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Elas resgatam histórias de mulheres no mundo das artes

22/03/2018

Voluntárias têm organizado eventos ao redor do mundo para incluir conteúdo e promover a igualdade de gênero na Wikipédia, a maior e mais visitada enciclopédia da internet

Nascida em 1974, em Belo Horizonte, Cinthia Marcelle é uma artista visual brasileira que documenta, por meio de vídeos e fotos, intervenções que conferem outros significados a ambientes e objetos do cotidiano. Na obra Cruzada (2010), por exemplo, é apresentado um vídeo com dezesseis músicos, que surgem dos quatro cantos de um cruzamento, trajando quatro cores: amarelo, vermelho, azul e verde. Cada grupo toca instrumentos diferentes, como pratos, bumbos e trompetes. Ao se encontrarem na encruzilhada, iniciam uma coreografia e formam quatro novas bandas de cores e instrumentos misturados. Assim, se dispersam novamente.

Embora tenha participado há mais de uma década de dezenas de exposições mundo afora e recebido uma série de prêmios, como o concedido na 57ª edição da Bienal Internacional de Arte de Veneza, em 2017, Cinthia Marcelle não possuía um perfil no Wikipédia até semanas atrás.

BÁRBARA, DO ART+FEMINISM: CERCEAMENTO À EDUCAÇÃO COMPROMETEU PRODUÇÃO FEMININA NAS ARTES (Foto: João HBF)

Mas isso mudou. A artista foi incluída na plataforma no dia 17 de março, quando aconteceu em São Paulo o Art+Feminism, projeto que reuniu voluntárias numa maratona de edição e criação de conteúdo sobre mulheres na enciclopédia online. Esse tipo de encontro é conhecido popularmente como editatona.

Organizada pela historiadora da arte Bárbara Ariola, em parceria com a produtora de eventos Karen Rego, o evento aconteceu no Centro Cultural Artemis, com a presença de mais três jovens: Cecília Maria, Bruna Gomes e Daniela Sena.

Ao todo, foram inseridos e editados perfis de cinco artistas. Entre elas, Rosana Paulino, artista visual e educadora, Angélica Dass, fotográfa, Helen Keller, escritora, e Berthe Worms, pintora franco-brasileira do século XIX.

“Berthe foi uma das poucas mulheres de seu tempo que conquistou reconhecimento no meio das artes”, afirma Bárbara. “No entanto, se perguntarmos para um estudante sobre artistas desse período, é mais provável ele citar o pintor Almeida Júnior”.

Como a Wikipédia trabalha com construção coletiva, as edições realizadas no evento estão sujeitas ao crivo da comunidade de usuários da plataforma. Erros e imprecisões de informações podem causar a exclusão do conteúdo. No dia do evento, Célio Costa Filho, do grupo de usuários da Wikipédia, forneceu suporte tecnológico às participantes e listou a ética de edição. De acordo com ele, é necessário manter a neutralidade e se pautar em referências bibliográficas.

REPRESENTATIVIDADE NA HISTÓRIA DA ARTE

O Art+Feminism nasceu nos Estados Unidos, em 2014, numa iniciativa de Jacqueline Mabey, Sian Evans, McKensie Mack e Michael Mandiberg, após os jovens identificarem a desigualdade entre gênero na Wikipédia.

De acordo com um levantamento realizado pela BBC em 2016, apenas 17% dos artigos da versão em inglês da plataforma eram sobre grandes personalidades femininas.

Dessa forma, o Art+Feminism visa acabar com a escassez de escritos sobre mulheres, gênero, feminismo e artes ao promover oficinas para que as pessoas, especialmente mulheres, possam editar e adicionar conteúdo no site.

Dados da Fundação Wikimedia, a entidade sem fins lucrativos que mantém a plataforma, mostram que menos de 10% dos voluntários que editam o site se identificam como mulheres. McKensie, que concedeu uma entrevista exclusiva para Emerge Mag, explica o panorama:

“Ainda que o debate sobre as disparidades entre os gêneros esteja em alta, o efeito prático não tem acompanhado o mesmo nível. Devido à ausência sistêmica das mulheres como editoras, há conteúdos incompletos. Então é necessário fechar as lacunas relacionadas a gênero, raça, classe e nacionalidade para a plataforma atingir sua proposta de ser a soma de todo o conhecimento humano”

PARTICIPANTES DO ART+FEMINISM REALIZADO NO MOMA, EM NOVA YORK, EM 2017 (Foto: Manuel Martagon)

Segundo McKensie, há muitas razões que explicam a baixa participação das mulheres na Wikipédia, que vão desde a baixa usabilidade da ferramenta de edição até o comportamento dos editores, que, às vezes, são hostis e sexistas, além de não considerarem os tópicos que são de particular interesse delas.

Desde 2014, dentre 17 países, cerca de 7 mil pessoas criaram ou editaram mais de 11 mil artigos nas editatonas organizadas ou apoiadas pelo Art+Feminism.

Anualmente, a versão americana acontece no MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova York. Há também outros eventos de diferentes portes ao longo do ano (clique aqui para saber como organizar uma maratona do Art+Feminism na sua cidade).

EXCLUÍDAS E ESQUECIDAS

Não é só no conteúdo digital que falta presença feminina: nas galerias de arte, elas também são minoria. No acervo do Museu de Arte de São Paulo (MASP), o maior do hemisfério sul, apenas 6% das obras expostas foram produzidas por mulheres.

Recentemente, o museu fez sua mea culpa ao trazer para São Paulo a exposição do coletivo feminista Guerrilla Girls. Há mais de 30 anos, o grupo se dedica a denunciar a falta de representação feminina em coleções e mostras. Os resultados das pesquisas são apresentados em cartazes, como um que o grupo imprimiu a frase “As mulheres precisam estar nuas para entrar no Museu de Arte de São Paulo?”. A obra é uma adaptação do cartaz usado num protesto em frente ao MoMA, em 1985. No caso do MASP, os nus femininos compõem 60% do acervo artístico.

“O mundo da arte é popularmente entendido como um ambiente de pensamentos e formas transgressoras, mas, na prática, ainda afirma as desigualdades estruturais”, afirma McKensie, que também é escritora.

Em 2016, uma reportagem do site Artsy.net destrinchou a 15º edição do ArtReview Power 100, publicação que anualmente lista as pessoas mais influentes na arte contemporânea mundial, entre artistas, curadores e colecionadores.

Foi constatado que o top 10 da ArtReview Power 100 tem sido pouco dinâmico e que o poder no mundo da arte muda de mãos lentamente. Além disso, na lista de 100 nomes, há apenas 32 mulheres. Para além das questões de gêneros, vale citar que 70% dos artistas catalogados eram brancos e 51% eram europeus. “O mundo não possui esse perfil, logo, a arte também não deveria ter”, enfatiza McKensie.

Mas, afinal, onde estariam os equivalentes femininos de Michelangelo, Da Vinci, Van Gogh, Pollock, Warhol?

Segundo Bárbara, a resposta é complexa e tem implicações socioeconômicas e culturais – e o cerne da questão está na educação. Ela diz que, no imaginário popular, ainda impera a ideia do artista gênio, que acorda, vai ao ateliê e no final da tarde pinta a sua obra-prima.

“Os artistas homens não foram gênios. Eles estudaram muito, dedicaram horas de seu dia à prática das artes. As mulheres, por outro lado, só começaram a estudar arte no final do século XIX e, ainda assim, não tinham acesso às aulas de nu, por exemplo. O cerceamento à educação comprometeu boa parte da produção feminina”

E quando conseguiam contornar o desafio da instrução, elas tinham, por muitas vezes, o mérito usurpado por homens, até mesmo o próprio cônjuge. Foi o caso de Camille Claudel, a escultora que passou a vida sendo reconhecida simplesmente como amante de Auguste Rodin. Mais recentemente, na década de 1960, foi a vez da pintora Margaret Keane. Seus retratos de crianças com olhos grandes rendiam muito – um de seus admiradores era Andy Warhol, por exemplo. Entretanto, os créditos de suas obras ficavam com Walter, marido de Margaret. Ele a convenceu a assinar os quadros apenas como “Keane”, sabendo que a comunidade não daria valor à obra artística de uma mulher. Quando o casamento naufragou, Margaret reivindicou a autoria das obras e processou Walter. No tribunal, o juiz os desafiou a pintar uma das famosas crianças de olhos grandes. Margaret cumpriu a tarefa em 53 minutos. Walter disse que não poderia pintar devido a uma dor no ombro. Mesmo desmascarado, Walter seguiu dizendo que era o autor dos quadros até o final de sua vida, no ano 2000.

MARGARETH KEANE: AUTORIA DE SUAS OBRAS FOI USURPADA PELO MARIDO DURANTE ANOS (Foto: Robert Gumpert/The Guardian)

Desde a década de 1990, as mulheres têm feito muito barulho no mundo das artes ao discutir as representações que recaem sobre os corpos femininos: sua sexualidade, desejos e espaços de atuação no mundo público e privado. No Brasil, são exemplos dessa leva de artistas Ana Miguel, Beatriz Milhazes, Adriana Varejão e Cristina Salgado.

“Hoje, uma das artistas vivas mais caras do mundo é mulher e brasileira. Mas quantas pessoas sabem o nome dela?”, pergunta Bárbara ao falar sobre Beatriz Milhazes, que costuma ter obras leiloadas a cifras milionárias.

Veja mais perfis de mulheres que foram criados ou editados em edições do Art+Feminism:
Niv Acosta (coreógrafa), Paul B. Preciado (escritor homem trans), Martine Syms (artista performática), Morehshin Allahyari (artista), Xenobia Bailey (artista e designer), Rebecca Belmore (artista performática e de instalação), LaToya Ruby Frazier (fotógrafa e videomaker), Coco Fusco (artista e escritora), Augusta Savage (professora de arte) e o Coletivo Heresies (grupo de artistas feministas).

IMAGEM DE TOPO: João HBF

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