nomes da cultura negra, como Mano Brown, Thaide, Cris SNJ, Ndee Naldinho, Sergio Vaz e Ferrez, e outro artistas que estão “no corre” por sua música.
O público também deu um show: mais de 10 mil pessoas passaram pela festa, que durou mais de 12 horas.
Um festival como 100% Favela é o que, de fato, a favela precisa. É um lugar onde se leva a festa, a dança e a poesia à periferia e onde se faz uma tribuna de denúncia e resistência às condições históricas e sociais que afligem os pretos e os pobres. Com tamanha sinergia e representatividade, me senti em casa.
Um dos mais ovacionados pelo público devido sua mensagem de esperança e luta, o poeta Sergio Vaz comentou o conceito do festival:
“O 100% Favela é uma festa de resistência e de cultura de periferia. É um encontro muito importante para que os jovens percebam que o verdadeiro rap anda continua na rua, tá na quebrada, tá na favela”
SOM DE PRETO E FAVELADO
Demorei para escrever esse artigo, pois tive dúvidas sobre como interpretar o festival. Pensei que uma reportagem formalíssima, talvez, não contemplaria a minha própria proposta sobre o que foi o 100% Favela.
Com algumas incertezas deixadas para trás, decidi, então, fazer uma matéria em primeira pessoa, não como uma maneira de promover apenas a minha sensação, mas para demonstrar para outros jovens negros e de periferia, que, assim como eu, sentem falta de mais iniciativas similares ao 100% Favela, sejam realizadas no Capão ou em outras quebradas.
Nos últimos anos, o rap teve uma ascensão no Brasil com artistas de novas gerações, como Djonga, Baco Exu do Blues, BK e Diomedes Chinaski, que esteve presente no festival.
Uma das consequências desse crescimento foi que o gênero chegou a outros palcos e a outros públicos, principalmente a uma classe média ligada a pautas progressistas.
Como fã e profissional de mídia inserido no universo da música, tenho a impressão que essa expansão também causou um afastamento, transformando-se numa ausência do rap e da cultura das favelas dentro da própria favela.
Compartilhei a ideia com o rapper Coruja BC1, um dos nomes proeminentes da cena nacional que também se apresentou no festival.
“É o acesso, né, meu mano? O rap chegou a outros lugares, mas não se pode fazer isso perdendo os nossos espaços que nos são por direito. É bom ver que a gente tá colocando os telhas no teto, mas é sempre bom cuidar dos nossos alicerces, porque senão a casa cai”
Falando em alicerces, lembro que recentemente conversei com um amigo que tinha ido, há poucos dias, num show do icônico 509-E, grupo formado por Dexter e Afro-X enquanto estavam em situação de cárcere na Casa de Detenção de São Paulo, popularmente conhecida como Carandiru. Ao som de “Sô Função” e “Saudades Mil”, ele percebeu que a maior parte da plateia era comporta por gente de quebrada.
Nesse sentido, o 100% Favela teve um grande significado para mim, pois o festival conseguiu o feito de reunir milhares de pessoas periféricas para dançar e cantar juntas – e isso é o mais importante. Creio que se a composição do público fosse outra, grande parte da graça teria se perdido.
FOTOGRAFIAS: Felipe Soares