A pandemia de Covid-19 contabilizou mais de 38 milhões de casos e 712 mil mortes no Brasil. Em retrospecto, não podemos esquecer de que, mais que números, são milhares de vidas que se perderam durante a maior crise sanitária da história atual.
O panorama tem levantado nas redes sociais a discussão sobre o conceito de necropolítica, agora, não somente dentro do contexto da pandemia, mas também abrangendo críticas às políticas de segurança pública e a atuação das polícias. Um exemplo é o caso da chacina na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro.
A necropolítica descreve como o Estado define como e quem dever morrer dentro nas sociedades capitalistas. Essa política da morte se vale de discursos que reforçam estereótipos, segregações e genocídios deliberados. Dessa forma, o Estado – e o mercado – administra a morte ao definir, por exemplo, quais territórios e população terão acesso a serviços de saúde de qualidade e quais terão operações policiais violentas.
ORIGEM
O conceito foi cunhado pelo camaronês Achille Mbembe (na foto que abre esta matéria). Filósofo, teórico político, professor universitário e especialista em estudos da descolonização, da negritude e escravidão, Mbembe é autor do ensaio “Necropolítica”, publicado em 2003.
O trabalho de Mbembe foi inspirado por grandes nomes do pensamento crítico, como Franz Fanon, Sigmund Freud e Michel Foucault. Nos estudos deste último, encontramos os termos “biopolítica” e “biopoder”, onde o francês aborda algumas formas de controle que disciplinam os corpos das pessoas. De acordo com Foucault, esses controles aparecem nos padrões de beleza (majoritariamente branco e eurocêntrico) e em detalhes do cotidiano, como a forma que os indivíduos devem se comportar no trabalho
Levando essa linha conceitual em consideração, Mbembe argumenta que o controle social, disfarçado como “ordem e progresso”, por exemplo, pode ser cruel ao determinar como as pessoas vão viver e vão morrer. Assim, ele propõe uma noção de necropolítica e de necropoder para dar mostrar as maneiras pelas quais armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte”, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos-vivos”.
Para demonstrar a questão, o autor cita a relação entre Metrópole e Colônia ao longo da história. Um caso analisado é como os colonizadores europeus tomaram o continente africano – um processo que teve a morte como parte do processo. Mbembe diz que nunca foi interesse da metrópole oferecer para a colônia o mesmo tratamento ofertado aos europeus – afinal, eles (os brancos) eram seres superiores e civilizados. Isso permitiu que os colonizadores cometessem diversas atrocidades e lucrassem com a exploração negra.
No século XVIII, o tráfico negreiro chegou a representar metade do lucro das exportações dos países europeus, sendo que a Inglaterra foi responsável pelo transporte de 50% dos africanos escravizados. Essa riqueza foi usada como combustível para a Revolução Industrial e fortalecimento do Império Britânico, que em seu auge foi o maior império da história e dominava cerca de 458 milhões de pessoas em 1920.
“O sistema capitalista é baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver e de morrer […] Esse sistema sempre operou com a ideia de que alguém vale mais que os outros. Quem não tem valor, pode ser descartado”
A CIDADE DO COLONIZADO
No livro Necropolítica, Mbembe faz referência ao termo “cidade do colonizado” para descrever as regiões, bairros e comunidades que carregam estereótipos negativos e que, por consequência, perpetuam imagens das pessoas que vivem lá, como “marginais” e “não-civilizadas”.
O termo também aparece em obras de Fanon, que diz: “a cidade do colonizado, ou pelo menos a cidade indígena, a cidade negra, a medina, a reserva, é um lugar povoado de homens mal afamados. Aí se nasce, não importa onde, não importa de quê. É um mundo sem intervalos, onde homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as outras.”
Voltando ao Brasil, o direito à vida é inviolável e está firmado como uma garantia fundamental prevista no artigo 5º da Constituição Federal. No entanto, num país marcado por profundos contrastes, o que está em evidência é a falha do Estado em garantir saúde e segurança com equidade para a população. E, por aqui, o projeto de necropolítica segue firme e ganhou mais um elemento público. Há poucos dias, foi revelado que o Governo Federal mantém um orçamento paralelo que destinou R$ 3 bilhões em emendas para deputados que integram a base do Governo no Congresso; parte do valor foi gasta para compra de tratores superfaturados. Enquanto isso, falta vacina e auxílio-emergencial aos mais pobres.
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