Em um mundo que opera na lógica da produtividade, do consumo e da novidade, envelhecer pode ser sinônimo de esquecimento. A função social das pessoas idosas desapareceu, como se passássemos da validade ao passar de certa idade. Só que não – e outras vivências são possíveis. Em culturas de povos originários e algumas sociedades não ocidentais ainda se mantêm a tradição de convivência entre gerações, com escuta e respeito aos mais velhos, considerados também mais sábios e cheios de história pra contar.
Acontece que a velocidade fulminante do capitalismo selvagem e das novas redes e tecnologias nos subiu à cabeça, e nem percebemos quanto vivemos em um mundo jovemcêntrico e etarista (preconceito relacionado à idade), sem paciência para o que não é acelerado e fragmentado. A violência contra as pessoas idosas não é apenas física, moral ou verbal. O abandono e a invisibilidade são reflexos de uma sociedade que não reflete sobre a inevitabilidade do envelhecimento populacional. Em 1940, a expectativa de vida dos brasileiros era 45 anos; hoje é 76,7 anos. Os idosos são o segmento que mais aumenta na população, sendo que as mulheres são a maioria nessa faixa etária. Segundo o IGBE, o Brasil será um país idoso em 2030, e terá uma porcentagem maior de idosos do que de jovens em 2060.
Os idosos são também a população mais afetada pela depressão. Apesar dos processos orgânicos de desgaste das funções corporais, cognitivas e propensão maior a doenças, os impactos da idade não são sentidos apenas por fatores biológicos. Somam-se a esse os fatores psíquico, social e cultural.
Por que “novo” parece elogio e “velho” ofensivo? Por que as pessoas, sobretudo mulheres, buscam sempre parecer mais jovens do que são?
Pequenos movimentos começam a despontar nas mídias com celebridades assumindo seus cabelos brancos e suas rugas, mas ainda é pouco. A representação midiática da velhice é escassa, não é à toa que entramos em crises quando acreditamos que o suposto auge da nossa vida já passou, que somos perecíveis e a juventude não é eterna (toca aqui, cringes!).
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É SOBRE O PASSADO, É SOBRE HOJE
Frente a este panorama, algumas pessoas longevas estão aí para nos mostrar que o clichê de que não existe idade certa para ser feliz é real, e a velhice vai muito além de ter memórias acumuladas. A vida não se resume a lembranças e é preciso dar um sentido para o aqui agora: não precisa ser somente sobre o passado, é sobre hoje também.
Conheci a Anair nos rolês da vida há quatro anos. Aonde eu ia, encontrava ela. Rolezeira de carteirinha, a aposentada de 82 anos não consegue parar quieta – e quase subiu pelas paredes na pandemia sem poder sair de casa. “A pessoa quando tá muito idosa acha que não tem mais jeito, que não aprende nada”, diz ela. “Mas, às vezes, é falta de coragem”.
Anair conta que após o divórcio, aos 40 anos, começou a aproveitar mais a vida. Pegando carona na gratuidade dos transportes e serviços oferecidos a pessoas idosas, ela atravessa a cidade, da periferia de Taboão da Serra, onde mora com os filhos, netos e bisnetos, a Zona Leste de São Paulo, para participar de grupos e aulas de dança e artes em geral. Anair é figura carimbada no maracatu, no carnaval e nas rodas de conversa, ela está em todas cheia de alegria e contigiando todes ao seu redor. Desde que a conheci e entrevistei pela primeira vez, ela sempre me liga para saber se estou bem, se a família vai bem. Uma fofa <3. “Minha neta fala: ‘vó, você não para em casa’. Mas pra que eu vou parar?”, diz ela. “Eu não sei como vocês aguentam ficar sem fazer nada; eu não aguento.”
ONDE ESTÃO AS PESSOAS TRANS IDOSAS?
O envelhecimento ativo é um dos caminhos para a longevidade e a prevenção de doenças. Porém são bem maiores os desafios de envelhecer bem quando não se tem os privilégios de melhores condições econômicas, de moradia e saúde, e menos riscos de sofrer violência física e psicológica pelo simples fato de existir. Em um país onde a expectativa de vida das pessoas trans é de 35 anos, sendo que 80% desse índice é de travestis e mulheres trans negras segundo a Antra, a longevidade ainda é exceção.
Thais Azevedo, sobrevivente da transfobia, do racismo e da ditadura, tem 72 anos (ela aparece na foto que abre esta reportagem). Orientadora e professora de francês no CRD – Centro de Referência da Diversidade, ela nos conta que a velhice lhe trouxe mais possibilidades de desfrutar da vida, como tomar um bom vinho, ouvir uma ópera e ler um livro, sem a necessidade de afirmações sociais. Ela conta que existe sim uma exclusão social, mas ela costuma tirar de letra, uma vez que hoje é ela quem exclui as pessoas e escolhe com quem quer estar, além de também desfrutar da sua própria companhia.
Para Thais, envelhecer não é a tragédia principal, a tragédia principal é a relação humana. Finíssima com uma taça de vinho na mão, ela nos conta também de sua vida sexual:
“As pessoas acham que quando a gente envelhece a gente perde o tesão. Eu não perdi nem o tesão, nem minhas funções fisiológicas. Talvez, eu venha a perder ereção, mas por enquanto ainda não aconteceu. Meu corpo é um santuário – e eu preciso gozar. A gente precisa se libertar dos tabus. Eu não tenho nenhum constrangimento em falar que tenho tesão e, se precisar, tenho cinco dedos e duas mãos. Posso me masturbar, posso enfiar o dedo no ânus”.
Quanto a relacionamentos, Thais vive a sua sexualidade livre e tem um parceiro de 36 anos, com o qual se relaciona há 20. Ela conta que é muito fiel, mas isso não quer dizer que ela não trepe com mais ninguém. “Eu dou liberdade pra ele também trepar com quem ele quiser, desde que use camisinha”, finaliza ela.
LIBERDADE DE SER DURANTE A VELHICE
A babá e atriz Luiza, de 61 anos, diz que não sente mais desejo sexual, mas está tranquila com isso pois a pulsão de vida na maturidade continua. Para ela, tudo tem um lado bom e um lado ruim. Entre os aspectos negativos, está se sentir mais invisível. Porém, ela destaca as partes positivas:
“Quanto mais velha, mais você pode fazer tudo. Sou gorda, tenho cabelo azul, vou para a praia de biquíni com minhas banhas para fora, falo alto. A velhice trouxe a possibilidade de ser eu mesma”
Mãe de uma pessoa não binária, ela também tem entendido a sua essência como não binária e afirma que nunca se encaixou nos padrões de feminilidade.
“Talvez, eu não fui feliz devido à falta de vocação em ser mulher, recatada e do lar”, diz. “Para mim, o amor é livre, mas naquela época era mais difícil encontrar alguém que pensa assim também”.
Quando pergunto se ela sente que nasceu na época errada, ela me diz que, na verdade, se sente de outro planeta (me identifiquei). Ela reflete que veio ao mundo a passeio, citando Ailton Krenak, que afirma que a vida não é útil. Ela fala ainda que gosta mesmo é de ficar no mato e sem roupa (eu também²).
De 2016 a 2018 desenvolvi com Uarê um projeto com mulheres idosas periféricas. Nunca vou esquecer as palavras que ouvi, logo no primeiro encontro, de Dona Enriqueta, uma senhora absurdamente amável de 96 anos: “vocês gostaram de mim? Nunca vi disso, alguém gostar de velho”. Esse comentário resume o olhar que direcionamos (e o afeto que deixamos de direcionar) a essas pessoas que tanto batalharam e resistiram na vida para que nós, jovens, estivéssemos aqui hoje.
Precisamos ouvir as histórias dessas pessoas para entender que, sim, as coisas mudam e vale lutar pelos nossos direitos e por uma sociedade mais justa e com equidade. Ampliar a escuta para além das nossas bolhas jovens é também perceber e enaltecer as subjetividades de cada ser, em detrimento das imagens estereotipadas que povoam nosso imaginário acerca da velhice. Além disso, quanto mais cedo pensarmos sobre essas questões, mais nos preparamos para não entrar em crise a cada ano que passa e não volta, a cada fio de cabelo branco que surge. Podemos aprendemos a ver a beleza da ação do tempo em todas as formas de vida e percebemos que cada ser tem a sua temporalidade.
Conhecer mulheres como Anair, Thais e Luiza – mulheres dispostas apesar de todos as perdas e obstáculos da vida – me inspira e me faz ter vontade de chegar lá. Hoje, meu sonho é viver muito tempo, e chegar feliz nas temporadas finais da vida. E, apesar de não conseguir mudar o que não tenho controle, não desistir de tentar, na juventude e na velhice.
FOTOS: Nu Abe