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De festa de rua a festival de milhares. O jogo virou para a Mamba Negra

24/06/2024

Festival de música eletrônica, feito por e para mulheres e LGBTQIA+, Mamba Negra comemora 11 anos em meio a profissionalização.

Em 2018, a Mamba Negra, um dos principais festivais de música eletrônica de São Paulo, foi tema de reportagem na Emerge. Na época, as fundadoras Laura Diaz e Carol Schutzer (Cashu) temiam pelo fim do evento. Entre os motivos, dificuldades para obter alvarás e certificados de órgãos públicos – os eventos acontecem em fábricas abandonadas – e lobby político de empresários de grandes casas noturnas, que marginalizavam os coletivos de artistas independentes.

Corta para 2024. A Mamba Negra comemora 11 anos de existência num festival com cerca de 30 artistas, entre elas Karol Conká, Marina Lima, DJ Jeeh FDC (“O Alfa do Mandela”, com quase 6 milhões de ouvintes mensais no Spotify) e estrela pop irani-holandesa Sevdaliza. Foram três palcos, 16 horas de festa e 5 mil participantes. Parece que o jogo virou, não é mesmo?

“A galera fala que a Mamba Negra é o mainstream do underground. Aí acaba chamando de undergrande”

Laura Diaz, fundadora da Mamba Negra
MAMBA NEGRA: espaços seguros, acessíveis e festivos para mulheres e LGBTQIA+

Para Laura e Cashu, a sobrevivência se deu devido à profissionalização da Mamba Negra dentro do universo de festas independentes da cidade. A operação ainda é em rede e autofinanciada – bilheteria e bar representam mais de 90% do faturamento de cada edição. Porém, a organização, o planejamento e os processos são similares ao de uma empresa. Hoje, há uma gestão horizontal dividida em áreas como produção, administração, recursos humanos e financeira.

Falando em finanças, todos os custos são bem calculados, e divididos em dois blocos. Equipamentos, estruturas, locações, alvarás, certificados e insumos para o bar, alimentação, limpeza e escritório representam 53% dos gastos. Custos com pessoas, que envolvem de faxineiras e bombeiros a DJs e performers, são 46%.

De acordo com Cashu, o cuidado administrativo é essencial para que a Mamba Negra continue favorecendo artistas, prestadores de serviços e produtores culturais independentes. Os profissionais precisam ser remunerados dignamente e terem boa visibilidade dentro do mercado cultural, o que permite mais chances de novos trabalhos e melhores cachês.

No caso da Mamba Negra, cachês e visibilidade são ainda mais importantes. Se no início a maior parte da equipe e atrações era de pessoas brancas e cisgêneras, desde a primeira aparição nas páginas da Emerge Mag a composição tem mudado. Hoje, mulheres e pessoas LGBTQIA+ são 83% nos cargos de liderança, 85% na equipe técnica e de produção e 92% no quadro artístico.

O bar do festival, por exemplo, é comandado por Raphael Caioni, bartender com dez anos de experiência e homem trans. Em média, 80% dos cachês do festival, que tem cinco edições ao ano, são pagos para mulheres e LGBTQIA+. Inclusive, parte dessas pessoas iniciou carreira artística e se profissionalizou em torno do festival.

“É uma enorme responsabilidade lidar com pessoas, principalmente com mulheres e pessoas LGBTQIA+, entre outras corpas dissidentes expostas a vulnerabilidades”

LAURA

FORTE COMO O CONCRETO, SENSÍVEL COMO A MENTE

Criada em 2013, a Mamba Negra nasceu com a proposta de criação de espaços de experimentação artística e política. Na escolha das locações, havia a ideia de explorar ambientes mal utilizados da metrópole – as cicatrizes geradas pelo plano urbanístico falho e a especulação imobiliária. Até 2018, foram quase 100 festas. Muitas edições foram gratuitas e em espaços públicos. Rolaram festas no Largo São Francisco, debaixo do Viaduto do Chá, na ocupação do MTST no Cine Marrocos, no Centro Cultural Ouvidor 63 (prédio do Governo do Estado ocupado há uma década por artistas) e na Casa Florescer (centro de acolhida para mulheres trans e travestis).

ALMA NEGROT: APARIÇÃO DIURNA DO FESTIVAL (Foto: Carlos Sales)

O multiartista Rapha Jacques [já perfilado pela Emerge] participou de algumas dessas edições. Há oito anos, ele é performer residente da Mamba, onde encarna a drag Alma Negrot. Natural de Gramado, no Rio Grande do Sul, Rapha viajou pelo Brasil por alguns anos até se instalar em São Paulo. “Quando cheguei na cidade, a Mamba foi o lugar que me acolheu e me deu voz”, diz ele.

Rapha vê o palco da Mamba Negra como uma utopia, onde a performance é capaz de criar atmosferas das mais variadas formas. Um simples transitar pelo ambiente do festival, repleto de estímulos visuais e sonoros, desperta sensações que são reverberadas internamente no artista e entregues de volta ao público por meio do seu corpo. Geralmente, Alma Negrot sobe aos palcos ao amanhecer, em meio aos primeiros raios de show, perante um público virado. Ela surge colorida, como uma aparição do dia.

“A performance está no campo do confronto, do movimento permanente e do devir. A Mamba abraçou a Alma Negrot, uma criatura de carne, osso, lixo e brilho”

Raphael Jacques, performer

DIVERSIDADE, EQUIDADE E INCLUSÃO

Nos 11 anos de existência, Rapha vê o festival como um momento de celebração para toda a comunidades LGBTQIA – e referência em diversidade, equidade e inclusão para o segmento de eventos. Ele cita o pioneirismo da Mamba Negra em adotar a Lista Trans Free, que dá gratuidade para pessoas trans, travestis e não-bináries.

A Lista Trans Free foi criada em 2015 por Ana Flor Fernandes, Ana Giselle, Maria Clara Araújo e Mayara Cajueiro, que organizavam eventos independentes em Recife. A ideia surgiu da reflexão das artistas e produtoras sobre a ausência de suas semelhantes em espaços culturais. Em 2016, Ana Giselle chegou em São Paulo e se integrou a Coletividade Namíbia, coletivo de artistas negros LGBTQI+ parceiro da Mamba. Na mesma época, a Lista Trans Free foi implementada no festival. No evento de 10 anos, em 2023, 10% dos ingressos foram para a lista trans. Houve outras duas listas de gratuidade: Coletivos Ballroom (7%) e PCD (1,5%).

GRATUIDADES: Pessoas trans, não-bináries, drags, PCDs e de coletivos de Ballroom não pagam ingresso

Uma vez que o publicou aumentou, surgiram novas oportunidades. Uma delas é a maior diversidade em gêneros musicais do evento, que tem abarcado funk, grime, rap, dubstep, brega e pop, além do tradicional techno e house. “O som está mais rápido, abrasileirado e latinizado”, diz Cashu. O resultado é uma mistura de gerações, desde frequentadores das primeiras edições até jovens que vem das periferias da região metropolitana de São Paulo.

Embora aconteça edições com cinco mil pessoas, Laura e Cashu afirmam que o posicionamento independente e underground continuam. “O fato de ser um festival autofinanciado faz com que a maior parte do risco seja nossa”, diz Laura. “Ao mesmo tempo, quando dá certo – e tem dado – toda a cena é beneficiada”.

De 2019 a 2023, o custo do evento, por usuário, cresceu 150%. Por sua vez, o valor médio do ingresso aumentou 87% – no mesmo período, a inflação foi de 51% (IGMP). Elas dizem que os custos aumentaram mais ao melhorar a experiência dos frequentadores, houve edições que contaram com café da manhã gratuito por exemplo.

Na última edição do festival, realizada em maio, os valores dos ingressos foram de R$ 60 (venda antecipada e com horário de chegada) até R$ 200 (porta). Para fins de comparação, o ingresso de uma tradicional casa de música eletrônica de São Paulo, num evento padrão de sábado, custa a partir de R$ 80. Já a última edição brasileira do icônico festival de origem alemã Time Warp, que aconteceu no Vale do Anhangabaú (espaço público concedido para a inciativa privada), teve preços entre R$ 480 e R$ 2.000.

Por fim, Laura, que também é vocalista da banda Teto Preto, e Cashu, DJ internacional, falam que o lance é sobre criar espaços seguros, acessíveis e festivos por e para mulheres e LGBTQIA+. É sobre liberdades criativas, sexuais e de gênero e consciência. Sendo assim, nos vemos na pista.

CASHU E LAURA: liberdade criativa, sexual e de gênero (Foto: Kalinca Maki)

#FICADICA: A Mamba Negra acaba de lançar o filme A Pista – The Track – La Piste, realizado durante a pandemia. Parte da instalação A Monstra e realizada a partir do convite do Goethe Institute para a exposição Techno Worlds, o curta-metragem conta a história da Mamba por meio de imagens de lugares que receberam edições do festival. Numa antítese, aborda as potências dos ambientes por meio do vazio causado pela pandemia e descanso do poder público. Com o conceito desenvolvido por Laura, Cashu, Raphael e Alexandre Lindenberg, o filme traz relatos de outras artistas e produtoras culturais, como Alzira Incendiária, Dileo, Mafalda Ramos, Pauletxy Lindaselva e Pi. “São vozes fantasmagóricas que constroem esse discurso emocionante e emocionado da ferida histórica que abrimos nas cidades com as festas independentes”, afirma Laura. O filme mostra os desejos de conquista em vida das artistas.

Edição: Italo Rufino
Fotografias: Kalinca Maki (Laura e Cashu), Carlos Sales (Alma Negrot) e arquivo Mamba Negra (festas)

Quem escreveu

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Antônio Moraes

Um paulista-mineiro movido por cultura, esportes, gastronomia e espírito urbano. Graduado em jornalismo pela Universidade Federal de Minas Gerais, com passagens pelo Instituto Cultural Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais (BDMG Cultural) e Livraria da Travessa.

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