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Ação direta para combater o coronavírus nas periferias

22/06/2020

Iniciativas horizontais e autônomas feita por e para a periferia tapam buracos deixados pelo Estado e apontam outras formas de se fazer política

Iniciativas horizontais e autônomas de solidariedade feita por e para a periferia tapam buracos deixados pelo Estado e apontam outras formas de se fazer política além das urnas

Próximo à Praça da Sé, na capital paulista, um grupo de jovens se reúne logo cedo num galpão. O encontro bem que poderia ser um rolezinho, cervejada de faculdade ou um esquenta de carnaval. Mas, em tempos de Covid-19, a intenção é outra. Mascarados, eles se organizam para comprar e higienizar mantimentos, que serão usados para montar cestas básicas para serem entregues a milhares de famílias da região metropolitana da cidade.

No penúltimo domingo (13/06), eu, meu companheire e uma amiga somamos na linha de frente da solidariedade para ajudar as pessoas mais impactadas pela pandemia em São Paulo. Ao chegar no galpão, percebi o vai e vem dos caroneiros (motoristas que levam os mantimentos para as famílias). Eles entregavam as cestas que tinham sido montadas no final de semana anterior. Naquele domingo, a minha missão foi separar e desinfetar produtos e organizá-los novamente em kits e selar as caixas com fita adesiva. Somente naquele dia, montamos mais de 160 caixas para serem transportadas na próxima semana. Também havia um grupo de voluntários dedicado a organizar os formulários das famílias – uma vez que os registros são online –, outro que entrava em contato com as pessoas que vão receber os mantimentos e um terceiro que criava rotas de entrega para os caroneiros.

ARTHUR ANYANGO, CIENTISTA SOCIAL E VOLUNTÁRIO DO SOBREVIVENDO AO CORONA: “PARECE QUE O ESTADO SERVE PARA ATRASAR A VIDA DAS PESSOAS” (Foto: Arquivo Pessoal)

A ação, que acontece todo final de semana e rola de forma autônoma e horizontal, é uma iniciativa do projeto Sobrevivendo ao Corona, idealizado por Andreza Delgado, youtuber, podcaster, escritora e uma das criadoras do PerifaCon.

O voluntário e cientista social Arthur Anyango dos Anjos explica que o projeto não é uma ONG ou coletivo, mas sim “um grupo de amigos que resolveu fazer algo no momento da pandemia”. Ele nos conta que o grupo identificou que as emergências da fome e da falta de higiene não estão sendo solucionadas de forma integral pelas políticas públicas e que muitas ações não chegavam a uma boa parte das periferias. Foi aí que surgiu a ideia de criar o projeto, que se desenrolou de maneira orgânica.

“Primeiro, nos reunimos pelo WhatsApp e o grupo foi montado conforme surgiam novas demandas”, diz Arthur. “Hoje, são 30 pessoas dedicadas ao projeto.”

Diferente do Sobrevivendo ao Corona, que foi criado durante a pandemia, algumas iniciativas já existentes se adaptaram para a nova crise. É o caso da escola feminista Abya Yala, mantida por um coletivo de apoio feito por e para mulheres periféricas, negras e afroindígenas. Helena Silvestre, uma das integrantes, conta que antes elas se reuniam para se fortalecer, desabafar e organizar ações de enfrentamento ao machismo dentro de seus territórios. Com a pandemia, as articulações se tornaram ainda mais imediatas. Helena explica:

“O coletivo Abya Yala reúne mulheres periféricas, que logo perceberam que a fome ia pegar feio e que muitas mulheres sairiam de casa para trabalhar e trazer alimentos para os filhos. Ao mesmo tempo, a pandemia fez com que essas mulheres ficassem ainda mais sobrecarregadas ao ter que cuidar de doentes e da educação dos filhos devido a interrupção das aulas nas escolas”

Primeiro, a Abya Yala se organizou para coletar e distribuir alimentos entre as famílias com as quais se relacionam, geralmente chefiadas por mães solo. Porém, ao se deparar com outras urgências, passaram a oferecer também atendimento psicológico e dar suporte a questões urgentes de violência doméstica, que disparou no Brasil durante a quarentena. Além disso, também entregam mantimentos em ocupações de terra, onde os moradores passam por maiores dificuldades em fazer isolamento social e ter acesso a direitos básicos, como rede de esgoto e água potável.

O vírus não escolhe?

No último sábado (20/06), o Brasil superou a emblemática marca de 1 milhão de casos de coronavírus e o número de óbitos chegou a mais de 50 mil. Em São Paulo e Rio de Janeiro – os estados que lideram o triste ranking fúnebre – a incidência de casos de coronavírus é maior nas periferias. Segundo o painel Covid-19 nas Favelas, do Voz das Comunidades, são mais de 2 mil casos nas favelas cariocas.

Por outro lado, o Ministério da Saúde demorou para inserir critérios de raça/cor para segmentar a população adoecida pela doença. A inserção só aconteceu após a Coalizão Negra por Direitos e outras organizações populares entrarem com o pedido via Lei de Acesso à Informação.

Até o dia 25 de maio, entre as pessoas hospitalizadas por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) causada por Covid-19, 49% eram pessoas brancas, 42% pardas, 7,1% pretas, 1,6% amarelas e 0,3% indígenas. Porém, em 19.226 a variável raça/cor foi ignorada e não foram incluídas na análise.

Já em relação às mortes, 49,6% eram pardas, 41% brancas, 7,4% pretas, 1,6% amarelas e 0,5% indígenas – e 6.245 óbitos tiveram variável raça/cor ignorada.

Embora os dados já indiquem o panorama, o cantor Emicida, numa entrevista para o Programa do Faustão, resumiu de forma cirúrgica a situação ao lembrar que a primeira vítima da doença foi uma empregada doméstica que contraiu a Covid-19 de sua empregadora que havia chegado da Itália:

“Por um lado, a gente enfrenta um vírus que se espalha muito rápido, mas que não tem uma letalidade tão grande. Agora, o que é extremamente letal são os abismos sociais que a nossa sociedade produziu e finge que não existe. Todas as pessoas estão sujeitas, mas nem todas podem se tratar”

“Nóis por nóis”

Conforme relatado no início desta reportagem, as iniciativas autônomas se formaram para tentar tapar os buracos deixados pelas políticas públicas. Citando Emicida, “é nóis por nóis e, se não for assim, não funciona”.

O Sobrevivendo Ao Corona já apoiou quase 2 mil famílias. Para Arthur, o Estado não tem sido um promotor de direitos para as pessoas, pelo contrário, tem um programa que acentua as desigualdades sociais.

Atualmente, Arthur mora no centro da cidade. Mas nasceu e cresceu na zona leste. Quando visita amigos e familiares na Cohab, ele percebe que poucas coisas mudaram na região, desde a infraestrutura de transporte ao centros de ensino e educação. Tudo parece igual a quando ele era criança. Ao mesmo tempo, no centro, sempre vê novidades acontecendo a todo momento.

“Isso demonstra o descaso do próprio projeto de Estado que temos, em que as instituições estão aí para atrasar a vida das pessoas e acentuar as desigualdades”, diz ele.

Arthur enxerga como uma possível saída a “política do cotidiano”, que vai além de quem você vai votar na eleição, uma vez que entende que o Estado não tem dado conta não é por falta de recursos, mas sim por uma escolha deliberada dos governantes.

“As ações diretas, como a do Sobrevivendo ao Corona, estão aí para aprendermos a fazer política de outras formas que não sejam apenas as das urnas”, diz ele.

Para Helena, da Abya Yala, a articulação autônoma é fundamental, mesmo com o cansaço por ter que lidar com várias responsabilidades que normalmente são direcionadas às mulheres e que se intensificaram com a Covid-19. Segundo ela, algumas famílias não têm recebido qualquer ajuda do poder público.

“O Estado chega lentamente quando se trata de direitos, só chega rápido quando se trata do genocídio da população pobre e de seu braço repressivo”, aponta ela.

Desde o início da crise, o governo vem adotando políticas emergenciais para lidar com os impactos causados pelo novo coronavírus. Um exemplo é o auxílio emergencial de R$ 600 (R$ 1.200 para mães solos). Vale lembrar que, inicialmente, o valor proposto pelo governo de Jair Bolsonaro foi de R$ 200 – o aumento foi uma vitória da Câmara dos Deputados. Porém, o aplicativo para fazer o cadastro não é funcional e apresentou uma série de problemas operacionais desde que foi disponibilizado. Além disso, mais de dois meses após o inicio dos pagamentos, 2,7 milhões de pessoas ainda aguardam análise para ter o valor liberado – dessas, 1,5 milhão são pessoas que ainda não tiveram nenhum retorno desde que fizeram o pedido. Algumas famílias apoiadas pela Abya Yala sentiram isso na prática devido a não terem celular, não saberem seus dados e só conseguirem se comunicar por áudio. Há pessoas que também não tiveram como regularizar os documentos necessários para fazer o pedido de auxílio. Helena relata:

“É tanta burocratização da fome que detalhes se transformam em obstáculos para o acesso ao auxílio. As redes que têm se formado de maneira autônoma são o que tem garantido a sobrevivência de muita gente, porque o Estado é muito mais lento do que a nossa necessidade”

Com a eleição de Jair Bolsonaro, essas questões ficaram ainda mais evidentes e problemáticas. O governo, ao invés de seguir recomendações científicas e sérias, se apoia cada vez mais em “soluções” que só empurram a população para o abismo. No entanto, Helena ressalta que não é de hoje a resistência das mulheres periféricas. Ela diz que mais uma vez é o povo que levanta pela vida, mesmo sendo morto por fome, bala e tantas outras formas de opressão. Ela finaliza:

“Há 500 anos essas mulheres têm construído a sustentação da vida, mesmo em territórios assolados pela fome e pela violência. Há 500 anos sobrevivemos e existimos”.

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