*Reportagem de Samara Machado.
De acordo com o último censo escolar do IBGE (2024), mais de 9 milhões de jovens, entre 15 e 29 anos, deixaram de estudar antes de terminar o ensino médio. Entre as mulheres, os principais motivos da evasão escolar são gravidez, tarefas domésticas e necessidade de cuidar de criança, adolescente, idoso ou pessoa com deficiência.
Natural do Jardim Ângela, zona sul de São Paulo, Laís Barbosa Santos, 20 anos, não entrou na estatística. Além de concluir o ensino médio, ela ingressou na graduação de fonoaudiologia, na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
Laís é uma das primeiras pessoas de sua família a acessar o ensino superior, a exemplo da mãe que conseguiu chegar à universidade anos depois de ter terminado o ensino médio. A jovem conta que a experiência universitária da mãe foi marcada pelas dificuldades, como conciliar os estudos com trabalho e a criação dos filhos.
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Inclusive, a dificuldade para conciliar estudos e trabalho é outro fator que motiva a evasão escolar. De acordo com a pesquisa Pnad Contínua Educação 2023, a necessidade de trabalhar foi o principal motivo para abandono ou infrequência escolar na faixa etária de estudantes de 14 a 29 anos, o que representa 41,7% dos jovens consultados.
“Ser mais uma pessoa da família que chega à universidade é uma grande conquista. A educação salva e pode nos levar a lugares inimagináveis.”
Laís Barbosa, ex-aluna e voluntária do Escrevendo na Quebrada.
Além da ter a mãe como inspiração, outro fator foi fundamental para Lais ingressar no ensino superior: ter sido aluna do Escrevendo na Quebrada, associação sem fins lucrativos que mantém cursinho popular para jovens periféricos de São Paulo. A gratidão e o senso de comunidade motivaram a jovem a se tornar professora voluntária na organização.
Fundado em 2020, o Escrevendo na Quebrada surgiu do desejo de três jovens periféricos: Allan Anjos, Cecília Oliveira e Giulia Moreira. Tudo teve início com o projeto Escrevendo na Quarentena, focado em aulas de redação para o Enem, realizadas durante a pandemia de Covid-19. A primeira turma contou com 10 alunos.
Cinco anos depois, o Escrevendo na Quebrada já impactou mais de 2.000 estudantes. São oferecidas oficinas de redação, aulas interativas, mentorias de carreira e acompanhamento psicopedagógico. Há atividades online e presenciais, sendo as últimas realizadas nos polos da associação em São Mateus, zona leste da cidade, e Capão Redondo e Jardim Ibirapuera, na zona sul.
O Escrevendo na Quebrada também reduz barreiras socioeconômicas com suporte essencial aos alunos: acesso à internet, tablets, isenção de taxas e auxílio com transporte.
“O suporte extra, além das aulas, garante que ninguém fique para trás por causa de falta de estrutura ou acesso a serviços”, afirma Allan.
Graduando no curso de Engenharia Mecatrônica na Escola Politécnica da USP, Caio Vinicius Oliveira, 20 anos, foi um aluno que contou com suporte extra. Caio conta que o Allan, que também é professor e diretor do cursinho, foi o seu maior incentivador para visitar a Feira USP e as Profissões. O evento é destinado para pessoas interessadas em conhecer os cursos de graduação oferecidos pela Universidade de São Paulo.
“O professor me convidou para o evento de profissões e ainda ofereceu carona. O suporte além das aulas foi essencial para ingressar numa boa universidade pública.”
Caio Vinicius Oliveira, ex-aluno do Escrevendo na Quebrada e graduando em Engenharia na USP.
Hoje, Caio também é professor voluntário no Escrevendo na Quebrada. Seu propósito tem sido compartilha aprendizados e felicidades de ser possível jovens da periferia estarem inseridos em universidades públicas.
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DESIGUALDADES NA EDUCAÇÃO AINDA PERSISTEM
Embora seja uma iniciativa louvável e com grande impacto social positivo, iniciativas como o Escrevendo da Quebrada também precisam ser vistas como sintomáticas. Sem os recursos necessários, iniciativas de educação popular e comunitária atuam frente à problemas que o Estado tem falhado em resolver.
Apesar do crescimento do número de universitários no Brasil, que se deu principalmente devido a Lei de Cotas (12.711/2012) e políticas afirmativas, como ProUni, os dados ainda são insatisfatórios.
De acordo com uma pesquisa publicada pela PUCRS, em março de 2025, apenas 23% da população com idade entre 23 e 34 anos concluiu o Ensino Superior. Para fins de comparação, média dos membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de 47%.
Ao avaliar a diferença de acesso entre classes a pesquisa também se deparou com outro dado que reforça o que já sabemos: a probabilidade de um jovem de classe média alta chegar ao ensino superior é 3 vezes maior do que a de um proveniente de uma classe baixa urbana.
Há várias explicações para o disparate. Jovens periféricos não podem contar com os recursos da família para se manter na escola — em muitos casos, inclusive, ele tem que trabalhar para complementar a renda familiar.
Tais discrepâncias também se refletem em questões raciais. No cursos de medicina, tradicionalmente ocupados por integrantes da elite econômica nacional, apenas 2,8% das pessoas graduadas são pretas, de acordo com Censo 2022 do IBGE.
“Vivemos numa cidade muito desigual. O cursinho contribui para que os alunos criem bons futuros por meio da educação.”
Laís Barbosa, ex-aluna e voluntária do Escrevendo na Quebrada.
PRÊMIO TEM AJUDADO ORGANIZAÇÃO A CRESCER NACIONALMENTE
Iniciativas como o Escrevendo na Quebrada nos lembram de há pessoas com consciência social que constroem mudanças reais. Com proposta de oferecer uma educação antirracista, popular e afetiva, o Escrevendo na Quebrada não só ajudar os alunos a tirarem boas notas na redação, mas também a ocupar um lugar que lhes foi negado.
Allan, Cecília e Giulia contam que um dos principais desafios é a captação de recursos para assegurar a operação e estrutura da iniciativa. Depois de cinco anos, todos os integrantes ainda são voluntários.
Um bom alento veio recentemente. O Escrevendo na Quebrada foi um dos vencedores do 4ª Prêmio LED – Luz na Educação, na categoria Empreendedores/Organizações. Realizado pela Globo e pela Fundação Roberto Marinho, o prêmio apoiou financeiramente seis projetos de educação de impacto social em nível local. Cada vencedor recebeu R$ 200 mil.
Com dinheiro em caixa, o Escrevendo na Quebrada está em processo de expansão para tornar-se um centro de referência em leitura e escrita para juventudes periféricas, ampliando seu alcance e impacto em nível nacional.
“Estamos aproveitando o novo ciclo com responsabilidade e entusiasmo, com a certeza de que é apenas o começo de uma trajetória ainda mais potente”, diz Allan.
SERVIÇO
Escrevendo na Quebrada
Cursinho gratuito de redação.
Aulas online e presenciais (Capão Redondo, Jardim Ibirapuera e São Mateus).
Saiba mais sobre as aulas na página Escrevendo na Quebrada no Instagram.
Faça doações no link.
FOTOGRAFIAS: divulgação.