Reportagem de Marcelo Lino.
Grupo étnico milenar que não possui um Estado reconhecimento, os curdos somam uma população de aproximadamente 30 milhões, espalhada uma região montanhosa que abrange cinco países: Turquia, Iraque, Síria, Irã e Armênia.
Nos últimos anos, eles tiveram um importante papel na Guerra Civil Síria (2011-2024). Enquanto o mundo via atônito o crescimento do grupo terrorista Estado Islâmico e combates entre diferentes forças, nacionais e estrangeiras, os curdos lançaram a Revolução de Rojava. Em 2012, eles declararam a autonomia de três áreas da Síria em relação ao governo central, do até então presidente era Bashar al-Assad.
Talvez, a imagem mais icônica da revolução foi as das Unidades de Defesa das Mulheres (YPJ), uma força militar curda exclusivamente feminina. Em 2017, era estimado que o grupo contava com 24 mil mulheres.
Quase 10 anos depois, a revolução que prega uma sociedade democrática, ecológica e com protagonismo feminino segue viva.
Quem acompanha tudo de perto é a brasileira Rojda Dandara — o nome não é de batismo, mas sim dado por integrantes da revolução em alusão a líder quilombola do Brasil colonial.
Natural da capital paulista, a atriz de 40 anos vive desde 2022 em Rojava. Oficialmente, o território chama Administração Autônoma do Norte e Leste da Síria. Embora seja difícil cravar um número, a ONU estima que 4,6 milhões de pessoas vivem na região.
Numa entrevista exclusiva, conduzida pelo repórter Marcelo Lino, Rojda explica as origens da revolução, o papel das mulheres e como funciona uma sociedade anticapitalista auto-organizada.
A proeza de Rojda não é falar como uma artista brasileira disposta a lutar numa revolução, e sim demonstrar a profundidade e complexidade dessa experiência singular e transformadora.

EMERGE MAG: o que te motivou a ir para o Curdistão?
Rojda Dandara: Em 2017, comecei a estudar sobre mulheres russas que lutaram na Segunda Guerra Mundial. Como atriz, dançarina e profissional do teatro, levava temas de violência contra a mulher para os palcos. Um amigo me perguntou por que eu não levava as histórias das mulheres curdas, que até então eu não conhecia. Ao pesquisar, li uma reportagem com fotos de filas de mulheres com uniforme de guerrilha caminhando nas montanhas. Fiquei chocada! Elas combatiam o Estado Islâmico em um território chamado Rojava, no nordeste da Síria. Nesse território, que não é reconhecido mundialmente, viviam pessoas de várias etnias: curdas, árabes, chechenas, armênias, turcomanas e assírias, entre outras. Elas se auto-organizavam, de forma autônoma. Com as revoltas da Primavera Árabe e a Guerra Civil na Síria, que deixou o regime político do então presidente Bashar al-Assad enfraquecido, a população de Rojava iniciou a revolução em 2012. Porém, no ano seguinte, o Estado Islâmico ocupou o território numa guerra brutal, com violência extrema.
Entre a guerra, as mulheres combatentes e o sistema político de Rojava, o Confederalismo Democrático, o que mais te interessou?
No início, foram as mulheres na frente de combate. Depois, me encantei mesmo com a auto-organização do povo. Nas últimas décadas, foi criado na região uma democracia radical para defender a terra, as culturas e a língua curda, que inclusive era proibida pela Turquia na maior parte do século 20. A auto-organização e não dependência de um Estado Nação possui um tripé: a ecologia, a democracia participativa, em que todas as etnias têm representatividade nos processos decisórios, e a força da mulher.
Entre os curdos, há a jineologia (a ciência da mulher), onde a história e a ciência são contadas do ponto de vista feminino. Tudo isso é muito, muito, interessante.
Rojda Dandara.

É uma liberdade bem diferente do que a pregada no ocidente. Como se vive isso no dia a dia?
Ser livre não é fazer o que eu quero do jeito que eu quero — isso é individualismo. No meu caso, ser livre é conseguir construir internamente uma libertação de todos os valores capitalistas que nos escravizam. É muito interessante chegar e se desconstruir da lógica capitalista da competição e do individualismo. Eu nunca soube viver em comuna, e o primeiro passo é aprender a viver. Você dorme num quarto com 20 pessoas. Todos se organizam para cozinhar, lavar, limpar, trabalhar e se autodefender. Todos os dias, nos reuníamos para nos autocriticar e criticar os colegas. Os curdos revolucionários acreditam que a evolução humana só acontece com críticas. Se você não aceita a crítica, eles dizem “a guarde no bolso, pode será útil um dia”. Isso me fez crescer muito, vindo de um país onde não aceitamos críticas.
Como é viver numa região de conflito?
A guerra contra o Estado Islâmico acabou em 2019, quando os curdos e outras etnias conseguiram expulsá-lo. Hoje, há cerca de 70 mil ex-membros do Estado Islâmico em penitenciárias ou campos de detenção, e a segurança é feita pelas forças de autodefesa de Rojava. Mas a guerra contra a Turquia nunca parou. Desde 2018, a Turquia realiza uma grande ofensiva, com a invasão de cidades sírias como Afrin e Sherba. A ofensiva obrigou os curdos a se refugiarem dentro do próprio território. É um colonialismo igualzinho ao que acontece na Palestina.
Até poucos meses atrás, via bombardeios e explosões de drones diariamente. Tínhamos protocolos de segurança, como não viajar nas estradas durante o dia, porque jogavam drones na população.
Rojda Dandara.
Já me abriguei em um túnel subterrâneo. Vi a maior usina de gás de Rojava ser bombardeada por dois dias seguidos. Ficamos sem luz no inverno. Já fiquei presa dentro de uma sala por duas horas, com 40 alunos, por causa de um drone vigiando do lado de fora. Além disso, a Turquia usa bombas químicas. Vejo que tanto a Turquia quanto Israel são estados genocidas fascistas que cometem crimes de guerra. E você se pergunta: “como o ser humano pode chegar a esse lugar?”.

Nessa ausência de Estado, como funciona a economia e a polícia, por exemplo?
A Autoadministração de Rojava é anticapitalista, mas vai além disso. Economicamente, se organiza em cooperativas, onde a terra não é de ninguém, mas de todos. Produzem juntos, e a autoadministração compra tudo para garantir a dignidade da população. Tem também os suks, que são pequenas vendinhas, mas a autoadministração as organiza para não ter variação de preços e para que nenhum comércio se sobressaia. A ideia é não existir disparidade de renda e divisão entre ricos e pobres, e sim que todo pertença a mesma classe social. A polícia são as forças populares das cidades, chamadas Aysaish. Elas não podem usar a força contra a população, a última instância é sempre a palavra. A ideia é que todos façam o curso de Aysaish para se inteirar das leis, direitos e deveres, até um dia essa força popular não seja mais necessária.
Como foi o processo de desconstrução sendo uma mulher brasileira?
Por seis meses, fui a única mulher da América do Sul junto com mulheres do norte europeu. Foi dificílimo. Elas com uma mentalidade colonizadora e eu com uma mentalidade de mulher colonizada. Uma curda me disse: “elas te colonizam e você aceita”. Depois de um processo gigante de críticas, essa situação ficou clara, e isso nos fez grandes amigas. No começo, eu estava sempre limpando enquanto elas trabalhavam no computador, e elas reclamavam que não estava bem limpo. Eu não dominava a língua curda, elas já vinham com educação do movimento curdo da Europa. Eu me sentia inferior, pois sabia muito pouco da cultura e da revolução. Quando os curdos perceberam, me deram a responsabilidade de comandar a cozinha. Ninguém acreditava que eu era capaz, mas eu abracei. Comecei a organizar a comida, a logística, a adaptar sabores e a organizar o espaço. Ali, elas começaram a me respeitar.
Quem é Abdullah Öcalan, cofundador do Partido dos Trabalhadores do Curdistão e do movimento Confederalismo Democrático?
Abdullah Öcalan é uma figura fundamental. Na década de 60, ele passou percebeu que os curdos precisavam resistir e defender a sua história e as tradições. Ele foi batendo de porta em porta, conversando com as famílias curdas e dizendo “nós somos curdos, não somos turcos ou sírios ou iraquianos. Temos nossa própria língua e temos que nos autodefender. Rojava precisa ser é armada. Nenhum estado vai nos defender. Pelo contrário, eles nos matam”. Em 1978, ele ajudou a fundar o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, o PPK, que organizou uma luta armada contra a Turquia a partir de 1984. Ele se tornou um símbolo de resistência. Desde 1999, está preso na Turquia e é considerado um dos maiores inimigos do estado turco. Na época, foi condenado à forca, mas mais de 500 curdos atearam fogo no próprio corpo em protesto. A Turquia percebeu que não podia enforcá-lo e o deixou em solitária, dando-lhe direito à defesa. Ele usou esse direito para explicar o Confederalismo Democrático. O povo se apropriou dessa ideia e, em 2013, iniciou o projeto político em Rojava. A Turquia agora está permitindo que ele se comunique, e o povo faz de tudo para ouvi-lo. Ele dedicou a vida toda ao pensamento. Inclusive, afirma que que se o Confederalismo Democrático não se espalhasse entre o povo do Oriente Médio, entraríamos na Terceira Guerra Mundial. Para ele, já vivemos o conflito.

Voltando ao Brasil, como é a sua vida hoje e como aplica essa filosofia aqui?
Volto esporadicamente ao Brasil, mas é muito difícil estar aqui e trabalhar. Para todos nós, internacionalistas que voltamos, é um choque. Temos as relações humanas como base. Lá, a hierarquia é de responsabilidade, não de poder, e eles tentam dissolver o poder o tempo todo. Aqui, quando tento colocar isso em prática, me sinto sozinha. Meu trabalho tem sido conectar as ideias dos povos originários do Oriente Médio com as ideias dos povos originários do Brasil.
Quero criar conexões com movimentos políticos, como o Movimento Sem Terra, com os saberes indígenas, os quilombolas e de outros que resistem e se organizam sem depender de um estado.
Rojda Dandara.
Porque o que pode acontecer com essa conexão é um aprender com o outro, ninguém impondo nada. Se o inimigo se organizou tão bem internacionalmente, o internacionalismo é fundamental para a gente resistir. Nenhum país vai se salvar sozinho com a Terceira Guerra Mundial.
Foto de abertura: Hunergeh Welat.







