Numa sociedade capitalista, existem diferentes formas de invisibilizar e marginalizar grupos sociais. Negar o acesso ao emprego é uma das principais. Essa tática perversa já atingiu – e ainda atinge – mulheres, negros, pessoas periféricas e, especialmente, pessoas trans.
De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), é estimado que 90% das pessoas trans recorrem à prostituição em algum momento da vida para sobreviver (comprar um prato de comida mesmo, sabe?).
E é exatamente para oferecer alternativas de geração de renda para pessoas transgêneros, travestis e transexuais que existe o Trans Sol. Fundado em 2016, o coletivo tem a missão de promover a capacitação e inclusão delas no mercado de trabalho.
A ideia nasceu de Priscila Nunes, fotógrafa, mulher cisgênero, que já foi casada com uma pessoa trans e é ex-proprietária de um bar LGBTQI+, e Mavica Morales Galarce, também cisgênero, chilena e anarquista, que tem um filho homoafetivo. As duas se conheceram no ativismo e militância.
Além das vivências similares na causa, elas compartilhavam também habilidades manuais. Priscila faz bonecas e Mavica manja do crochê.
Daí a ideia de ensinar artesanato para a população T.
Também participa do coletivo Otávio Matias, formado em relações públicas que atuou como figurinista para teatro, e Renato Raga, professor de moda.
Foi Otávio que inseriu o curso de corte e costura no Trans Sol. Hoje, ele supervisiona as alunas, ao lado de Roberta Rodrigues, mulher trans e ex-aluna que se tornou professora no projeto. Ela fala da satisfação:
“O Coletivo é um círculo de mulheres, que encontram ali um espaço de fala e escuta, onde, além de costurarem, também alinhavam as suas histórias, desabafando suas dores e alegrias”
Roberta participa do coletivo desde 2016. Ela afirma que antes de fazer os cursos, se sentia vulnerável e excluída na sociedade. Três anos depois, sua existência é repleta de orgulho com o seu trabalho de costureira e criação de moda. Ela também está mais confortável em estabelecer relações sociais e deixou a timidez de lado.
“Pretendo continuar trabalhando para alcançar meus objetivos”, diz ela. “Para mim, o topo é o limite.”
SAIBA MAIS: A cultura travesti pela voz de Malka
MULHERES DE NEGÓCIO
Cerca de 40 mulheres já realizaram algum tipo de curso no Trans Sol. Atualmente, o coletivo possui seis alunas.
A maioria tem entre 24 e 30 anos (já houve aluna de 56 anos), vindas do Nordeste, com baixo grau de escolaridade e que trabalham como garotas de programa. Elas buscam uma segunda fonte de renda e uma oportunidade de trabalho formal por meio da costura.
Durante o curso, as alunas costumam realizar pequenos reparos de roupas para amigos e vizinhos, além de desenvolver e vender bonecas.
Como a intenção do coletivo é fazer com que elas criem seus próprios trabalhos sem depender de terceiros, também há aulas de vendas e, no segundo módulo, aulas de gestão financeira.
O empreendedorismo também é semeado. Duas ex-alunas, por exemplo, possuem seus próprios negócios, sendo que uma tem um ateliê de reformas de roupas e outra tem uma marca de confecção de bolsas. Uma terceira quer se especializar em artigos para pets para também abrir sua empresa.
Após finalizar os módulos, a taxa de alunas que conseguem entrar no mercado de trabalho formal ainda é baixa, assim, elas buscam trabalhar por conta própria.
LEIA TAMBÉM: A naturalidade da cineasta Julia Katharine
DESAFIOS DA EMPREGABILIDADE
Quando se fala em empregabilidade trans, grande parte dos empregadores ainda usa como critério de contratação a passabilidade, conceito que designa quando uma pessoa trans é socialmente lida como cisgênero.
Entre parte da população trans, a passibilidade é uma forma de buscar segurança, uma vez que, numa sociedade preconceituosa, uma pessoa parecer cis fará com que ela corra menos risco de sofrer violência. Bianca Vanzo comenta a situação:
“Mesmo mulheres com passabilidade encontram dificuldade de colocação profissional. Muitas vezes o empregador não é preconceituoso, mas seus clientes sim – e são eles que dão dinheiro para manter o negócio. Então, a culpa não é só do empregador, mas da sociedade em geral que ainda perpetua preconceitos”
Para criar rupturas no Cistema (com C mesmo, fazendo referência ao padrão social, político e econômico baseado na cisgeneridade, que oprime as dissidências), o Trans Sol desenvolve ações de sensibilização com a comunidade.
Atualmente instalado no centro de acolhimento LGBT+ Casa 1, no bairro da Liberdade, em São Paulo, o coletivo atende moradores da região, como idosas, crianças e homens de meia idade.
“Os clientes entram aqui e sabem que serão atendidos por travestis”, diz Bianca. “E eles enxergam elas como profissionais que devolverão suas peças de roupas reparadas – isso é uma forma de ampliar o olhar e quebrar preconceitos.”
O coletivo também participa de feiras que reúnem público variado. Há também as parcerias.
Na última edição do Jardim Secreto, feira itinerante de pequenas marcas e sustentabilidade, o Trans Sol ganhou da confecção Gule Gule tecidos com estampas exclusivas para confeccionar quimonos, que foram vendidos no evento.
A parceria também serviu para modificar a visão sobre mulheres trans e travestis no Bairro do Bom Retiro, onde a Gule Gule está instalada, mostrando positivamente a criatividade do trabalho delas.
Outra parceria foi com a artista plástica Cristina Bottallo, que desenvolve bonecas. As alunas do TransSol confeccionaram as roupas das bonecas da artista, que foram vendidas no evento Blythecon, na edição sediada no Rio de Janeiro. A ação foi uma das primeiras parcerias, Priscila recorda:
“Além da geração de receita, outro ponto positivo da parceria foi que as alunas, algumas pela primeira vez, tiveram contatos com bonecas, algo que elas sempre quiseram, mas nunca puderem ter quando crianças. Foi como se elas tivessem alcançado a permissão para brincar”
Geralmente, as parcerias são feitas com pequenas marcas, com proprietários que entendem a diversidade também como um viés social – e não apenas mercadológico. Mas já houve casos de propostas que tendiam para a exploração de mão de obra. Essas foram prontamente recusadas.
DIVERSIDADE NO QUADRO DE FUNCIONÁRIOS
Nos últimos anos, cresceu o número de empresas com programas de contratação voltados às pessoas trans.
Em 2018, a PepsiCo, dona da marca Doritos, contratou dois profissionais que passaram pelos cursos da Casa 1.
Também no ano passado, a rede de varejo C&A abriu mil vagas de trabalho temporárias para travestis e transexuais em mais de 270 lojas.
Desde 2014, a empresa de call center Atento permite o uso de nome social. Dos 78 mil funcionários da empresa, 1.300 optaram por ele.
As vagas da C&A e da Atento foram viabilizadas pela Transempregos, plataforma de banco de talentos e vagas de trabalho destinadas às pessoas trans.
O site possui parceria com mais de 100 empresas e cerca de 40% dos currículos cadastrados são de pessoas com formação superior e outros 30% são de nível técnico.
Há também grandes empresas, como P&G, Ambev e IBM, que possuem comitês formados por empregados LGBTQI+, que debatem questões dessa parcela de funcionários.
Em São Paulo, há o Programa Transcidadania, da prefeitura, que oferece atividades de cidadania e colocação profissional para a população LGBTQI+ em situação de vulnerabilidade.
De acordo com informações no site da prefeitura, a carga horária dos cursos é de seis horas diárias, com auxílio mensal de R$ 1.047,90 para as participantes.
Todos esses programas podem mudar a cultura hostil do mercado de trabalho. Segundo uma pesquisa do instituto Center for Talent Innovation, que entrevistou 12.200 profissionais ao redor do mundo, 61% dos LGBT+ brasileiros escondem sua identidade de gênero ou sua sexualidade no trabalho.
Outra preocupação é com a evasão escolar de jovens trans que sofrem violências nas escolas.
Ao longo da jornada do Trans sol, a maior mudança percebida pelos fundadores foi o crescimento da confiança e a autoestima das alunas. O gosto delas pela leitura também aflorou, principalmente em relação aos livros de moda.
“Não queremos formar mão de obra”, diz Priscila. “Queremos criar mentes pensantes, que saibam desenvolver ideias, que sejam criativas e tenham capacidade para assumir e lutar por seus ideais.
Agora, o coletivo pretende ter uma sede própria para aumentar a grade de cursos, com aulas ministradas por trans para pessoas cis. Também há a intenção de criar uma marca de roupa e produtos têxteis.
E assim elas vão trabalhando com suas falas, ações e mão na massa, ou melhor, nas máquinas de costura.
SERVIÇO
Atualmente, o Coletivo Trans Sol é composto por Priscila Nunes, Otávio Matias, Renato Raga, Roberta Rodrigues, Natalie Rodrigues, Michelli Charme, Lilithy Valentine, Kelly Coelho, Bianca Vanzo e Patrícia Oliver.
Sua sede está localizada na Casa 1, na Rua Condessa de São Joaquim, 277. Para se tornar um parceiro, entre em contato por meio do Instagram ou Facebook.
NOTA DO EDITOR: a Emerge Mag respeita a escolha individual das profissionais do sexo. Mas, quando a escolha pode ser uma imposição social de um projeto institucional de marginalização de corpos, acreditamos que é pertinente debater o tema ouvindo as pessoas envolvidas com o intuito de informar nossos leitores. Estamos abertos a devolutivas sobre o tema. <3
IMAGENS: João Grijo, com edição de Rogério Henrique.