*Esta reportagem é baseada em estudos científicos e traz o relato da repórter Nu Abe, que faz o tratamento com microdoses. Todo conteúdo tem caráter informativo e visa aumentar a reflexão crítica sobre o tema.
Minha história com psicodélicos é de longa data. Desde que me conheço por “jovem”, as substâncias alteradoras de consciência me chamam e eu vou atrás. Pude conhecer inenarráveis facetas da vida e do universo por meio da perspectiva dessas plantas, fungos e substâncias que ajudaram a moldar minha maneira de ser e de pensar.
Lembro de um dia em que uma pessoa amiga, Sue, me agradeceu por ter-lhe salvado de uma depressão profunda com aquele LSD que dei pra ile, que tomou em pequenas doses. A partir daí, comecei a me interessar por essa prática. As microdoses consistem no uso de uma dosagem bastante reduzida (cerca de 5 a 10% de uma dose regular) ingeridas em dias alternados para melhorar a cognição e a criatividade.
O tratamento com microdoses de psicodélicos, como LSD, cogumelo, ayahuasca e MDMA, tem sido testado tanto para dar um upgrade em cérebros considerados “normais”, quanto em tratamentos de depressão, ansiedade, TOC, TDAH e pacientes com doenças terminais. O psicólogo James Fadiman, autor do livro The Psychedelic Explorer’s Guide (ainda sem tradução em português), é uma das principais referências no assunto e estuda há décadas os benefícios das microdoses. De acordo com ele, as microdoses pode ser uma alternativa aos medicamentos convencionais, uma vez que nos auxiliam por meio da expansão dos estímulos e não pela inibição.
As microdoses de LSD começaram a ganhar popularidade quando profissionais do Vale do Silício, grande polo tecnológico do mundo, começaram a fazer uso e notar uma melhora significativa na produtividade. Problemáticas à parte sobre essa lógica capitalista de nos transformar em máquinas de produzir, resolvi experimentar, pois por bem ou por mal, eu também estava querendo melhorar meu desempenho.
A MAGIA ESTÁ NO AR
Comecei no fim de 2019 em um momento turbulento da minha vida pessoal, quando buscava alívio para a tristeza profunda que sentia e auxílio na realização das tarefas básicas do dia a dia. Logo de cara, tive uma sensação bastante prazerosa de estar vivo e em conexão com todas as coisas. Os dias brilhavam mais, eu não parecia mais ser só eu, mas um emaranhado de ondas que se encontravam e dissolviam em outras ondas. A sensação batia de modo sutil, diferente de quando ingerimos uma dose regular que nos leva pra outras dimensões.
Num segundo momento, senti um enorme interesse nos livros que estavam há anos empoeirados nas prateleiras de casa. Abri um, devorei até o fim sem conseguir parar; peguei outro e mais outro, e em dois meses de microdoses li doze livros. Comecei com clássicos, como Isaac Azimov, Huxley, Neil Gaiman, Stephen King e Italo Calvino, e fui expandindo pra outras referências não brancas-masculino-cêntricas, como Conceição Evaristo e Ana Maria Gonçalves. Eu, que não conseguia me concentrar em uma página sequer, que não lia um livro inteiro há anos, estava agora me apaixonando pela leitura, numa linda relação recíproca que me tirou de muitas angústias. Essa foi a minha primeira temporada – Fadiman recomenda, além de alternar os dias, dar pausas no tratamento, evitando o uso contínuo por tempo prolongado.
Mais duas temporadas com efeitos distintos aconteceram. Em algum momento de insustentável quarentena do ser, recorri novamente aos papeizinhos mágicos. Enquanto a primeira temporada despertou meu devir nerd, a segunda foi a mais criativa e lúdica, me diverti bastante em meio ao caos. Mas com o excesso de inspiração, também bateu euforia e ansiedade. Em vários momentos o fluxo de energia que tomava conta do meu ser era tanto que eu precisava criar alguma coisa pra não entrar na bad, e o corpo ia naturalmente pegando o que tivesse por perto e inventando algo. O resultado dessas criações foram desde coisas bem aleatórias, como dançar É o Tchan em contraluz (o que me rendeu uma expulsão permanente do tiktok por motivos de nude #passade) até atividades mais profundas, como vestir o kimono do meu falecido avô e dançar a sutileza do espírito que deixa o corpo. Também fiz podcasts, teatros improvisados no Zoom e performances. Olhando em retrospectiva, as coisas que criei nos dias de microdose são as que mais gosto. Mas também saquei que eu andava bastante sensível e, se pá, era uma boa reduzir a dosagem nas próximas vezes.
Na terceira temporada bateu a pira do trabalho, que era o que eu mais almejava. Meu foco aumentou bastante e produzi coisas para além de criações espontâneas. Consegui ser mais um adulto bem resolvido dedicado aos meu corres do que uma criança brincando. Mas, ainda assim, teve um dia ou outro que bateu demais e toda a lista de tarefas foi por água abaixo. Minha sorte é que eu trabalho com artes, meu revés é que tenho prazos.
ACHO QUE NÃO FOI UMA MICRODOSE
Desde que comecei a dançar butô (vide matéria), transformo energia em movimento corporal. Em um típico dia de “acho que não foi uma microdose”, conectei com uma máscara de macaco e fiquei sentindo minha ancestralidade primata, meio bípede meio quadrúpede. Ao mesmo tempo, eu também era um humano com chapéu de cowboy, tomando banho de mangueira. Era tudo muito maravilhoso e terrível, formigas me picavam e eu sentia minha pele inteira sendo espetada por agulhas, enquanto a água me refrescava perfeitamente – e eu não sabia se estava em um sonho ou um pesadelo. Tudo era deslumbrante e absurdo, meus olhos marejavam em ver na acerola iluminada pelo sol a grande obra do universo, eu me arrepiava observando uma folhinha ou o emaranhado de fios de computador e celular que eu não conseguia tirar o nó. O mundo real era absolutamente fantástico e caótico, e eu estava à deriva me deixando fluir com a dança do cosmos.
“Uma boa maneira de tentar entender um sistema complexo é perturbá-lo e ver o que acontece”
Michael Pollan, em Como Mudar a Sua Mente.
O QUE ACONTECE NO CÉREBRO
Estudos com ressonância magnética observaram que, sob o efeito de psicodélicos, há uma redução de atividade em uma área do cérebro chamada Rede de Modo Padrão (DMN, do inglês Default Mode Network), que corresponde a um conjunto de estruturas cerebrais interconectadas responsável pelo nosso modo ordinário-cotidiano de consciência. Em paralelo, há redução do fluxo de sangue e consumo de oxigênio nessa região, que é a base neurológica do “eu”, o que desencadeia sentimentos como a dissolução do ego. Padrões semelhantes de atividade cerebral podem ser observados em pessoas com experiência em meditação e em crianças. A psicóloga e pesquisadora Alison Gopnik, da Universidade da Califórnia, constatou a similaridade entre o modo que as crianças pequenas enxergam o mundo e adultos sob o efeito de psicodélicos. Elas bagunçam o cérebro, fazendo com que áreas que não se encontram habitualmente se conheçam, troquem ideias, de modo que essas outras áreas se fortaleçam e deixem de ser totalmente dominadas por poucas redes hegemônicas, melhorando assim a plasticidade cerebral – é isso que chamo de fortalecimento de rede <3.
“Você é tão velho quanto a última vez que mudou de ideia”
Thimoty Leary, neurocientista apelidado de “o homem mais perigoso da América” por defender o uso de psicodélicos.
UM POUCO DE DROGA, UM POUCO DE SALADA
Agora estou na quarta temporada de experimento, e resolvi testar o uso mais certinho e bem controlado. Seguindo instruções de uso volumétrico, diluí o papelzinho de LSD em vodka e, com uma seringa, retiro e tomo 10 ml, o que corresponde a 10 microgramas. Se eu pudesse me dar um conselho retrógrado, diria pra diluir em uma quantidade menor de álcool, pois nem eu nem meu estômago achamos agradável acordar e tomar um bocado de vodka, ainda mais com gosto de pepino (guardei em um vidro de conserva de pepino, também não recomendo).
Tenho pesquisado bastante sobre, pois gosto de uma aventura pé no chão. Entendo os riscos de um experimento sem acompanhamento e com relativamente poucos estudos (crianças, não tentem isso em casa), mas também percebo os ganhos. Minha relação com os livros segue a melhor da vida, sinto que meu aprendizado melhorou muito devido o maior interesse e disposição. Por sua vez, o foco funciona bem, mas nem sempre. A questão é que meu eu-mágico está mais vivo e o fluxo criativo é intenso, até demais… mas, enquanto ser que vive das artes, o cenário é um prato cheio. Às vezes, acontece aumento na ansiedade e dificuldade de realizar tarefas cotidianas. De todo modo, os especialistas apontam que as microdoses podem ser contraindicadas para pessoas com histórico familiar de esquizofrenia, transtorno bipolar e psicoses.
MAIS DO QUE UM SIMPLES “REMÉDIO”
Atualmente vivemos o que cientistas vêm chamando de renascimento psicodélico. Nos anos 60, o LSD foi uma grande promessa na psiquiatria e ícone da contracultura. Porém, após a proibição do uso, houve uma lacuna de pesquisas e experimentos, que só voltaram aos holofotes em meados de 2000, com novos métodos de estudos, auxílio de equipamentos de ressonância magnética e neurocientistas abertos para compreender as experiências místicas. Vale destacar que o Brasil é um dos polos de pesquisas relacionadas à ayahuasca, mas a proibição da substância, como o LSD, ainda dificulta estudos mais amplos.
Para além de relatos de perdas e ganhos de atividades cognitivas, a ciência psicodélica está se abrindo para as dimensões espirituais. Como são substâncias que silenciam a nossa noção de eu, percebemos esses efeitos mesmo em pequenas doses, de modo que relatos de abertura do campo astral são bastante recorrentes.
“O sentimento de sermos irmãos de criação de todas as coisas vivas deveria entrar na nossa consciência de maneira mais plena e ajudar a contrabalançar o materialismo e o desenvolvimento tecnológico sem sentido, de forma a nos permitir voltar às rosas, às flores e à natureza a qual pertencemos”
Albert Hoffmann, químico criador acidental do lsd, durante a celebração dos seus 100 anos em 2006.
A busca por vivências que nos libertem dos limites da nossa percepção cotidiana, assim como o uso de plantas de poder e práticas ritualísticas para atingir esses estados, é ponto em comum entre povos ancestrais em diversas regiões do mundo, e atualmente não poderia ser diferente. Os psicodélicos podem ser grandes aliados e mestres, que tanto já nos ensinaram e ensinam a viver nesse planeta de maneiras mais coloridas e conscientes de que somos uma apenas partezinha de um organismo chamado Terra, de um lugar chamado Universo – e tudo está interligado.
IMAGENS: Nu Abe