Além do pincel: mulheres que rompem barreiras nas artes visuais

12/02/2025

Jovens artistas mulheres se valem das artes visuais para combater desigualdades e gerar oportunidades de carreira.

É provável que você já ouviu falar de Tarsila do Amaral, Lygia Clark e Anita Malfatti. No século passado, as três artistas desafiaram normas, criaram estéticas e deixaram um legado para a cultura brasileira. Tarsila criou um universo próprio, marcado pela brasilidade e força expressiva. Lygia desenvolveu obras que convidavam o público a interagir e experimentar a arte. Já Anita introduziu no Brasil as vanguardas europeias, abrindo caminho para a renovação da arte brasileira.

As obras de artistas brasileiras revelam uma diversidade de estilos e temas, que enriquece a história da arte nacional. No entanto, elas enfrentaram diversos desafios. Por exemplo, o acesso de mulheres à educação artística foi liberado somente após a Proclamação da República, em 1893, e se manteve restrito apenas a uma ínfima parcela de mulheres da alta burguesia, dos grandes centros urbanos da época, como Rio de Janeiro.  

Se para as artistas mulheres brancas houve obstáculos, para negras houve muito mais, e ainda há. Fundamentais na construção da identidade cultural do país, suas obras oferecem uma perspectiva única, baseada nas interseccionalidades de gênero, raça e classe, além de trazer questões como trabalho doméstico, maternidade e violências estruturais.

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Embora haja uma grande lista, cito duas artistas negras. Maria Auxiliadora (1935-1974) foi uma pintora autodidata que explorou aspectos da vida urbana e cotidiana, como festas populares e rituais de religiões afrobrasileiras. Já Rosana Paulino (1967) é artista plástica, curadora, doutora em artes visuais e especialista em gravura pelo London Print Studio. Na sua investigação, há destaques para os estereótipos e as representações da mulher negra, com obras em diferentes formatos, como esculturas e instalações.

LUARA MACARI: mercado de arte contemporânea impõe ritos de gênero (Foto: Kalinca Maki)

MENOS ESTERIÓTIPOS E MAIS CONEXÕES GENUÍNAS

Uma das críticas com foco em gênero na artes visuais tem a ver com disparidade entre a representação da mulher nas telas, muitas vezes objetificadas, e a participação delas nas galerias e museus enquanto criadoras. Uma forma de violência simbólica de gênero, tal desigualdade é gritante. Nos acervos da Pinacoteca e do Museu de Arte de São Paulo, os mais tradicionais museus da maior metrópole do Brasil, apenas 20% das obras são de mulheres.

Diante desse cenário, a paulistana Camila Alcântara (na foto de abertura desta matéria), 33 anos, está quebrando barreiras. Artista e curadora, ela é fundadora da Lateral Galeria. Nascida em 2020, a galeria contemporânea de arte é especializada em obras de artistas jovens e emergentes. Instalada numa casa aconchegante no bairro do Ipiranga, em São Paulo — o mesmo local onde foi declarada a independência do Brasil, em 1922 — um dos diferenciais da galeria é ter sido fundada e ser gerida por pessoas pretas. Além de Camila, é cofundador da Lateral Guilherme Marinho, 34, galerista e consultor para artistas visuais.

Em cinco anos, a Lateral Galeria já recebeu mais de 100 artistas, com obras que foram vendidas com preços entre R$ 600 e R$ 10.000. Com acervo rotativo, artistas mulheres costumam ocupar metade do espaço expositivo.

De acordo com Camila, a ideia de criar a galeria surgiu em 2019. Na época, ela havia realizado a sua primeira exposição, na cidade do Rio de Janeiro.

“Logo na minha primeira exposição, houve muito interesse por parte do público. Foi um divisor de águas para me entender como artista e dar bons significados para as interações entre obra e público.”

Camila Alcântara, fundadora da Lateral Galeria

Entusiasmada, Camila voltou a São Paulo focada na criação de uma galeria para artistas em início de carreira. A ideia era que, assim como ela tinha experimentado, jovens artistas pudessem se energizar por meio da interação do público com as artes visuais, de modo a ganhar mais confiança na carreira, fundamental para conseguir gerar renda com o fazer artístico.

NÃO POSSO SENTIR POR VOCÊ, MAS POSSO SENTIR COM VOCÊ, DE KARLA GIROTTO: obras da artista perpassam de desenhos até performances e grupos de discussão (Foto: divulgação)

RITOS DE GÊNERO E O CORPO NO MUNDO DAS ARTES

Uma artista que já expos na Lateral Galeria é Luara Macari, 25 anos. Sua jornada é marcada pela experimentação. Ela explora a relação entre o corpo e a arte, utilizando diversas técnicas e materiais, como impressão com argila e óleo sobre tela.

Suas criações envolvem um processo de percepção, trânsito e transposição, como as possibilidades do corpo, físico e social, no momento de criação. Luara afirma que existe muita pressão por ser uma artista mulher e negra. Ela faz um paralelo com reflexões de Tarsila do Amaral.

“Há uma pressão para que artistas mulheres sejam tanto musa quanto gênia. Tenho mil questões, como o tempo que levo para arrumar o meu cabelo e o quanto de dinheiro gasto com maquiagem e roupa para fazer a performance do mundo das artes.”

Luara Macari, artista plástica

Ela diz que as mulheres sofrem uma dicotomia no mercado das artes visuais. Há uma imposição de ritos de gênero, tipicamente capitalistas. Por exemplo, é necessário que elas se mostrem pessoas de personalidade forte, belas e sedutoras. “Porém, caso uma artista se envolva sexualmente com alguém, é bem provável que ela fique mal falada no meio artístico”, afirma Luara. “Precisamos estar nos espaços, mas ter a consciência de saber a hora de nos retirarmos.”

KARLLA GIROTTO: arte como catalisadora de debates (Foto: Kalinca Maki)

A paulistana Karlla Girotto, 48 anos, também já expos na Lateral Galeria. Ela defende a relevância do processo de criação artística frente ao resultado, a obra em si. Karlla, que também é professora e mantém um grupo de orientação para artistas, afirma que a arte é uma catalisadora de debates e transformação social.

Artista multilinguagem, ela explica que suas obras se apresentam, inicialmente, como um esqueleto. No processo criativo, ela busca elementos para dar musculatura a ideia inicial — novas camadas que permitirão que ela circula no mundo. Essa musculatura pode ser feita desde pinturas, desenhos e fotografias até performances, palestras e grupos de debate.

Ligada a psicologia clínica, Karlla enfatiza a importância das múltiplas linguagens para trabalhar questões profundas e complexas, numa busca por equilíbrio entre o mundo interior e o exterior.

FUTUROS ALMEJADOS POR ELAS E PARA ELAS

Durante uma roda de conversa, Camila, Luara e Karlla comentaram os desafios da profissão e o que esperam para o futuro. Numa abordagem profunda e pessoal, elas destacaram a arte como um espaço para explorar questões existenciais, sociais e políticas.

Começamos por um fato: o mercado de arte no Brasil é frequentemente associado a uma elite econômica. Essa percepção está ligada a diversos fatores, como o valor das obras de arte contemporânea inacessíveis para pessoas de baixa renda, a linguagem rebuscada utilizada no meio artístico e a concentração de galerias em bairros de alto poder aquisitivo.

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É importante destacar que a cidade de São Paulo é a mais rica da América Latina. Porém, por aqui, há uma enorme desigualdade de renda, com profundos reflexos sobre a maneira como os cidadãos trabalham, se alimentam e cuidam da saúde. Uma recente pesquisa da organização social Rede Nossa São Paulo, apontou que a expectativa de vida na cidade varia até 24 anos, a depender do bairro onde se mora.

Ao desafiar os normas de gênero, classe e raça, as artes visuais contribuem para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Para as mulheres continuarem rompendo barreiras, inclusive com geração de renda e autonomia por meio de carreira artística, é preciso agir em diversas frentes.

Elas precisam de visibilidade e reconhecimento no mercado; programas de capacitação, tanto artístico quanto de gestão de carreira; cotas e bolsas em instituições de ensino e recursos financeiros para liderar seus próprios projetos artísticos, individuais e coletivos.

A boa notícia é que há movimentos crescentes de diversidade e inclusão no mundo das artes. Desenvolvido pela brasileira Marina Bortoluzzi, diretora criativa e curadora, o Women on Walls é uma plataforma colaborativa, gratuita e mundial de aprendizagem, conexão e financiamento para o reconhecimento e crescimento profissional das mulheres nas artes visuais.

Por sua vez, o Vozes Agudas é um coletivo de mulheres e pessoas não binárias que atuam no círculo artístico paulistano. A organização disponibiliza prêmios, exposições e residências artísticas para artistas emergentes.

Fundado em 2010, o Pipa é um dos prêmios mais importantes da arte contemporânea brasileira. Realizado anualmente, com prêmios de até R$ 25 mil, tem reconhecido o trabalho de diversas artistas mulheres, como Beatriz Milhazes, Adriana Varejão e Rosana Paulino.

Numa história de persistência, talento e transformação, há um consenso quando o assunto é romper barreiras no mundo das artes: mais mulheres valorizadas, livres e donas de suas escolhas.

Fotografia de abertura: Kalinca Maki.

Quem escreveu

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Brenda Xavier

Jornalista pela Universidade Anhembi Morumbi, pós-graduada em Diretos Humanos pela PUC-SP e em Jornalismo Digital pela FAAP. Documentarista pela Academia Internacional de Cinema, tem experiência em jornalismo televisivo e produção de conteúdo digital.

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