Diáspora indígena: a arte de Uýra na proteção da Amazônia

25/10/2025

Para a ativista indígena travesti criada na periferia de Manaus, apenas movimentos populares organizados podem frear o desmatamento.

*Reportagem de Samara dos Santos Machado.

Há menos de um mês para a Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30), que será realizada em Belém, no Pará, a artista visual e ativista Uýra está descontente.

Indígena, travesti (dois espíritos) e criada na periferia de Manaus, Uýra diz que o encontro de líderes mundiais, cientistas e organizações da sociedade civil exclui os povos originários das decisões que impactam os seus próprios territórios. Para ela, que não vislumbra soluções em curto prazo, a COP30 tem se mostrado mais um encontro de negócios.

E como podemos mitigar os efeitos das mudanças climáticas, Uýra?

“Somente a teimosia das juventudes e os movimentos populares organizados são capazes frear a destruição causada por latifundiários, garimpeiros e outros desmatadores de floresta”.

Uýra, artista visual e ativista.

Foi tendo sido parte dessa juventude teimosa que Uýra conquistou espaço no cenário de arte contemporânea. Desde 2016, a artista realiza performances, instalações e projetos audiovisuais. Seu último grande trabalho foi a exposição Memórias de Alagamento, realizada no Museu de Arte Moderna de Bogotá, no primeiro semestre de 2025.

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Por meio de instalações, vídeos, gravuras, stencil e fotoperformance, totalizando 6 obras inéditas, Uýra explora a água como portadora de memória, resistência e identidade indígena, denunciando a destruição ambiental e o deslocamento forçado, tanto na Amazônia quanto em centros urbanos, como Manaus e Bogotá.

“A exposição trata das múltiplas relações ambientais, sociais, culturais, políticas e espirituais que as águas possuem com os territórios da Colômbia e do Brasil”, diz ela.

O projeto contou com o apoio do Conselho Indígena Muíscas de Bosa, povo originário do território de Bogotá, e da embaixada do Brasil na Colômbia.

PROTAGONISTAS DA PRÓPRIA HISTÓRIA: artistas indígenas da diáspora mesclam cultura ancestral com novas tecnologias (foto: Katja Hoelldampf).

DIASPORA INDÍGENA

Criada na Comunidade Nossa Senhora de Fátima 1, periferia da zona norte de Manaus surgida nos arredores de um território industrial construído no meio da floresta, Uýra vive no que chama de “processo público de uma autodeclaração enquanto indígena”.

Suas obras, saberes e vivências se relacionam com uma ferida antiga e pouca falada no Brasil: a diáspora indígena. O termo se refere ao processo histórico de dispersão que os povos originários realizam devido às múltiplas formas de violência que os atingem, como ameaças e assassinatos, invasão, poluição e destruição de seus territórios e abandono estatal, sendo que este último cria um vácuo de poder que retroalimento o ciclo de violência.

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Para os indígenas que são forçados a viver nos centros urbanos, a situação ainda está longe de ser digna. De acordo com uma recente pesquisa do Instituto Trata Brasil, a Amazônia Legal abriga 29 dos 50 municípios com os piores indicadores de saneamento básico do Brasil. 

Artistas da diáspora indígena costumam mesclar o conhecimento ancestral, como grafismos tradicionais, rituais de cura e cosmologias (origem, estrutura e funcionamento do universo), com novas mídias e linguagens contemporâneas, que vão desde a música eletrônica ao uso de drones para captação de vídeos.

Reação ao processo colonizador e as narrativas eurocêntricas, outro diferencial de artistas da diáspora indígena é enorme vontade de serem protagonistas de suas histórias, sejam elas de sangue, suor, amor e lágrimas.

No caso de Uýra, a performance a torna uma “árvore que anda”. Suas composições, muitas vezes com expressões de angústia e repletas de elementos orgânicos, como lama e folhas, nos levam a crer que a artista acabou de sair debaixo da terra.

“Lutar pela preservação das florestas e dos povos indígenas por meio da arte se deu pela facilidade de acessar o imaginário e o coração das pessoas, que há muito tempo estão desconectados da chamada Natureza.”

Uýra, artista visual e ativista.

Graduada em biologia e mestra em ecologia, Uýra iniciou suas montações em 2011. No entanto, foi somente em 2016 que se encontrou como artista visual, ao participar de uma ocupação com outros artistas pelo retorno do Ministério da Cultura.

Três anos depois, realizava a primeira exposição em uma instituição de arte, a Galeria do Largo, em Manaus, com curadoria de Keila Sankofa e apoio de Cristovão Coutinho.

Desde então, já são mais de 50 exposições coletivas, nacionais e internacionais, e cinco exposições individuais, incluindo sua estreia no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

Fora do Brasil, há destaque para a participação na Bienal Manifesta!, em Kosovo, no Leste Europeu, e obras no acervo do Museu de Arte Contemporânea de Turim, na Itália, e nos norte-americanos Institute for Studies on Latin American Art of New York, Currier Museum of Art e Los Angeles County Museum of Art.

IMPACTO INTERNACIONAL: Uýra acumula mais de 50 exposições e 14 prêmios, de Manaus a Oslo (foto: Lisa Hermes).

ARTE CONTEMPORÂNEA INDÍGENA E “AS COISAS IMPORTANTES”

Uma vez que usa o próprio corpo para contar histórias, Uýra registra suas performances em fotografia e audiovisual. Neste sentido, ela estrelou o documentário Uýra – A Retomada da Floresta.

O longa narra sua viagem pela Amazônia em uma jornada de autodescoberta e interação com outros jovens indígenas sobre o papel compartilhado enquanto “guardiões das mensagens ancestrais da floresta amazônica”.

Lançado em 2023 e com direção de Juliana Curi, o filme rodou o mundo e ganhou 14 premiações em diversos festivais, de Manaus a Oslo, na Noruega. O filme também aborda como o colonialismo tentou, e tenta, apartar as sociedades tidas como civilizadas de uma visão de mundo que concebe nossos corpos como plurais e parte intrínseca da natureza que nos rodeia.

“Arte Contemporânea Indígena, como bem disse o artista e escritor Jaider Esbell, é uma armadilha para atrair curiosos. Quando eles chegam perto, nós falamos de coisas importantes.”

Uýra, artista visual e ativista.

As “coisas importantes” são a luta pelo reconhecimento, proteção e preservação dos territórios dos povos originários, suas culturas e seu direito ao acesso adequado à saúde, educação e liberdade.

Por exemplo, de acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o desmatamento da Amazônia aumentou em 8,4% de agosto de 2024 a junho de 2025, por causa de incêndios.

Além disso, ainda segue em debate as consequências do Projeto de Lei 2159/2021, apelidado de “PL da Devastação“, que altera as regras do licenciamento ambiental no Brasil.

Após aprovação na Câmara dos Deputados e vetos presidencial, que ainda serão analisados pelo Senado, foi criada a Medida Provisória 1308/25.

A medida cria a Licença Ambiental Especial (LAE), que simplifica e acelera concessões para atividades e empreendimentos considerados pelo Poder Executivo como “estratégicos”, ou seja, que tendem a causar grande impacto.

Vale lembrar que a barragem da Vale em Brumadinho, em Minas Gerais, era considerada de médio impacto. Em 2019, o seu rompimento espalhou lama tóxica por cerca de 20 municípios e contaminou rios e vegetação ao longo de 300 quilômetros, além de causar 272 mortes diretas.

FOTO DE ABERTURA: Chaos, Série Mil Quase Mortos, 2018 (foto: Matheus Belém).

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Revista digital de cultura, direitos humanos e economia criativa interseccional e consultoria de diversidade e impacto social (ESG).

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