Se você assistiu ao filme de terror psicológico Cam, dirigido por Daniel Goldhaber e escrito por Isa Mazzei, deve ter uma pequena ideia de como é a vida de cammodels, pessoas que prestam serviços sexuais de forma online. Apesar do filme trazer a história fictícia de uma menina que tem a sua conta roubada por uma sósia, a forma como o trabalho é retratado se aproxima do real – afinal, o longa é baseado na experiência da própria escritora quando trabalhou como camgirl.
Por diversas razões, como empoderamento, necessidade financeira e prazer pelo trabalho, milhares de pessoas se lançam a este vasto mundo – e com a pandemia de Covid-19, e os impactos socioeconômicos trazidos por ela, esse número aumentou.
Segundo o CâmeraHot, uma das principais plataformas de pornografia por webcam, entre março e abril de 2020, os cadastros de modelos cresceram e atingiram a média de 20 novos por dia em 2021, o dobro do registrado em 2019. Do outro lado, a demanda segue em alta: houve crescimento de 21% entre março e dezembro de 2020, quando a plataforma atingiu 400 mil visitantes por dia – hoje a média é de 230 mil.
Por lidar com sexo e prazer, muitas pessoas acham que o trabalho de cam é sinônimo de dinheiro fácil. É só ligar a câmera, ficar alguns minutos se exibindo e pronto, pingou dinheiro na sua conta. “Se tudo der errado, eu viro cam”; “se eu já faço isso de graça, porque não sendo paga?” e “deve dar muita grana” são frases comuns de ler nas redes sociais. Além dessas frases serem carregadas de preconceito, há a romantização do trabalho que, diferente do que muitos imaginam, exige tempo, estudo e investimento, como qualquer outra profissão.
É também necessário maturidade para lidar com situações delicadas e não se desrespeitar, principalmente em relação aos corpes dissidentes.
Uma das pressões rotineiras é que a modelo precisa fazer com que o cliente permaneça o maior tempo possível na vídeo-chamada, uma vez que seu rendimento é atrelado a duração do show. Nessas, elas precisam agradar quem está do outro lado da tela.
“Porém, o show também precisa ser agradável para você, e isso exige maturidade”, diz Babe, de 27 anos, que há quatro trabalha como camgirl em São Paulo. “Há muitos clientes nas plataformas, você não precisa agradar ninguém se desagradando, atenda quem bater a brisa com você.”
Domme Satan e Bellatrix Le Weirdo também tiram o seu sustento da pornografia digital, e defendem a responsabilidade ao falar sobre a profissão – sem romantização ou estigmas. Em conversas com a Emerge Mag, as três compartilharam as suas experiências, os perrengues e as descobertas de ser camgirl, além dos impactos da pandemia nos seus trabalhos.
“Só se deve fazer o que quiser, do jeito que quiser e se gostar do que está recebendo” – Babe, 27 anos, camgirl há quatro
Eu acordo, rego as minhas plantas, limpo a casa, tomo um banho, cuido da minha pele e, geralmente depois do almoço, produzo conteúdo. Normalmente, eu não entro na cam à tarde, sou mais madrugadeira. O ideal é entrar 20h e 21h, mas às vezes eu entro após a meia-noite e fico até às 5h. Se disser que tem regra, é mentira, depende da disposição também da libido.
O trabalho sexual precisa ser executado com tranquilidade e prazer, senão a gente cai na mesma lógica da grande indústria. Eu produzo por gosto e isso também paga as minhas contas.
Eu não tenho um emprego na cam; se eu não fizer, eu não tenho dinheiro. Mas, na prática é possível um equilíbrio: fico entre 3 e 4 horas por dia. Tem meninas que fazem 8h. Eu não consigo, gosto de exercer um trabalho sem a pressão de jornada.
A romantização é inevitável, só que na hora que você abrir a sua cam e ver um cara com um consolo na mão, é diferente. A realidade é bem mais grosseira. Lidar com a sexualidade das pessoas é algo muito sensível, e é preciso manter um respeito com o fetiche da pessoa ao mesmo tempo que eu mantenho um respeito comigo; afinal vivemos em uma sociedade que todas as pessoas têm atravessamentos. Geralmente, os clientes que ficam comigo por mais tempo têm mais de 30 anos, é um profissional liberal e de maior poder aquisitivo. Eu não sou branca, então uma boa parte dos meus clientes também não é.
Eu sempre fui uma pessoa sexualizada. Então, quando a água bateu na bunda, a primeira coisa que eu pensei foi: “vou fazer programa”. Mas o buraco é muito mais embaixo. Então, me cadastrei em uma plataforma e comecei a fazer cam. Criei uma cartela de clientes. Aí, eles começaram a enviar propostas de serviços presenciais. Antes da pandemia, eu praticamente só atendia presencial e vendia conteúdo online. Com a chegada da pandemia, não fiquei confortável de me expor de nenhuma forma, e voltei para a plataforma do CâmeraPrivê.
Já faz quatro anos que os serviços representam 100% da minha renda, e hoje em dia, para eu manter nível de vida que eu tenho com o trabalho sexual, teria que ser um trabalho com ensino superior completo. Mas leva um tempinho para chegar nessa estabilidade, porque a questão é ter clientes fixos. A parte chata do início é ficar online quando ninguém te conhece, ter que captar a pessoa, conversar com ela… Quando eu entro no site, os meus clientes já aparecem. Leva quatro, cinco meses para estabilizar, e ainda assim é gradativo.
Como eu tenho um corpo padrão, um black enorme e sou tatuada, o que eu mais recebo são elogios sobre o meu cabelo, uma fetichização disfarçada. O racismo pode vir de um jeito direto e agressivo ou de uma forma que te ‘afaga’. Costumo dizer para outras meninas que só se deve fazer o que quiser, do jeito que quiser e se gostar do que está recebendo. Você não deve nada para esse cara, tem macho o dia inteiro na plataforma, não precisa atender o macho escroto, vai ter outro que vai te tratar bem. Mas isso é um processo de autoconhecimento, é exercício da sexualidade.
A estigmatização também é inevitável, e o preconceito vai vir de muitas formas, desde o slutshaming (ridicularização ao chamar alguém de ‘fácil’ ou ‘vagabunda’) até a mina que te diminui. Não dá mais para fingir que fazer cam não é trabalho sexual, você tem que pensar “sou uma trabalhadora sexual”. Mas tem um paralelo entre se afirmar e se proteger. Para as pessoas que convivem comigo, eu deixo claro que trabalho como camgirl. Mas se estou em um ambiente que não é tão tranquilo assim, não vou me afirmar num lugar que possivelmente posso ser agredida.
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“Sinto orgulho do meu trabalho, meu dinheiro sustenta a casa toda” – Domme Satan, 23 anos, trabalha há dois anos como camgirl
Eu trabalho no CâmeraPrivê de quarta-feira até domingo, sempre à tarde e fico logada entre 4 e 5 horas por dia. Na pandemia anda meio fraquinho, então até estou aumentando as quantidades de horas, antes eram só três. Segundas e terças eu uso para tirar e editar fotos, gravar vídeos, fazer encomendas, programar tweets, e decidir o que vou postar durante a semana ou o mês (e quais dias tirarei folga). Eu gosto porque eu trabalho menos e ganho mais do que se eu trabalhasse oito horas por dia.
Geralmente, meus clientes são homens de mais de 30 anos, chegando a 80. Como eu trabalho com fetiche, os preços são mais caros, então reparo que os meus clientes, principalmente na pandemia, são pessoas com classe social mais elevada.
Eu também vendo conteúdos pelo Twitter, WhatsApp, Skype, Telegram e Xvideos. Hoje, meu trabalho me dá orgulho: meu dinheiro sustenta a casa toda. Eu olho para trás e penso o quanto eu sofri para chegar até aqui. É a realização de um sonho. No começo da pandemia foi excelente, acho que por causa do auxílio emergencial, foi a época que mais bombei. Desde dezembro, quando veio a última parcela do auxílio, tem caído muito. O país está péssimo financeiramente e está sendo bem ruim, minha renda caiu mais da metade. Por causa da pandemia, sinto que há mais vendedoras do que clientes.
A orientação que eu dou para quem quer ser camgirl é pesquisar, porque dizem que é maravilhoso, que você ganha R$ 10 mil por mês, que só tem cliente legal, mas não dá para entrar de cabeça e romantizar tudo porque não é fácil.
Precisa pesquisar para saber o que usar, o que está chamando mais atenção, achar um meio que você possa entrar e conquistar rapidamente o público. No meu trabalho não há exploração, eu tenho vontade de trabalhar, é cansativo, não é fácil, mas me dá prazer.
“Me irrita muito quem acha que é um trabalho fácil” – Bellatrix Le Weirdo, 30 anos, há oito é camgirl
Eu já dividi a minha geração de renda entre camgirl e várias outras atividades, mas hoje a cam representa 90% do meu rendimento mensal. A rotina é algo muito importante para todo mundo que tem um negócio próprio – como o camming é pra mim – e eu trabalho todo o tempo que estou acordada, inclusive entendendo o quanto outras domminatrix estão cobrando e ficando a par das informações. Acho que contando o trabalho online e offline, são de 8 a 9 horas por dia – e eu ainda tenho uma especialista em redes sociais que trabalha comigo. Trabalho de quinta a domingo e folgo às segundas e terças.
Não tem um perfil médio entre meus clientes, mas, como dominadora no Brasil, eu atraio muito esquerdomacho intelectualizado precisando expurgar uma culpa de ser homem através da humilhação.
Esses são os clientes que acabam ficando mais e representam 50% da entrada de grana. Os outros 50% vêm dos clientes que querem serviços rápidos.
A pandemia deixou meus clientes mais carentes e eu não tenho feito mais presencial, só no CâmeraPrivê, Webcammodels e por Skype. Aumentou um pouco a procura pelo serviço, mas também aumentou a oferta. No início da pandemia, eu voltei a trabalhar só como camgirl, e nichei em dominação. Eu faço cam desde 2013, então a pandemia foi boa para mim. Mas vejo que a maior parte das pessoas que começaram agora não estão fazendo por mais de 3 meses; 70% é show de siririca. Me irrita quem acha que é um trabalho fácil, para mim isso é um mix entre misoginia e putofobia. Não é só ser linda, mostrar a buceta e é isso. Aliás, isso não é nem metade do trabalho, que inclusive aceita mais diversidade de corpos do que Hollywood, então ser linda é um conceito bem amplo.
Eu recomendo investir em informação, cursos de outras camgirls. Lembre-se, é difícil entender as dinâmicas, você precisa de informação.
FOTOGRAFIAS: Kalinca Maki