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Pospornô: a pornografia da diversidade

31/05/2021

Pessoas em uma performance de pornô dissidente, da Edyi Porn. Aparecem alguns corpes e uma cabeça com o rosto na bunda de outra pessoa e, em uma janela atrás, uma bunda de calcinha vermelha e um tronco

Frustrades com o pornô tradicional, performers filmam suas próprias histórias de sexo com protagonismo feminino, trans, não-binário e PCD

*Esta reportagem contém linguagem neutra de gêneros gramaticais.

Uma dentre as milhares de construções que o patriarcado empurra às pessoas designadas mulheres ao nascer é a negação da própria sexualidade e exploração de seus desejos. Me lembro que a primeira vez que assisti a um filme pornô foi por volta dos 12 anos, numa madrugada escondida dos pais e ligada no Multishow. Depois, vi mais algumas vezes, sempre acompanhada des amigues ou com e namorade. No segundo caso, assistia para dar uma variada na hora do sexo. Naquela época, eu (bem ingênua) achava que o pornô mainstream era referência para dois adolescentes que não faziam a menor ideia do que era sexo. Ao mesmo tempo, quando analisamos o consumo do pornô na socialização masculina, não assistir é motivo de piada e exclusão na rodinha de amigos. Em um país conservador (#brasil) a educação sexual ainda é um tabu. Um caso que ilustra o cenário é o medo do “kit gay” e a mamadeira de piroca.

Nesta bola de neve, crianças e adolescentes têm a indústria pornográfica como referência para a sexualidade – e isso é uma cilada. Calcada na heteronormatividade e na busca por maximizar seus lucros, a pornografia mainstream reproduz estereótipos machistas, racistas e LGBTQIA+fóbicos e fomenta a violência contra as mulheres. Numa simples busca no Google, é possível encontrar centenas de denúncias. Uma das últimas, revelada pelo site americano Vice em dezembro de 2020, envolveu quarenta vítimas de tráfico sexual pela empresa Girls Do Porn. Segundo a reportagem, jovens eram contratadas e depois intimidadas a fazer sexo diante de câmeras; depois, as imagens eram distribuídas em sites como PornHub sem o consentimento delas. 

O PÓSPORNÔ (OU PUTARIA DA DIVERSIDADE)

Eu, repórter que vos escreve, sou uma mulher cis e branca e decidi cortar de vez a pornografia da minha vida após dar meus primeiros passos no feminismo. Não conseguia mais ver outra mulher em uma posição subalterna, sexualizadora e servindo às vontades de uma indústria patriarcal e violenta. Mas o tempo passou e, graças es deuses, encontrei uma luz para voltar a sentir tesão frente a uma tela. O ano era 2019, estava na casa de uns amigues e assisti a um filme de pornô dissidente. Também conhecida como póspornô, essa vertente hackeia imaginários sexuais e tem como protagonistes dos filmes mulheres, travestis, pessoas trans e não-binárias, intersexo, corpes não-branques e com deficiência. Ou seja, é uma gostosa putaria da diversidade.  

De acordo com Beatriz Bianca Barbosa da Silva, no artigo “Olhar Desviante: os cinemas pornôs e o desenvolvimento da pornografia como linguagem alternativa”, o póspornô é uma forma não comercial de ativismo sexual, procurando questionar a própria indústria da pornográfica. Ela complementa:

“No póspornô, as pessoas ignoradas pelo pornô hegemônico, ou utilizadas para essa representação de uma fantasia sexual visualizada, assumem o lugar de destaque onde podem atuar expressando a sua própria subjetividade e sexualidade, sendo protagonistas do seu próprio enredo, não como forma de promiscuidade e sim uma crítica ao sistema opressor e institucional”

Isso quer dizer que, ao abrir um vídeo de póspornô, é mais provável que você veja uma pessoa sozinha se masturbando e explorando o próprio corpo – e não um monte de pixel de penetração violenta. 

Numa conversa com psicóloga e psicanalista Drielly Lopes, mestra em Educação Sexual pela UNESP e membra do Coletivo de Psicanalistas e Feministas DIVAM, entendi que o póspornô subverte a lógica da indústria de expor um corpo passivo e disponível a outro que está em uma posição hegemônica e que, por isso, pode fazer dele o que quiser; o que mantém a manutenção do espaço de poder de homens cis brancos. “Existe uma variedade muito grande de corpes desejantes”, diz Drelly. “Olhar essa diversidade faz com que as sexualidades em jogo não sejam somente aquelas que estão em lugar hegemônico.”

No Brasil, o póspornô possui um mercado restrito, mas tem ganhado espaço. Fundado em 2019, o coletivo Ediy Porn produz pornô dissidente. Formado por sete performers de diferentes áreas artísticas que estavam frustrades com o pornô tradicional, o coletivo tem como premissa a defesa do DIY – “faça você mesme”, no bom português. Dessa forma, os filmes são cocriados entre elus, que desenvolvem o roteiro e edição e protagonizam as cenas. Paulx, uma das fundadoras, comenta:

“Trabalhamos com técnica e audiovisual, mas o caráter ‘faça você mesme’ deixa mais fluido e não enrijece a produção. Se a cena não rolar do jeito planejado, vai rolar de outra maneira. É um modo de produzir que vem do recycle, do não desperdício. A gente faz nossos filmes do jeito que dá e o que a gente faz é bafo – no fim, o que vale é o tesão”

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DESEDUCAÇÃO PORNOGRÁFICA 

No catálogo da Ediy Porn, a diversidade de corpes e narrativas é evidente, tanto que os materiais têm durações diversas, de quatro a 30 minutos, e vão desde cenas de poesias masturbatórias com cactus até uma orgia satânica babado. Um exemplo é o vídeo SaTrans, dirigido pela Cabaça Produções, que é uma narrativa audiovisual sensorial (para uma melhor experiência, é recomendado ouvir de fones de ouvido uma vez que os sons fazem parte da história). A cena é estrelada por Gabs Ambròzia, performer e produtora que aparece (maravilhosa) de chifres demoníacos. Ela explica que, apesar do filme ter um roteiro prévio, o desenvolvimento das cenas é orgânico.

“O pornô dissidente implica uma produção mais caseira com proximidade entre a narrativa e o público. Há uma atuação, mas não é aquela cena de ‘um entregador de pizza toca a campainha e rola sexo’. No nosso caso, é uma grande performance de putaria real”

Para a produtora Angeli Cristie, que também integra a Cabaça, há a preocupação em trazer outros desejos e tesões nas cenas. Canafístula, diretore criative e produtore cultural da Cabaça Produções, complementa dizendo que um dos maiores diferenciais é a relação de interesse mútuo e bem-estar entre es artistes. “A cena é carregada de intimidade, o que cria outras camadas e influencia na estética e no cenário”, diz Canafístula. “Por exemplo, transformamos um quarto de motel para parecer o quarto da sua casa.”

Para Hiperlinque, integrante da Ediy Porn, o objetivo a longo prazo é afetar a estrutura de como o pornô constrói os nossos imaginários sociais e o seu funcionamento enquanto linguagem e meio de difusão. “Há uma diferença ao assistir uma performance artística e uma pornográfica”, diz. “Apontamos para o mercado pornográfico (e não de arte), porque queremos que as pessoas se masturbem assistindo aos vídeos”.

Também integrante do Ediy Porn, Paulx diz que o coletivo atuam na “deseducação do pornô”, um movimento para descolonização do mercado voltado a criar outras dinâmicas e referências para as relações sexuais. “Produzimos a nossa própria pornografia e a compartilhamos com pessoas que querem sentir prazer com as nossas histórias”, afirma.

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DEMANDA CRESCENTE

Recentemente, a Ediy Porn completou um ano de existência, o que demonstra que há demanda. Também integram o coletivo es artistas Aló, Dandy, Jeffe Grow, Profânia, Tormenta Cósmica e Wand Albuquerque.

Se as pessoas estão procurando cada vez mais essa intimidade, podemos dizer que o conteúdo distribuído via plataformas de camming tem similaridades com o póspornô? Paulx afirma que sim:

“Quando a pessoa faz um show de camming no OnlyFans, por exemplo, é ela com o seu próprio desejo. Esse tipo de conteúdo tem sido valorizado dentro da pornografia, pois o público demonstra cansaço com o pornô de estúdio, que é muito repetitivo”

Para Canafístula, que complementa a renda com venda de vídeos ao vivo, es corpes dissidentes são propícios à indústria pornô, uma vez que são sexualizados e estereotipados na sociedade. “Estamos expostes a esses caminhos, uma hora ou outra receberemos propostas”, diz elu. “Tem pessoas que não conseguem lidar e se retiram, e tem outras que fazem disso seu trabalho e dia a dia”.

E como ninguém vive de oxigênio, para fazer o acué girar de uma forma mais massa, fica a dica de parar de piratear pornografia mainstream e passar a consumir (e colocar o dinheiro) em organizações coerentes com os nossos valores. Entre as dificuldades da Ediy Porn está uma comum a muitos coletivos independentes: tornar o projeto rentável. Além de editais, inscrição em festivais e prêmios, o site vende planos de assinatura a conteúdos exclusivos. O coletivo, assim como a Cabaça Produções, também oferece serviços de produção, gravação e edição de sextapes personalizadas. Quer produzir seu próprio pornô babado, sozinhe ou com seu parceire ou parceires? Chame elus. Aí, quando quiser ver estrelas, poderá assistir sempre (e sem culpa).

SERVIÇO
Ediy Porn
Plataforma de pornografia dissidente 
www.ediyporn.com
Assinatura a partir de R$ 20,00 (um mês)

FOTOGRAFIAS: Nu Abe

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