Com fotografias repletas de luz natural, Camila Falcão revela intimidade e beleza de corpos trans e não-binários.
*Reportagem de Victor Menezes, aluno do curso de Jornalismo Ágil da Emerge Mag 2021.
O ano era 2016. A já experiente fotógrafa Camila Falcão participava de uma ação de saúde voltada a pessoas trans no Centro de Referência da Diversidade, na República, no centro de São Paulo. Entre um clique e outro, Camila conheceu Erika Hilton, hoje vereadora por São Paulo, e Amara Moira, escritora e crítica literária. A partir daquele dia, Camila, que já tinha interesse em pluralidade, começou a desenvolver uma pesquisa fotográfica pela imensidão do universo do gênero e sexualidade.
Os primeiros ensaios deram origem a série “Abaixa que é tiro”; e o nome não é à toa. Além das já citadas, participam a dramaturga Ave Terrena, a artista visual Manaura, a maquiadora Magô Tonhon e outras dezenas de mulheres trans de São Paulo.
Camila conta que fotografar corpos trans e não-binários, sendo ela uma mulher cisgênero e branca, requer muita responsabilidade, ao mesmo tempo que é um processo de aprendizagem e trocas. É necessário construir uma relação de intimidade e confiança, com base no respeito mútuo, para que a modelo se sinta confortável; e não um corpo objeto e abjeto. As fotos costumam ser feitas nas casas das retratadas, com elas sobre colchões, cadeiras e, simplesmente, em pé à frente de paredes com cores sólidas, onde as sombras criam quase uma moldura. Nessa procura e testes para encontrar lugares aconchegantes para as fotos é onde nasce os diálogos, que acontecem bem antes dos primeiros cliques. Uma das parcerias fotográficas mais longas foi com Onika, que, por dois aos, foi fotografada por Camila, que captou as mudanças físicas e psicológicas da modelo. A fotógrafa comenta:
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“Quando fotografo, mostro para a pessoa e faço questão de ser colaborativa para que ela se sinta bem antes, durante e depois do ensaio. Gosto de retratá-las para que se pareçam como pinturas, sempre altivas, com uma luz linda. E considero uma obrigação para mim, que tenho certa visibilidade como artista, mostrar essas pessoas e suas histórias; sempre com muito respeito”.
E afeto fica nítido nas fotos. Uma das séries que mais transborda o sentimento é o projeto Couples, de 2017, com corpos e personalidades múltiplas retratados como casais, trisais e outro qualquer arranjo, como diz Camila. A foto que abre esta reportagem, com Bernoch e Cecíla, faz parte da série – o amor é lindo, né?
O CLARO, O ESCURO E A POLÍTICA
A caminhada de Camila na fotografia não é curta. A artista feminista se formou em artes plásticas no ano 2000. Depois, se mudou para Nova York para trabalhar como assistente de fotografia, onde aproveitou para estudar na escola de artes visuais SVA e desenvolver sua linguagem fotográfica, bastante pautada na luz natural. De volta ao Brasil em 2004, começou a trabalhar como designer de produção e fotógrafa freelancer. Camila teve filmes premiados em festivais nacionais e internacionais e teve projetos publicados em veículos como ZUM, British Journal of Photography, European Photograph, GUP entre outros. Hoje, aos 44 anos, ela é membra da Agência Fotografia Feminina e Nativa e vive e trabalha em São Paulo
Camila afirma que seu trabalho é um ato político, onde não mostra apenas corpos, mas também os retrata a partir de um lugar de intimidade, sem cometer deslizes de estereótipos e exotificação. O lado negativo da atuação é incomodar grupos excludentes, o que gera vários ataques na internet. Camila conta que teve que deixar seu perfil no Instagram privado, pois estava sofrendo de campanhas de ódio de evangélicos, conservadores e “feministas radicais”, vertente que Camila enfatiza que não a representa:
“Feminismo que exclui mulheres trans e travestis não é feminismo para mim. Só vai ficar bom para mim quando for bom para todas”
E os perrengues na internet não param. É comum o Instagram censurar e excluir fotos de Camila (eaí, Zuckerberg, bora mudar isso?). Há também a prática de “Shadowban”, que é quando os algoritmos restringem o alcance do conteúdo de determinadas páginas e perfis sem que isso seja explícito ou formalizado (é silenciamento que fala, né?).
Ah, como era de se imaginar, o banimento também rola no mundo físico. Camila conta que, devido aos corpos que retrata, já teve trabalhos negado em exposições e perdeu concursos porque os jurados eram todos homens cis elitistas. “Por isso que é importante ter presença de mulheres em júris e conselhos do organizações de arte”, diz Camila. “Elas entendem melhor o trabalho de mulheres e pessoas não-bináries”.
RUPTURA COM O CAPITALISMO
Entre as principais referências de Camila está Nan Goldin. A fotógrafa americana nasceu em 1953 e realizou sua primeira mostra aos 20 anos, na cidade de Boston, onde retratava as comunidades trans e gay. Nan Goldin retratou muitos momentos de intimidade e, inclusive, usou seu trabalho para dar visibilidade a causa contra o HIV. Nan costumava fotografar pessoas próximas, amigos e amigas que estavam em seu convívio, como ela mesma dizia “sua família”. “Se a Nan Goldin não existisse, eu nem existiria como artista”, afirma Camila. Na lista de referências também constam seu ex-chefe David Armstrong (1954-2014), amigo de Nan e que contribuiu muito em iluminação sob a luz natural, Michal Chelbin, Hellen Van Meene e Yurie Nagashima.
Atualmente, Camila está trabalhando em um novo projeto, no qual relaciona sexualidade e gênero a conceitos de ruptura com o capitalismo e o patriarcado. É uma pesquisa ampla, onde o escopo abarca moda, atitudes e trabalhos criativos que perturbam o sistema. Conhecendo a artista por trás das lentes, já esperamos coisa boa.
FOTOGRAFIAS: Camila Falcão