Texto de Rafael Felix, fotógrafo, idealizador do projeto Menor de Quebrada e integrante da Emerge Mag desde 2019.
Você já se perguntou o que aconteceria se a sua infância tivesse sido diferente? Eu já. Morar em outro CEP, talvez até em outra cidade. Uma família e condições sociais diferentes, instruções e companhias outras. De fato, isso mudaria o jogo. A infância que vivenciamos não nos define por completo, mas tem um peso gigantesco em quem nos tornaremos na vida adulta.
Acima de tudo, isso é ciência. Um estudo da Universidade Federal de Pelotas, de 2022, mostrou que a pobreza na primeira infância afeta a saúde e a inteligência de crianças e adolescentes até a vida adulta. Já uma pesquisa publicada em dezembro de 2021, na revista científica European Child & Adolescent Psychiatry, e divulgada pela Agência FAPESP, mostrou uma associação entre um contexto de pobreza na infância e maior propensão a desenvolver transtornos mentais.
Falo de ciência, mas também de vivência. Nasci e fui criado no fundão da Zona Leste de São Paulo capital, entre os bairros Jardim Miragaia, Jardim dos Ypês e Jardim Campos. Assim como em qualquer outra periferia e favela, a perspectiva de futuro era muito limitada.
Dentro desse cenário e como resultado da minha jornada com a infância, se criou a obra Menor de Quebrada: um fotolivro que reúne registros feitos entre 2016 e 2023, que tentam captar as sutilezas da infância na periferia — selecionado no Festival Photothings e integrante da Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles (IMS).
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MENOR DE QUEBRADA
A reflexão sobre os caminhos que me trouxeram até aqui e sobre a influência das minhas experiências enquanto criança e adolescente — tanto familiares quanto externas (rua, amigos, escola, etc) — na vida adulta é constante. Mas foi a partir do nascimento do meu filho que me debrucei sobre a alegria de ser criança e, ao mesmo tempo, do pesadelo que pode ser essa fase, a depender das condições em que se está inserido.
Quando nasceu, Jordan (3) me fez retornar ao passado. Em síntese, uma injeção de nostalgia e simplicidade. Definitivamente foi muito louco olhar novamente o mundo com brilho nos olhos e enxergar, a partir da inocência de uma criança, uma imensidão de possibilidades.
“Mas que possibilidades seriam essas?”, o medo me fazia questionar. Tendo nascido em uma periferia de uma cidade marcada pela desigualdade (com índices de países mais ricos e dos países mais pobres ao mesmo tempo, em diferentes regiões — segundo um levantamento da Rede Nossa São Paulo, de 2023), em uma sociedade que negligencia e tem pouco para oferecer às nossas crianças.
Com o passar do tempo, essa reflexão se fez mais presente e foi se entrelaçando com vivências que só fizeram reforçar o sentimento. Jordan me inseriu na infância novamente, não só a dele, mas de cada “menor da quebrada” que eu “trombava” quando saia para fotografar.
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CONGELAR O TEMPO
Sempre me dei bem com crianças, especialmente pelo elo que se cria quando se está com uma câmera. O fascínio dos “menor” é quase que imediato quando se deparam com o aparato capaz de congelar o tempo. Sendo aceito dentro da realidade de cada criança que fotografo, observo com muito respeito e o distanciamento necessário para não ser invasivo e, ao mesmo tempo, não criar um olhar estrangeiro.
As risadas, as brincadeiras e os olhares foram surgindo sem ensaio ou pedido, acontecia e eu ia clicando. A realidade se mostrou despida. O contraste das brincadeiras e sorrisos, inseridos em ruas de terra, barracos, casas mal acabadas, entulho, asfalto, os “menor” descalços, etc; refletem o desafio dessas crianças de exercerem seu direito à infância, de se adaptarem ao concreto, ao barro, às pedras, à pobreza e a todos os obstáculos rústicos que existem nessa trajetória.
A JORNADA DO FOTOLIVRO
O livro Menor de Quebrada vem de uma gestação de aproximadamente sete anos. A infância e as crianças já eram objetos de fascínio antes mesmo de ser pai, por isso são temas comuns nas minhas fotografias. Com a chegada do Jordan, descobri que estava criando um projeto, algo maior do que o interesse por essa fase da vida.
No ano de 2022, o projeto foi selecionado em uma convocatória do Festival Photothings e contemplado com a execução de um fotolivro artesanal, um portfólio físico. Uma grande realização na minha caminhada e para a quebrada ser vista de uma forma não pejorativa, mas como potência.
O livro contou com curadoria e edição de Marly Porto, design de Alyssa Ohno, textos de Ronaldo ‘Big’ Sousa, Paulo Marcos de Mendonça Lima e Marly Porto e a encadernação manual do Yume Ateliê. Um time maravilhoso, do qual sou muito grato.
Uma vez com o projeto gráfico em mãos, pude correr atrás e investir em uma pequena tiragem de sete exemplares. Um desses inscrevi na convocatória de Fotolivros da Revista Zum/IMS 2023 e o Menor de Quebrada foi um dos selecionados. Atualmente, o fotolivro integra a Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles, uma das organizações mais importantes de fotografia na América Latina.
Um marco de extrema relevância, de fato. Mas o corre não para. O projeto, além de fotolivro, também resultou em um fotofilme que está disponível no Youtube:
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O FUTURO
O futuro é incerto, mas o desejo é conseguir publicar o Menor de Quebrada em formato comercial, que possibilita (em termos financeiros) uma tiragem maior e doações para as crianças das quebradas que visitei. O último ponto é de extrema relevância: acredito no ciclo e, nesse sentido, tudo que nós produzimos na “perifa”, deve ser acessado por quem a constrói diariamente. Por enquanto, o livro está esgotado, mas segue disponível na Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles, na Avenida Paulista, 2424, em São Paulo/SP.
Fotos: Rafael Felix
Edição: Teresa Cristina