Pesquisar
Close this search box.
Pesquisar
Close this search box.

Criolo e a sensibilidade de não ignorar existências

11/03/2019

Em Etérea, música com temática LGBTQI+, Criolo debate dissidências sexuais e de gênero ao lado de coletivos artísticos de São Paulo.

Uma lágrima escorreu pelo rosto de Kleber Cavalcante Gomes, o Criolo. Há cerca de dois anos, o cantor estava nos bastidores de um festival de música realizado no interior de São Paulo quando foi interpelado por uma cantora. Ambos dividiriam o mesmo palco. Na conversa, ela comentou que era do Grajaú, bairro natal de Criolo, na zona sul de São Paulo. A cantora também disse que era preta e trans – e que por este motivo já tinha sido ameaçada de morte.

“Foi um papo para entender que eu e ela somos irmãos e irmãs de quebrada”, diz ele. “O que nos uniu foi uma questão geográfica que só quem já viveu no Grajaú sabe como é.”

Mas, no fundo, Criolo não sabia de tudo. Ele, homem hétero cisgênero, não tinha tido as mesmas vivências que ela. Foi aquela verdade, falada com afeto, que o emocionou. A partir dessa emoção, Criolo escreveu a música”Etérea”, lançada há poucas semanas, acompanhada de um clipe e vídeo de making of.

A música é bem diferente do que o Criolo já fez. Até aí, nenhuma novidade. O rapper já transitou pelo samba, reggae, MPB e até bolero. A diferença está na estética. A canção aborda questões LGBTQI+, com passagens como “é necessário quebrar os padrões; é necessário abrir discussões; alento para alma; amar sem portões”.

A capa do single é ilustrada com um sorvete de casquinha colorido, remetendo a um arco-íris. A obra audiovisual foi feita em cocriação com performers de coletivos LGBTQI+ da cidade. Na ficha técnica, consta os nomes de Ákira Avalanx (House of Avalanx), D’Avila (Festa Dando e Popporn), Fefa (Animalia), Flip (Coletivo Amem e da Cia. Sansacroma), Juju ZL e Kiara (da Batekoo), Ana Giselle/Transälien (da Marsha Trans e Coletividade Namíbia) e Zaila (do House of Zion).

LEIA TAMBÉM: A Cultura Travesti pela voz de Malka

“Fiz o básico do básico em produzir “Etérea”: trabalhei com profissionais, pessoas de arte extremamente lindas, inventivas e maravilhosas”, diz Criolo. “Dessa situação, percebi como é nossa sociedade e a importância de dividir essas histórias.”

Num final de tarde de uma terça-feira, Criolo recebeu Italo Rufino, Karol Pinheiro e Kalinca Maki, respectivamente editor, repórter e editora de fotografia de Emerge Mag, para uma entrevista exclusiva sobre “Etérea”.

A conversa, com duração prevista de 45 minutos, se estendeu por uma hora e meia, abordando também política, economia, drogas e, claro, muito amor. Leia a seguir:

CRIOLO DURANTE A ENTREVISTA: O RAP NACIONAL PREGA RESPEITO E IGUALDADE

Emerge Mag: O rap brasileiro se popularizou lutando contra o racismo e denunciando a violência na periferia. Ao mesmo tempo, havia letras misóginas e homofóbicas (como um reflexo da sociedade brasileira). Como você avalia essa trajetória ao ponto de lançar uma música como “Etérea”?

Criolo: Justamente. Os responsáveis pelas letras eram as pessoas – e não a arte do rap. A sociedade é assim e a arte é reflexo – e pode ser usada como tentativa de melhoria.

Como foi esse processo de aprendizado e de composição de “Etérea” para um homem hétero e cisgênero?

São tentativas de aprendizado. E eu convivo com pessoas que não são sempre iguais a mim. Não estou dentro de uma caixa que não respiro e nem converso com ninguém. O outro me toca e há sempre um lugar que é do outro. E ele se torna o outro, não o outro a mim distante. Todas essas pessoas estão em órbita e eu também orbito, estamos nos encontrando. O grande lance é como cada um percebe o outro que lhe chega.

E como é esse processo de perceber o outro?

É de cada um. Às vezes, você dá uma palestra sobre libertação e você é a pessoa mais presa do mundo. É uma sublimação, é esse encontro eu-e-eu, que não tem data, cheiro ou hora para acontecer. Pode ser no banho, no trem, enquanto está dormindo ou ao primeiro respirar do dia.

Hoje, ouvimos muito sobre empatia, em reconhecer similaridades nos diferentes para conseguir entender suas dores. Você também acredita nisso?

Eu acho que esse conceito já está muito mastigado. Ao mesmo tempo, é uma tessitura muito linda que ajuda a explicar o processo, mas pode ser uma armadilha para distanciar. Hoje eu senti, mas amanhã posso não sentir. E aí? Mas quando é o outro que te visita o olho, é para vida toda. Você percebendo ou não, seu nervo óptico faz um registro e aquilo vai para a mente. A energia da alma do outro passa para a sua alma.

“O grande lance é como cada um percebe o outro que lhe chega. É sua sensibilidade de não ignorar as existências. Há pessoas que ignoram o outro por também não se enxergar.”

CRIOLO

O clipe de “Etérea” conta com a participação de diversas performers de coletivos do universo LGBTQI+, como Batekoo, Animalia e Coletividade Namíbia. Como se deu o relacionamento com os coletivos?

Foi maravilhoso, são seres humanos lindos. Por que seria diferente? É isso que não tem que ser novidade. Ué, são seres humanos, fazem arte e estamos fazendo um trabalho juntos. O que eu fiz não foi nada demais. Eu fiz o básico do básico: trabalhei com profissionais, pessoas de artes extremamente lindas, inventivas e maravilhosas. E dessa situação entendi como é nossa sociedade e a importância de dividir essas histórias.

Houve um trabalho de cocriação com os coletivos?

Eu fiz essa música há quase dois anos. E tem um porquê: você percebe as coisas ao seu redor. Só que, às vezes, vem pessoas bem pertinho de você e fala: “olha, deixa eu te contar como é que está o Brasil aqui para nós LGBTs”. E você guarda isso. No entanto, a parte musical foi feita nos últimos seis meses.

O primeiro contato com os coletivos aconteceu via Tino [Tino Monetti, diretor criativo do clipe de “Etérea”], Pedro Inoue [também diretor criativo do clipe] e D’Avila [Marcelo D’Avila, produtor cultural e artista da performance].

Eles fizeram toda a intermediação. Sem eles, seria impossível isso tudo acontecer. Por que quem sou eu para tocar nesse assunto? Não posso. Não tenho ferramentas, não tenho vivência. Seria uma soberba, seria esdrúxulo. Então, fomos batendo na porta dos coletivos, pedindo licença para apresentar a música e perguntar “o que a gente tem que mudar nessa letra?”.

E algo mudou?

A letra não, mas mudou o nome da música. Duas pessoas falaram que o nome não trazia algo positivo, mas a maioria gostou – o que poderia ser um pensamento e uma lógica rápida. Mas não. Pega duas pessoas numa amostra de 40 e transforma em 5% de uma população. É muita gente. Então, mudamos o título. Receber essa delicadeza de cada fala importa, porque você está lidando com a singularidade, com o ser, seus sentimentos e suas emoções.

Vou fazer um parêntese rapidinho: uma vez, eu participei de um encontro mundial de poesia na Academia de Artes de Berlim, com nove poetas de diferentes países. Foi feita uma antologia poética escrita em alemão num livreto. O público entrava num grande teatro e ganhava o livro e uma luzinha, que podia pendurar na cabeça para iluminar seu livreto. Todos os poetas declamaram na sua língua nativa. Porque entende-se que a sua fonética, a sonoridade que sai do seu corpo, da sua boca e da sua língua, faz parte da poesia. Onde eu quero chegar? Eu não mudei a letra de “Etérea”, mas com certeza dentro de mim houve uma mudança. A partir daí, eu canto diferente e a canção muda.

Para o videoclipe, havia sido definido as cores e uma estética. Imaginava-se filmar em plano aberto e alguns planos detalhes, mas ninguém chegou para as artistas e falou “faça isso”. Foi pedido para fazer o que o coração pedisse. A intenção foi deixar o clipe com a energia delas, enquanto nós daríamos suporte para colher o melhor possível do que elas já fazem.

O Brasil é hoje um dos países que mais mata LGBTQI+. Como acredita que o discurso em “Etérea” pode mudar esse cenário?

Eu acho que é mais uma peça, mais um fortalecimento que vai para o mundo. Uma boa sementinha. Agora, ninguém esperava que eu fosse fazer uma obra desse tema. E isso dá uma brecha. O pessoal ainda está em choque, está em dúvida se gosta de mim ou não. Não tem jogo ganho na arte quando você coloca algo que é incômodo. Fiquei emocionado de sentir no show do Circo Voador, realizado em 22 de fevereiro, algo respeitoso, com o público prestando atenção na letra. Uns ficavam sem jeito: “será que danço ou não?”. Mas conseguiram conviver – e isso, dentro da nossa sociedade, é uma conquista muito cabulosa.

Acho que em São Paulo vai ser do caralho, porque a comunidade aqui tem peso [o primeiro show será dia 15 de março, veja mais informações abaixo]. Não significa que a música vai estourar, mas será um acontecimento de 2019.

Por que você demorou dois anos para lançar essa música? É pelo momento que o país vive, com uma maior tomada de consciência da grande ameaça à população LGBTQI+?

Não, porque já está assim faz tempo. Com o advento da internet, entendem cada vez mais a importância de se falar das tensões sociais. Esse tema veio à tona para muitas pessoas que não sabiam que isso acontecia, mas as LGBTs estão sendo assassinadas desde sempre. 

Infelizmente, vemos pessoas que se apropriam de discursos de grupos minorizados em direitos sociais e econômicos para gerar lucro (como o Pink Money). Qual a diferença entre levantar e reverberar um debate em defesa de um grupo e a apropriação de pautas identitárias?

É porque não sou eu quem está falando, eu não apareço no clipe. Não foi racional fazer aquela letra, minhas letras não são racionais. Não é “agora eu vou sentar e falar desse tema”. É tudo tomado de uma emoção que vai além.

Mas o que aconteceu para você escrever a letra?

Apesar de eu entender a importância e de saber disso, até então não tinha feito nada. Mas, em meados de 2016, uma grande artista, com quem eu ia dividir o mesmo palco num festival de uma cidade do interior, chegou para mim e falou: “sabia que a gente é do mesmo bairro? Sabia que eu sou preta, periférica e trans? E sabia que já tentaram me matar?”.

Foi um papo para entender que eu e ela somos irmãos e irmãs de quebrada. Antes de ser essa tessitura de todas as questões extremamente importantes relativas a LGBTQI+, foi uma questão geográfica. Uma questão de quem sabe o que já viveu ali, no Grajaú, e mesmo assim não sabe, meu irmão. Porque é o outro. Aquilo me pegou [emocionado, Criolo respira fundo]. E, bem naquela época, aconteceu um massacre numa boate em Orlando [atentado na casa noturna Pulse, nos Estados Unidos, que deixou 50 pessoas mortas e 53 gravemente feridas, no dia 12 de junho de 2016]. Essas coisas vão te minando.

Não significa que, necessariamente, ia nascer uma canção, uma fotografia ou uma poesia. Tudo está ligado, mas não está ligado também, porque não é uma obrigação. É sobre como está seu coração e como isso deságua, entendeu? E a lágrima sincera que escorreu naquela conversa não teve views.

Em “Éterea” você canta: “Homo sapiens errou”. O que deu errado no ser humano? 

Existe uma luta por sobrevivência FODIDA que mexe com o que há de mais primitivo que temos. Agora, como cada pessoa lida com isso? Às vezes, uma pessoa pode dar um bom conselho para o outro não cair numa enrascada. Mas tem momentos que fica todo mundo ao redor, querendo o seu pedaço do bolo, querendo um teco da alma da pessoa. É necessário ter um olhar de candura, é necessário entender que só com afeto pode mudar o mundo.

Sem isso, você vai fazer o que? Vai assassinar as pessoas ou então vai se matar? Não vai resolver. O que resolve é pensar “como eu posso aprender com você?”.

“Minhas letras não são racionais. Ao compor, sou tomado de emoção. Mas como explicar a emoção numa sociedade que diz que todos nós somos plastificados?”

CRIOLO

Temos que entender por qual motivo há uma competição entre nós mesmos. O porquê desses abismos sociais, o porquê das nossas geografias serem como são, o porquê de sermos jogados às margens. Tudo é permeado por fatores econômicos, que estão ligados a um poder absurdo de pouquíssimas pessoas que manipulam nossas almas, que colocam vendas gigantescas em nós e nos dizem que assim é o certo. Existe uma estrutura que diz que é para gente se odiar, cara.

Como foi criado o Brasil? Invadiram aqui e mataram todo mundo. Trouxeram nossos irmãos da mãe África. Mataram um tanto lá, usaram até a morte um tanto aqui. Depois que os “libertaram”, os deixaram sem nada. Depois, os irmãos imigrantes que vieram para cá também sofreram. Que se lasque todo mundo. Foi assim que foi construída essa terra. Entende o tamanho da importância da compreensão, do afeto e do amor?

Vivemos num ambiente extremamente hostil, com números de guerra civil. Como equacionar isso tudo? Você cai em parafuso.

“A gente que vem de quebrada sabe o que é o sofrimento. Mas com a população LGBTQI+ é cinquenta e oito milhões de Everests caindo nos ombros dessas pessoas lindas.”

CRIOLO

É uma sobreposição de opressões.

Sim. A pessoa se perde. É um massacre na vida dessas pessoas desde que o mundo é mundo. Aquele que não estiver nos padrões de um tipo de ambiente que mantenha a taxa de lucro do sistema em dia será exterminado, mandado para o paredão. E se manda uma geração inteira para o paredão destruindo a escola pública e fixando um salário mínimo baixíssimo. “Ao não criar um ambiente para troca, experimentação e de estudo para o cidadão, você abre uma porteira gigante para a fomentação de todos os tipos de preconceitos.”

Ou quando a diversidade é segmentada no que pode ser útil ou não para o mercado.

Sim – e voltamos às questões econômicas. O sistema está interessado em quem mais pode movimentar a economia. Mas as LGBTQI+ também podem, são inventivos. E quando fazem, fazem para arregaçar. Se alguém põe a mão no bolso, pode ser 1, 5 ou 20 reais, é dinheiro. E, todos os dias, elas têm que lutar para sobreviver até o dia seguinte. E isso traz um desgaste!

De todas as meninas que nós conversamos, quando o Pedro perguntava “você tem um sonho?”, a resposta foi unânime: “viver até o próximo dia”. Eu acho que isso demonstra bastante como é nossa sociedade. Vários irmãos aos quais você pergunta “qual seu sonho?” respondem “ter um prato de comida hoje”. Isso já te rasga o coração, mas ouvir “não ser assassinada hoje” é foda. Temos muito a aprender com as meninas do clipe sobre dignidade, sobrevivência, amor, esperança. Porque elas não abrem mão de ser o que são mesmo sabendo que tem um alvo apontado para elas em cada esquina.

O projeto completo de “Etérea” conta com videoclipe, making of e site. Qual a importância de criar conteúdo que ultrapassa a música? 

Aconteceu naturalmente, não foi pensado. Junte as pessoas, dê um ambiente digno e profissional, pois as pessoas são dignas e profissionais. Aí sai um bom trabalho.

A minha fala no clipe vai até o hétero, mas quando junta com as falas das outras artistas, a comunidade LGBTQI+ também verá. E o hétero que me ouve vai ouvir elas também.

No final do making of, havia uma grande fala minha. Eu falei “mano, não pode ter essa fala minha, eu sou hétero e eu ainda fecho o projeto? Não é legal”. Mostramos para as meninas para ver o que elas achavam que poderia mudar, daí elas falaram o seguinte: “a gente já fala para nossa comunidade, mas queremos fazer cair a ficha de quem não é da nossa comunidade”.

LEIA MAIS: Aretha Sadick explode os padrões

Você acredita que interseccionar gênero, raça, classe, etnia e sexualidade seria uma ponte para a comunhão? 

Também. “Etérea” aconteceu porque alguém teve muita coragem de chegar e esparramar sua verdade na minha cara com amor, carinho e troca. São essas energias que fizeram “Etérea” acontecer.Tanto é que, no começo do making of, aparece a frase “A música é só uma moldura. A tela são vocês”, porque se uma pessoa na cidade está triste, toda a cidade está triste.

Há muitos comentários em seu Instagram contrários a “Etérea”, alguns de teor homofóbico. Como avalia esses comentários?

Bom, vamos cantar dia 15 de março em São Paulo e estão todos convidados [risos]. E quem for vai perceber que isso está totalmente ligado a amor. Totalmente ligado a respeitar o outro. O Rap e o Hip-Hop não prega o respeito e igualdade? Eu só estou seguindo os ensinamentos do Rap nacional.

Agora, falando sobre a música “Boca de Lobo”, que dá nome à nova turnê. O clipe é uma verdadeira retrospectiva de colapso do Estado Brasileiro, com corrupção, tragédias ambientais, descaso na saúde pública…

Sim. E você elencou coisas que poderiam ser evitadas. Temos inteligência humana e dinheiro para evitar isso, mas há a corrupção. Isso transforma o ambiente político, que poderia ser saudável, com representantes da sua comunidade, bairro, cidade, estado para mediar tudo aquilo que realmente é importante para o cidadão.

Como se organizar politicamente daqui para frente, num governo que tende a ser corrupto, truculento e de corte de direitos? 

Eu acho que tem que ter um outro jeito de fazer. Isso está num nível de impregnação muito grande, mas, mesmo assim, grana tem. Qual posição ocupamos no ranking de países ricos? 

Somos a oitava maior economia do mundo e já fomos a sexta.

Então, é um lugar muito absurdo de poder econômico, né? Mesmo todo mundo roubando, dava para todos os cidadãos terem qualidade de vida de classe média baixa, que seja. As universidades todas poderiam ser gratuitas. Toda população poderia ter, no mínimo, dois pratos de comida por dia, porque nós exportamos toneladas de alimentos para outros países. Então, tem como garantir o alimento e estudo.

A partir disso, cada um… [a assessoria interrompe nossa conversa para avisar que a entrevista precisa ser encerrada dentro de cinco minutos. Criolo diz “Não, vamo embora, vamô emboro” e estende a conversa por mais 30 minutos] …vai tecer como é sua vida, suas histórias.

E o Estado poderia economizar gastos futuros investindo, hoje, em educação básica e universidade de qualidade. Eu estava falando isso há pouco sobre o quanto poderia ser economizado [minutos antes de nossa entrevista, Criolo atendeu à TV Cultura], porque com acesso, você saberá qual a alimentação correta para seu corpo e vai ter lugar para você comprar esse alimento pelo preço justo. Significa que você não vai ficar doente, talvez, não o tanto que você já fica, mas aí não pode porque o político tem amigo dono de indústria farmacêutica que o ajudou em algumas coisinhas.


É uma comparação para se pensar. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é o maior produtor de alimentos orgânicos do Brasil. Ao mesmo tempo, o ex-prefeito e atual governador de São Paulo, João Dória (PSDB-SP), quis oferecer farinata para a população carente.

Você entendeu? Muita gente perde dinheiro com o bem-estar da população, mas isso é uma questão dessas pessoas específicas. Ao investir em educação, o Estado só vai economizar em longo prazo. Haverá muito mais invenções em todos os campos, como medicina, tecnologia, urbanismo e meio ambiente, porque vamos ter cidadãos saudáveis, com a mente boa, desenvolvendo suas ideias e tocando bons projetos.

Temos enorme bagagem cultural e lírica, mas nossa capacidade esbarra nas questões econômicas.

Se a estrutura é podre, mas o povo é bom, então não cabe uma reforma, mas sim uma revolução?

Essas palavras já estão tão desgastadas, mas eu diria que essas sensações, mesmo que antigas, fazem brilhar os olhos do jovem. Mas o jovem já tem a solução do amanhã. Nós temos que aprender com vocês, porque o jeito de fazer e a abordagem é diferente do que era 50 anos atrás. 

Você possui letras contrárias ao consumo de álcool, cigarro e drogas ilícitas (Vasilhame, Convoque Seu Buda e Duas de Cinco, por exemplo). Como avalia a situação da política antidrogas no Brasil?

Ah…

A pergunta é complexa.

É nada [risos]. Complexo é ver como eles se viram para ficar sempre enganando a gente sobre o óbvio. Vamos falar do básico: em qualquer lugar um garoto pode comprar um litro de cachaça e o Estado diz “tudo bem”. Quantos mil venenos tem no cigarro? O Ministério da Saúde adverte, mas se você quiser se matar, OK. O importante é coletar imposto.

Não temos direito a um prato de comida, mas você toma uma dose de cachaça por 50 centavos. Para que isso? É para arregaçar. O Estado cria um ambiente que tira toda a sua dignidade e isso vai influenciar diretamente na sua autoestima, em como você vê o mundo e como o mundo te vê.

[Criolo respira fundo]. Não dá para ser forte 24 horas por sessenta anos – está ali o alívio. É convidativo. O comercial da TV diz que você vai ser bem-sucedido. Que eu tenho que ser sociável, que eu tenho que estar sorrindo. Imagina! O Estado provoca e fala “você, com essa cara fechada, sempre reclamando, não vai atrair ninguém” e, assim, te mata a conta-gotas.

E quanto à legalização de outras drogas?

Eu acho que tem que ter um debate a partir das bases, senão pode virar uma coisa de só manter privilégio de quem não quer perder seu rolê de final de semana. Porque quem morre é sempre o molequinho que está na biqueira. Ele que é apontado como o culpado do tráfico de armas e drogas por todo o território nacional.

“E quando o menino de periferia leva um tapa ou um tiro na cara, a família brasileira dorme tranquila.”

CRIOLO

O Governo Bolsonaro deve descontinuar subsídios para a cultura, como o já anunciado corte feito no orçamento de patrocínios da Petrobras. Como não depender do governo e nem das marcas para produzir música no Brasil?

O poder público também é uma marca, né?

Sim, uma marca do grupo de poder que lá estiver instalado.

É, só que existe uma dicotomia. Você recorta para quem você está mandando a grana. Então, é sofrimento do mesmo jeito [risos]. E você ainda passa por vagabundo.

Por exemplo, uma menina que estuda 12 anos de dança, está tentando criar um projeto para levar seu saber, com afeto e amor, trabalhando questões pedagógicas, psicológicas e de expressão artística, sabendo o impacto social que isso tem, é chamada de vagabunda.

Será por causa da cor da pele? Por causa do bairro para o qual o projeto é voltado? Essa mesma pessoa com um projeto na Avenida Paulista poderia ouvir “venceu na vida”, mas, no Grajaú, ouve “puta, perdendo tempo com esses pobres só quer ser pobre também”. Sempre existe uma depreciação das expressões de arte vindas das pessoas dos lugares mais frágeis da sociedade, estruturalmente, por não se entender e aceitar que ali também existe processo intelectual.

Um resquício da escravidão é achar que o europeu e o americano do norte são melhores. A gente escuta “tem que matar todo mundo” de pessoas que, se a escravidão voltasse hoje, também iriam para o paredão. Você que se acha branco, indo para o exterior, será chamado de latino.

O DanDan me ensina muita coisa [DJ DanDan, que, além de ser parceiro de Criolo há anos, é um dos fundadores da Rinha dos MCs, um dos maiores berços de talentos do Rap paulista]. Ele chega com todo amor para o irmão e a irmã e fala “sabia que se o bagulho voltar nós vamos pro chicote? Você não vai passar. Já olhou para o seu nariz, sua bochecha e seu cabelo?”.

Porque, rapaz, se o cara mais pá da história do mundo andou 40 dias no deserto, num sol da Mesopotâmia, como é que nas fotos – fotos não, nem tinha fotos, né? – nas pinturas, ele tem uma pele finlandesa? No recorte imagético, ele tem rosto escandinavo. Me fala desse produto! Estou divagando, mas a gente aprende sobre a importância da criação da imagem e dos símbolos.

Muitos estudos, de vários cantos do mundo, já provaram que não era aquele rosto. Mas isso continua sendo completamente ignorado. Porque a questão não é a foto do cara, mas o que representa e o que é manipulado no mundo. E isso também está no Instagram. Não mudou.  

É que quem conta a história da humanidade são os brancos.

Mas, agora, é você também. “Num toque de tela, um mundo à sua mão. E no porão da alma, uma escada para solidão”. Tudo é muito pensado, pois já sabiam qual seria nossa reação quando essa tecnologia chegasse para a gente. Ninguém ia dar uma arma dessas, cabulosa [ele aponta para o celular], não tendo feito todo um trabalho no nosso cérebro, de camadas e camadas de informações e de condução.

Então usamos o smartphone e mídias sociais de forma errada?

Não é forma errada, a gente soa o que tem dentro. Mas nem sempre o que tem dentro é tudo meu, mas sim tudo o que me visita. A questão é como o mundo me conduziu até eu chegar aqui. Ninguém ia deixar uma tecnologia dessas vir para a gente sem saber como estava o padrão vibratório e o tanto de coisas que já colocaram na nossa alma.

E como criar rupturas?

[Criolo respira fundo] Passa por valorização real da escola e do professor, com qualidade e salários dignos. Com as famílias com condições de alimentar bem seus filhos, para que essa máquina [ele aponta para a cabeça] gire mais rápido e melhor.

E o artista? Onde entra?

Ele faz parte da sociedade, mas ele não é melhor do que ninguém. Às vezes, alguém pode falar para um cineasta que o filme dele mudou a sua vida, mas isso também pode ser falado para uma professora.

Às vezes, dentro de casa, você já tem seus heróis, seus artistas, que são seus pais, seus irmãos, os amigos de quebrada, de infância, as pessoas mais próximas. E a gente vai vivendo em sociedade e criamos referências. Vivemos nossos sonhos, dramas, felicidade – tudo num curto e frágil espaço de tempo.

“Eu acredito muito que nós temos uma força magnética vital que provoca os encontros, que faz realmente essa potência que é cada ser humano se expressar.”

CRIOLO

É por que somos matéria e viemos do mesmo lugar?

Não sei se do mesmo lugar, porque você não é só matéria. Algo habita nessa unidade de carbono. 

Você chama isso de consciência ou de alma?

[Silêncio longo] Eu acho que é o que há de mais sublime na gente e que faz o elo com essa natureza. Quando você está num lugar e se emociona ao ver o sol. Você chora de ver o céu porque parece que as estrelas estão beijando seu rosto. Você fica sem ar e, em uma fração de segundo, você vê que faz parte disso tudoDaí a importância da arte, porque ela, de algum jeitinho, lembra que você faz parte disso tudo.

Imagina uma rotina de 70 anos, tendo que acordar quatro horas da manhã; saindo de casa às 6h; batendo cartão às 7h; chegando em casa às 11 da noite; indo dormir à 1h, para acordar amanhã de novo. Toda, toda, toda a vida. E há pessoas que julgam – que se acham muito inteligentes – que as pessoas que vivem isso são embrutecidas, que são grotescas, que não têm condição de compreensão estética.

Na real, os chamados “embrutecidos” são aqueles que, ao passarem por algum lugar, reparam e se emocionam. Choram e vivem o drama do encontro. É o que há de mais sincero! Enquanto que o outro lá está falando 47 referências dos livros que nem leu, pegou num rodapé e se acha mais que aquele cidadão.

Porque todo mundo tem a necessidade de ser alguém para alguém, porque é muito ruim ser sozinho. E há pessoas que se sentem sozinhas, mas, ainda assim, tiram força desse lugar sublime. ■

SERVIÇO
Criolo Turnê Boca de Lobo
Sexta, 15 de Março. Abertura: 21:00 – Início: 23:00
Espaço das Américas. Rua Tagipuru, 795 – Barra Funda – São Paulo (SP)
Ingressos a partir de R$ 50. Compre aqui.
Classificação: 18 Anos

Com reportagem de Karol Pinheiro.

CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS
Foto de abertura: Gil Inoue
Fotos das performers: Gil Inoue e Pedro Inoue
Foto Criolo sentado: Kalinca Maki

Quem escreveu

Picture of Italo Rufino

Italo Rufino

Jornalista pós-graduado em marketing com dez anos de experiência. Trabalhou na revista Exame PME (Editora Abril), nos sites Diário do Comércio e Projeto Draft e na ONG de urbanismo social A Cidade Precisa de Você. Natural de Diadema (RMSP). Pai de uma criança de 10 anos. Fundador da Emerge.

Inscreva-se na nossa

newsletter

MATÉRIAS MAIS LIDAS

ÚLTIMAS MATÉRIAS

NEWSLETTER EMERGE MAG

Os principais conteúdos, debates e assuntos de cultura, direitos humanos e economia criativa interseccional no seu e-mail. Envio quinzenal, às quartas-feiras.