Pesquisar
Close this search box.
Pesquisar
Close this search box.

Alma Negrot nos conduz pela fluidez da vida

28/02/2018

Ser um corpo sensível e combativo é o que almeja Rapha Jacques, artista visual e performer que vive a drag queer que rompe padrões de comportamento e causa incômodo

Ser provocação, contraste e antagonismo. Ser Alma Negrot. Nascida da urgência de causar reações, Alma é a drag queer (sim, queer) encarnada pelo artista visual Rapha Jacques, de 24 anos. O artista utiliza o corpo para explorar a fluidez da vida por meio de cores exuberantes, texturas, peças garimpadas e adereços desenvolvidos com materiais de descarte.

Muito além de um personagem, Alma é um movimento permanente, o trânsito dos desejos, inquietações e medos que perpassam a existência do jovem. É a reverberação de diferentes sentimentos. Uma obra de arte viva.

Para Rapha, a performance nasce de um contexto social. Um tema iminente que precisa ser debatido. Foi o anseio pelo confronto que o fez, por exemplo, ainda adolescente, “invadir” uma festa que reunia pessoas da alta classe social, branca e cisgênero da capital gaúcha. Vestindo adereços e trajes colhidos no lixo, ele desfilava em meio a rostos escandalizados, enquanto bebia suco de uva numa taça (em alusão aos caros vinhos servidos no evento). É o posicionamento combativo, que ele comenta:

“A performance serve para romper padrões de comportamento e causar incômodo. Misturar o surreal e o casual. O lixo e o luxo. A dúvida dos gêneros e o confronto ao binarismo”

PERFORMANCE NASCEU DE UM CONTEXTO SOCIAL (Foto: Otavio Guarino)

Gênero e sexualidade são temas recorrentes nas performances de Alma Negrot. Para Rapha, um dos principais problemas contemporâneos é a heterossexualidade como regime político. E isso não tem a ver com a relação afetiva entre homens e mulheres, mas sim com a heteronormatividade, conceito e série de práticas que consideram como marginais expressões e orientações sexuais e afetivas diferentes da heterossexual e, desse modo, passam a subjugar todas as dissidências.

Para o artista, a situação é de tamanho descalabro que as pessoas, acostumadas com a lógica hetero-binária (masculino e feminino), passam a heterossexualizar os animais e até mesmo as atitudes das crianças, que ainda estão descobrindo sua sexualidade (o desenvolvimento virá com o tempo, próximo à puberdade).

EU SOU VIADO

Por muitas razões, Rapha se posiciona como queer, que engloba as dissidências do padrão heterossexual. Para ele, queer não é uma identidade, mas uma atitude subversiva em não querer se adequar aos modelos impostos pela sociedade, tidos como “civilizados” e “naturais”. Ser gay também não basta. Seu rolê é outro.

“Prefiro ser “viado” devido ao poder da palavra e por não me sentir representado com o casal gay, branco e cis que aparece nos comerciais de marcas de perfume do Dia dos Namorados”

Ele explica, junto ao amigo e parceiro de trabalho Guilherme Alonso, fundador da Casa Judith (onde aconteceu a entrevista que originou esta matéria), que é necessário reinventar o significado de expressões com carga negativa que são usadas para insultar grupos minorizados em direitos, como LGBTQs. Para eles, quando se empodera a palavra “viado”, pessoas que passaram a vida escutando o adjetivo como ofensa, passam a se reconhecer por meio do novo valor do signo.

“A sociedade precisa entender que as pessoas não têm que viver com máscaras sociais para poder existir no mundo”, afirma Rapha. “Por que eu escolheria o papel mais básico e medíocre se existem tantas possibilidades para experimentar?”

Existências transviadas, não-binárias e pansexuais, entre outras formas plurais de compreensão do próprio corpo e de relacionamentos humanos, têm galgado espaço entre jovens urbanos. Uma dessas vertentes é a cultura drag, que explodiu na mídia brasileira nos últimos anos. A cena é apoiada, por exemplo, pela popularização do reality show RuPaul’s Drag Race e a ascensão da cantora pop Pablo Vittar, garota propaganda de diversas marcas e que tem feito duetos até com ídolos do sertanejo.

VEJA TAMBÉM: Um ano de Casa 1. Os desafios do centro LGBT mais pop de São Paulo

CAMINHOS PÓS-DRAG

De acordo com Rapha, o lado positivo da inclusão das “manas” no mainstream é o reconhecimento. Por outro lado, ele acredita que o debate não pode parar por aí. Há outras urgências que precisam ser alavancadas no rastro da discussão sobre gênero, como conversas com foco em raça e classe social.

Nessa interseccionalidade, ele destaca grupos artísticos como As Bahias e a Cozinha Mineira. “Também precisamos falar por nós mesmos e não sermos apenas fantoches de marcas ou deixar que os outros nos interpretem”, afirma ele.

ARTISTA FOI RESPONSÁVEL PELA MAQUIAGEM DO DESFILE DE DIEGO GAMA NA 41ª EDIÇÃO DA CASA DE CRIADORES

O momento atual de botar a cara no sol é bem diferente de quando Rapha deu os primeiros passos na cena drag. Nascido em Gramado, no interior do Rio Grande do Sul, ele saiu de casa aos 14 anos, devido a conflitos com sua família conservadora, que o impedia de fazer cursos de teatro e dança. Mais tarde, viveu na estrada, viajando de carona pela Argentina, Rio de Janeiro, Chile e nordeste brasileiro. Até que parou em Porto Alegre, quando começou a trabalhar no bar de uma sauna.

Entre o preparo de um drink e outro, ele se divertia com os shows de drag queens, ainda no estilo caricato, repletas de plumas e paetês. No entanto, não se conformava que as apresentações só aconteciam numa esfera privada e escondida, já que a casa funcionava quase na clandestinidade.

ANARQUISMO QUEER

Na mesma época, integrou um coletivo de jovens artistas visuais. Desde a adolescência, Rapha já desenvolvia, de forma autodidata, trabalhos manuais em artes plásticas. Começou pintando telas e a criatividade extrapolou para outras superfícies, como muros e a própria pele.

Ao mesmo tempo, surgiu o interesse por conceitos anarquistas, que permeavam as manifestações políticas e culturais que emergiram em 2013, ano em que manifestantes conseguiram derrubar o aumento da passagem de ônibus na capital gaúcha. Não satisfeito com a forma que os movimentos políticos eram regidos por homens universitários brancos de classe média, ele ajudou a criar um coletivo de artistas periféricos LGBTQ.

A atitude foi essencial para despertar seu interesse pela performance. Rapha passou a ir montado aos encontros e festas do coletivo. E, assim, nascia Alma Negrot. O nome vem da expressão “fazer com alma” – a força de vontade necessária para materializar suas ideias em forma de arte. Já “Negrot” é uma referência à amiga e influenciadora Aérea Negrot, cantora, DJ e produtora musical venezuelana, que hoje vive em Berlim.

LEIA MAIS: Qual será o futuro da Mamba Negra

O apreço pela precariedade também surge nessa época. Não por escolha, mas por necessidade. Sem dinheiro para comprar roupas e acessórios, Rapha garimpava trajes no lixo. Na ausência de maquiagem, chegou a aplicar tinta acrílica no rosto, dessas de pintar tela. A falta de grana o afastou, inclusive, do curso de graduação em artes visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que abandonou logo no primeiro ano por não ter condições de adquirir material escolar.

ALMA ASSINOU A DIREÇÃO DE ARTE DA CAPA DO ÁLBUM CORAÇÃO, DE JOHNNY HOOKER (Foto: Diego Ciarlariello)

Hoje, a situação melhorou. Atuando como maquiador profissional, ele tem assinado a direção artística de desfiles de moda, eventos de marcas e clipes musicais. Já trabalhou com a banda Francisco, El Hombre, com a cantora Aíla e com o grupo No Porn (veja mais detalhes no vídeo abaixo).

Ano passado, ele dirigiu a arte da capa do disco Coração, de Johnny Hooker, com quem também fez parcerias para criação de figurinos e maquiagem. Com cerca de 25 mil seguidores no Instagram, participação no canal Drag-se, que possui quase 60 mil inscritos e vídeos com mais de 100 mil visualizações no YouTube, Rapha tem despertado a atenção de grandes marcas.

Em 2017, foi convidado para ministrar uma oficina de make na Casa Ponte, projeto de conteúdo voltado ao público LGBTQI+ da marca Skyy Vodka. No carnaval deste ano, assinou a direção artística dos blocos Love Fest e SP Beats, patrocinados, respectivamente, pela Skol e Absolut. Hoje, a tinta de pintar tela foi substituída por maquiagem de marcas conhecidas no mercado, que fornecem kits gratuitamente ao artista.

“Ainda gosto da estética da precariedade e sou privilegiado por ter licença artística. Mas não crio rabiscos à toa. Num editorial de moda, sigo um briefing, estudo referências e sugiro materiais. Não faço questão de usar maquiagens caras, pois o importante é o resultado que o pigmento proporciona na pele”

Se na infância suas maiores inspirações artísticas eram Grace Jones e Madonna, hoje, quase 20 anos depois, Rapha também conquistou um poder de influência. E nesses discursos e simbioses com outros artistas (ele não gosta de trabalhar sozinho), novos temas a serem explorados tomam forma. Assim, ele colabora para guiar seus pares em suas próprias jornadas.

FOTO: Kalinca Maki

Quem escreveu

Picture of Italo Rufino

Italo Rufino

Jornalista pós-graduado em marketing com dez anos de experiência. Trabalhou na revista Exame PME (Editora Abril), nos sites Diário do Comércio e Projeto Draft e na ONG de urbanismo social A Cidade Precisa de Você. Natural de Diadema (RMSP). Pai de uma criança de 10 anos. Fundador da Emerge.

Inscreva-se na nossa

newsletter

MATÉRIAS MAIS LIDAS

ÚLTIMAS MATÉRIAS

NEWSLETTER EMERGE MAG

Os principais conteúdos, debates e assuntos de cultura, direitos humanos e economia criativa interseccional no seu e-mail. Envio quinzenal, às quartas-feiras.