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A quaresma de Jup do Bairro

17/03/2020

Cantora e compositora esteve isolada para produzir Corpo Sem Juízo, EP visual que apresentará as experiências e memórias da artista e marcará sua nova ressurreição

Cantora e compositora está isolada para produzir Corpo Sem Juízo, EP visual que apresentará as experiências e memórias da artista e marcará sua nova ressurreição

Há quase um mês, Jup do Bairro está sumida das redes sociais. Ela trocou a publicação de posts e stories, onde sempre gostou de marcar presença, para se dedicar à produção de seu primeiro EP visual, batizado de Corpo Sem Juízo. O projeto é uma celebração coletiva em formato de áudio e vídeo, que apresentará suas memórias e criações autodidatas.

Ela, que afirma que não foi ensinada e nem designada a ser artista, se apropriou da arte ao dar voz e acreditar em si mesma – uma forma de ser a própria fonte de cuidado e cura.

De acordo com a religião católica, a Quaresma, na qual Jup ingressou, é o período do ano que antecede a Páscoa. É a época em que não se diz o Aleluia, nem se colocam flores na Igreja e não se canta o “Glória a Deus nas Alturas”. As manifestações de alegria só serão apresentadas de forma intensa após a Páscoa.

E intensidade é o que Jup promete. No final de 2019, ela conseguiu arrecadar R$ 42 mil por meio de um site de financiamento coletivo para tirar Corpo Sem Juízo do papel.

JUP DO BAIRRO: A RAINHA DO DEBOCHE

Recentemente, ela concluiu uma imersão onde trabalhou letras, repertórios e beats acompanhada da produtora BadSista (já perfilada pela Emerge), que será a diretora musical do EP. As duas trabalham juntas há anos e atuaram em vários projetos, como o disco Pajubá, de Linn da Quebrada; a música Sou Eu, feita no BSideStudio da Budweiser; e, mais recentemente, no single Vou Te F****, lançado por Jup em janeiro.

Na imersão, Jup recebeu outras artistas para criar músicas. Uma delas foi Deize Tigrona. É isso mesmo: o Corpo Sem Juízo terá um feat entre Jup e a funkeira carioca. Jup promete que o EP será um trabalho bem intimista e poético – uma narrativa sobre vida e corpos, que, de acordo com Jup, é uma das camadas mais profundas para se trabalhar dentro da arte. Para ela, cocriar com outros talentos é uma oportunidade para causar atritos que potencializarão a força da obra.

“Muita coisa ficará subentendida e outras vão gerar interpretações e conflitos internos e externos, que acredito que é uma das funções da minha arte”, diz Jup.

E ela já deixou alguns indícios. Em junho de 2019, Jup lançou a música homônima para divulgar o financiamento coletivo. Logo na abertura da faixa, há um poema recitado por Conceição Evaristo, que narra um crime de transfobia e o amor de uma mãe pela filha perdida. Na composição, Jup afirma renegar o paraíso cristão. Por que, Jup?

“O paraíso que nos oferecem é normativo, de um Egito branco, onde atingimos a paz celestial sendo servas, sacerdotes e sacerdotisas. Temos que sacrificar e ignorar as nossas vontades, sentimentos e impulsos para adentrá-lo. Que paraíso é esse que nos impõe tanta crueldade e morte? Não quero ser cúmplice disso”

Atenta ao que acontece a sua volta, Jup gosta de nomear seus inimigos – e um deles é o Estado, que mantém o genocídio de corpos dissidentes. Nos últimos meses, ela escutou que também “deveria” cantar sobre felicidade, uma vez que geral anda pessimista em época de Governo Bolsonaro e suas arbitrariedades. Embora Jup seja extremamente carinhosa e adepta do fervo, ela pede um pouco mais de noção.

“Aí sinto o porquê do estranhamento com a minha arte. Eu não consigo dançar sobre corpos que estão morrendo – e que amanhã pode ser o meu.”

JUP DO BAIRRO, CANTORA E COMPOSITORA

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MORTE E VIDA PIRES

Avessa ao Éden, a alternativa que Jup encontrou foi hackear o Cistema – com C, devido à representação da cisheteronormatividade – e ser uma artista marginal. E o desafio para corpos que não se aproximam de uma binaridade degustável é criar artimanhas e armas para se manter viva, mesmo que para isso tenha que matar outros “eus”.

Nascida em 1993, Jup Pires é um corpo que já morreu inúmeras vezes. A primeira pessoa para quem apontou uma arma foi para si mesma. E, conforme o corpo e as ideias de Jup mudavam, outras mortes aconteciam.

Um dos períodos mais duros de sua vida foi quando ela tinha apenas 13 anos. Seu pai havia falecido há pouco tempo e ela sofria de depressão. Ela também tinha começado um tratamento de hormonização por conta própria e estava confusa com o próprio corpo.

DEPRESSÃO E NÃO PERTENCIMENTO: UM CORPO QUE JÁ MORREU INÚMERAS VEZES

As relações interpessoais também eram escassas e houve mais uma morte: a social. Sem expectativas, ela abriu mão dos desejos pessoais para ajudar a família. A situação, por mais dolorosa que seja, é comum em vários segmentos da sociedade, como os de pessoas em situação de rua ou de jovens LGBTQI+ expulsos de casa. Nesses casos, em vez de morte física, a pessoa passa a vagar sem esperança por não se sentir pertencente ao mundo que vive.

Ao mesmo tempo, o suicídio também é uma triste realidade. Uma pesquisa realizada pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, constatou que a população LGBT+ tem cinco vezes mais chances de cometer suicídio do que os heterossexuais cisgêneros. Dependendo do ambiente em que vivem, o número pode subir até 20 vezes.

Mas, como diz o meme “levanta gay, bora trabalhar”, houve um ponto de inflexão na trajetória de Jup. Isolada em casa, ela começou a escrever. Anotava suas reflexões, memórias, angústias e sonhos. Na mesma época, conheceu um grupo de anarquistas da zona sul. Instintivamente, fez uma associação ao pai, que tinha sido anarquista na juventude.

Em pouco tempo, ela conheceu fanzines punks. A sensação de liberdade que nasceu por meio da escrita a fez criar seu próprio zine. Jup tinha um estilo bem próprio: ilustrava os textos com colagens de pintos e bucetas. A distribuição era feita por ela mesma, que entregava os livretos pelas ruas do Valo Velho, bairro do distrito do Capão Redondo, onde mora até hoje.

Com “jeito de anjo bochechudo e voz fininha”, como ela mesma me conta, muitas pessoas pegavam os zines acreditando que eram folhetos de igreja. “Elas se assustavam quando abriam o zine”, diz Jup, a Rainha do Deboche, aos risos. “E eu comecei a gostar de causar essa reação nas pessoas.”

DA ESCRITA PARA A PERFORMANCE

Após usar os zines para aprimorar a escrita, Jup passou a participar de saraus e batalhas de poesia. Em pouco tempo, criou seu próprio sarau. Por ser muito tímida, ela se dedicava aos trabalhos de bastidores. Porém, como grande parte dos rimadores eram homens cis com letras machistas, ela sentiu que precisava assumir os microfones por uma questão de representatividade – uma forma de fomentar a presença de mulheres e pessoas LGBTQI+ no evento.

Numa das apresentações, ela recitou um poema acompanhada de um DJ. Nascia a Jup cantora. Com um vídeo compartilhado no Facebook, a performance chegou a produtores de eventos de outras regiões, que começaram a convidá-la para outros shows.

Em suas primeiras apresentações, Jup soltava beats no Windows Media Player e costumava usar uma balaclava para esconder o rosto – a ideia era esconder a identidade caso a apresentação fosse um fiasco. Entre as músicas, estavam faixas da Gaiola das Popozudas e Alcione. “Eram as que eu conhecia a melodia e sabia cantar bem”, conta ela.

Logo, ela já estava nos palcos de festivais como o Periferia Trans. Com seu nome circulando pela cidade, Jup foi convidada para participar da Virada Cultural. Além de cantar, seu portfólio de serviços incluía discotecagem, performance, apresentações e entretenimento de plateia.

“Respondia ‘sim’ a todos os convites, mesmo sem saber fazer o que o contratante pedia. Fui autodidata, pois era uma questão de necessidade. Precisava gerar renda e ingressar no mundo das artes, que eu não tinha acesso nem como expectadora. As primeiras vezes que fui em casas de espetáculos e vi grandes estruturas para shows já foi para me apresentar como artista”

Por outro lado, os holofotes têm suas incoerências. Para Jup, a representatividade também tem seu lado negativo. Muitas vezes, o público vê a artista como isenta de defeitos, o que acaba por tirar sua humanidade. Ao mesmo tempo, as pessoas passam a se manter estáticas devido já terem elegido a sua representante, que também precisa se mostrar sempre maravilhosa e empoderada. “E isso não acontece todos os dias”, diz Jup. “Tem momentos que olho no espelho e não quero nem sair de casa, mas preciso subir num palco para trabalhar”.

REPRESENTATIVIDADE: ORIENTAÇÃO SEXUAL E GÊNERO NÃO É ESTILO MUSICAL

Outro lance que Jup chama a atenção é quando as pessoas ignoram suas próprias atitudes racistas, transfóbicas, gordofóbicas e machistas e se justificam com comparações, o que cria uma corrida maluca para “provar” quem é mais oprimido, como se cada dor tivesse um peso diferente.

“A comparação é sempre é desonesta e uma maneira sutil de ataque”, diz Jup. “Precisamos, urgentemente, parar de se colocar no lugar de outras vivências que nunca saberemos de fato como é.”

E ela não para por aí. Mirando seu metralhadora para a mídia, ela dispara que orientação sexual e gênero não é estilo musical e que é um grande equívoco colocar artistas tão diferentes, como Liniker e Linn da Quebrada, numa mesma caixinha LGBT. Essa tática perversa é proposital e feita para facilitar a aniquilação de artistas quando essas não forem mais uma fonte de lucro para a indústria da música, que poderá escolher outra “tendência” para encher seus cofres.

“Já tivemos no passado outros movimentos negros e LGBTQI+, com outras nomenclaturas, que foram inviabilizados pela mídia. É muito mais fácil encaixotar corpos múltiplos visando apagar uma geração inteira do que falar que tem travesti fazendo rap e homem trans fazendo samba. Essa é uma sacada muito cruel para inviabilizar pessoas que estão em ascensão”

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CADA UMA NO SEU CASTELO

AQUI É CAPÃO REDONDO: MOVIMENTOS ARTÍSTICOS E ESTÉTICOS BRASILEIROS SÃO MUITO MAIS ORIGINAIS DO QUE OS EUROPEUS

Em uma transição de palco numa edição da Virada Cultural, Jup conheceu Linn da Quebrada. Era o começo da cena queer de São Paulo e elas eram umas das poucas negras no cenário club kid da cidade.

A amizade e parceria de trabalho foi quase instantânea e bem natural. Um dos primeiros trabalhos juntas foi um show fechado que serviu para captação de imagens para o documentário Abrindo o Armário, lançado em 2016, que traz entrevistas com personalidades LGBTQI+ sobre suas experiências de autoaceitação e preconceito. Na sequência, elas se apresentaram juntas em edições do Periferia Trans e Popporn. Daí em diante, não pararam mais.

No começo de 2018, elas fizeram uma grande turnê pela Europa junto a divulgação do documentário Bixa Travesty, na qual são personagens principais. O filme ganhou o Prêmio Teddy no Festival de Berlim, também conhecido como Berlinale.

Em terras de colonizadores, Jup confirmou o quão original são os movimentos artísticos e estéticos brasileiros, principalmente os de São Paulo. Um exemplo é o próprio corpo travesti, muito particular da América Latina. Por sua vez, de acordo com ela, na Europa, as pessoas trans ainda tendem a transformação do corpo para se adequar ao binarismo de gênero (feminino ou masculino). Dessa forma, as performances da duas impactaram muito os europeus, que ficaram encantados com a dupla.  

“O melhor da minha relação com a Linn é que somos muito brutais uma com a outra. Tem coisas que só ela tem coragem de falar para mim e há coisas que só eu falo para ela. Temos uma conexão muito forte”

Ao mesmo tempo, Jup deixa evidente que, agora, ela quer evidenciar ao público o seu trabalho solo, que é bem diferente do trabalho da Linn e diferente do que as duas já fizeram juntas. Cada artista tem demandas únicas – e suas composições reverberam urgências específicas.

Mas, para quem gosta de ver as duas juntas, oportunidade é que não falta. Recentemente, elas finalizaram a gravação da segunda temporada do Programa Transmissão, que ambas apresentam no Canal Brasil. Entre os entrevistados da nova temporada está o ator Silvério Pereira, que interpretou o personagem Lunga no filme Bacurau.

Tímida e forte. Carinhosa e agressiva. Jup não é uma pessoa apenas orgânica e biológica. Ela se inventou. Se moldou do barro, da emoção e da tensão, para se transfigurar na potência que almejava. E seu combustível é a raiva, pois é assim que ela acredita ser possível causar mudanças. Porque para ela – e para nós – existir não é o bastante.

DIREÇÃO-CRIATIVA E FOTOGRAFIAS: Kalinca Maki
STYLIST: Gabriel Nevez
BELEZA: Rafael Holland
ACERVO: Vicenta Perrotta, Korshi 01 e Ateliê Fomenta

Quem escreveu

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Italo Rufino

Jornalista pós-graduado em marketing com dez anos de experiência. Trabalhou na revista Exame PME (Editora Abril), nos sites Diário do Comércio e Projeto Draft e na ONG de urbanismo social A Cidade Precisa de Você. Natural de Diadema (RMSP). Pai de uma criança de 10 anos. Fundador da Emerge.

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