Reportagem de Leonardo Pereira, aluno de jornalismo da Universidade São Judas Tadeu, realizada via convênio de ensino dual com a Emerge Mag, sob supervisão de Jaqueline Lemos.
Em uma noite chuvosa de São Paulo, um sonho quase terminou antes mesmo de começar. No carro, a caminho do aeroporto de Viracopos, estavam Rafael Santos — ou Rafa Tchê, como é conhecido —, seu primo ao volante e dois amigos no banco de trás. O voo de Rafael estava marcado para às 22h. Tudo indicava que seria uma noite tranquila, em que, finalmente, o maior objetivo de sua vida se realizaria: jogar futebol na Europa.
O clima no carro era de orgulho e alegria; todos compartilhavam o mesmo entusiasmo. O sonho que Rafael cultivava desde pequeno parecia, naquele momento, pertencer a todos ali. Mas ninguém imaginava que uma reviravolta estava prestes a acontecer. No meio do caminho, o inesperado. O primo de Rafael precisou frear bruscamente, e o carro se chocou contra a traseira de um caminhão. Logo depois, outro veículo colidiu contra o deles, resultando em um grave acidente na Rodovia Pres. Tancredo Neves.
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O que antes era um momento de felicidade e esperança rapidamente se transformou em desespero. Ninguém entendia o que tinha acontecido. E, para Rafael, havia um medo ainda maior: o de que seu sonho de uma vida inteira pudesse acabar ali mesmo, naquela noite. “Se eu não conseguisse embarcar naquele avião, não era para ser”, disse Rafael, desolado.
Foi então que surgiu um caminhoneiro, curioso com o que havia acontecido. Ao ouvir o relato do primo de Rafael, que explicou a importância do voo, o homem tomou uma decisão digna de roteiro de cinema. Ele ofereceu ajuda e levou Rafael até o aeroporto.
Em uma corrida contra o tempo, Rafael conseguiu chegar a tempo e embarcar no avião, poucos minutos antes de os portões fecharem. “Comecei a acreditar que Deus tinha um propósito na minha vida. Depois de tudo o que aconteceu e mesmo assim eu consegui viajar, é porque era para ser”, reflete Rafael, com a convicção de quem transformou um episódio quase trágico em um recomeço.
UM SONHO NASCIDO EM GUAIANASES
Rafael Santos, 25 anos, nasceu e cresceu em Guaianases, periferia da zona leste de São Paulo, uma região conhecida pelas adversidades. “Quem você lembra que saiu de Guaianases e venceu na vida? MC Kekel? Quem mais?”, pergunta ele, com o orgulho de quem carrega nas costas a responsabilidade de mudar a narrativa para sua família e para sua comunidade. Rafael foi o primeiro de sua família, e talvez de toda a favela Água Vermelha, a pisar em solo europeu.
Desde os oito anos de idade, Rafael sabia exatamente o que queria: ser jogador de futebol. Começou sua carreira no Paulistinha Jardim Robrú, um clube de várzea, e logo se destacou. Passou por clubes como Flamengo de Guarulhos, União Mogi, Portuguesa e, posteriormente, pelo Esporte Clube Vitória, onde ficou por cinco anos. Apesar de não ter jogado no time principal do Vitória, Rafael acumulou experiência e, sobretudo, perseverança, qualidades que o moldaram para encarar os desafios da profissão.
Hoje, aos 25 anos, ele atua como meia-atacante em Portugal, onde já está há dois anos. Seu objetivo é claro: chegar ao maior clube do mundo, o Real Madrid. “A melhor sensação do mundo foi chegar aqui. Passou um filme na minha cabeça, de onde eu vim e para onde estou indo. Portugal, Europa, meu sonho se tornando realidade”, declara Rafael, emocionado.
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MOMENTOS INESQUECÍVEIS NO FUTEBOL
Na última temporada, Rafael foi uma peça-chave para seu time, o Lusitânia dos Açores, ao ajudar o clube a subir para a terceira divisão do Campeonato Português. Em 32 jogos, marcou quatro gols e deu cinco assistências, sendo reconhecido como um dos destaques da competição.
Mas o momento mais marcante de sua carreira até agora aconteceu na Taça de Portugal, quando o Lusitânia enfrentou o Benfica, maior clube do país.
“Foi coisa de outro mundo. Quando vi aqueles jogadores que só conhecia pelo videogame, fiquei muito feliz. Me senti um jogador de verdade naquele momento.”
Rafael Tchê, jogador de futebol
Nesse jogo, Rafael protagonizou um lance memorável, aplicando um chapéu em João Mário, o camisa 10 da seleção portuguesa. Apesar da derrota por 4 a 1, a experiência foi inesquecível.
Nesta temporada, no entanto, Rafael tem enfrentado desafios. O Lusitânia ocupa a 10ª posição no Grupo B da Liga 3, com apenas uma vitória em 11 jogos. Lesões também prejudicaram seu desempenho. Ainda assim, Rafael mantém a mentalidade firme e acredita que o trabalho duro é o caminho para voltar aos melhores momentos.
O APOIO QUE FAZ A DIFERENÇA
Tornar-se jogador profissional é uma conquista para poucos. Segundo um estudo da Revista Brasileira de Ciências do Esporte, apenas 1,5% das crianças que sonham em ser atletas conseguem alcançar esse objetivo. De acordo com Rafael, o apoio da família foi essencial para progredir profissionalmente.
“Minha família sempre me apoiou, isso fez uma diferença enorme. Muitas vezes pensei em desistir e, por causa deles, não o fiz.”
Quando assinou seu primeiro contrato profissional, com o Flamengo de Guarulhos, Rafael sentiu que seu sonho começava a se concretizar.
“Naquele momento, pensei que poderia ser um jogador profissional. Logo em seguida veio o Vitória, e fiquei muito feliz que meu sonho estava começando a dar certo.”
Perguntado sobre quem é sua maior inspiração no futebol, Rafael responde sem hesitar: “Cristiano Ronaldo”. O português, que saiu da Ilha da Madeira para conquistar o mundo, é um exemplo tanto dentro quanto fora de campo. “Tem muito a ver com o jeito que ele trabalha, a família e sua mentalidade.”
Mentalidade, aliás, é uma palavra que Rafael repete com frequência. Ele acredita que a persistência e a confiança em seu próprio sonho foram fatores determinantes para chegar onde está. “Eu acho que não estaria aqui se não acreditasse desde o começo.”
Agora, o foco de Rafael é claro: continuar trabalhando. “O objetivo maior é chegar no alto nível, ganhar dinheiro e viver bem com a minha família.”
Enquanto isso, ele inspira crianças e jovens de sua comunidade, que veem nele um exemplo de que é possível vencer, mesmo começando em um cenário adverso. Sempre que retorna ao Brasil e visita Guaianases, Rafael é recebido como um símbolo de esperança. “Eles querem conversar comigo, ser como eu. Eu os inspiro. Isso me faz acreditar que tudo valeu a pena”, diz ele.
Com determinação, foco e o apoio de quem acredita em seu potencial, Rafael Tchê segue sua jornada no futebol. Um sonho já se realizou, mas muitos outros ainda estão por vir.
FOTO DE ABERTURA: Paulo Arruda.