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Influência da influência: 35 anos de Fuck tha Police

04/07/2023

Rafael Felix narra a experiência de ver — e fotografar — um ídolo, seu e de milhares de jovens negros do mundo, e o porquê ainda é necessário gritar "que se f*** a polícia"

O dia era 7 de maio de 2023 e recebíamos, pela primeira vez em terras brasileiras, uma verdadeira lenda da cultura hip-hop mundial. O rapper Ice Cube, ex-integrante do extinto grupo N.W.A (Niggaz Wit Attitudes), expoente do gangsta rap, era aguardado por milhares de fãs no festival de música Encontro das Tribos.

Era uma tarde de domingo quente e ensolarada. Quando cheguei no evento, a cantora de reggae Dezarie estava se apresentando, contagiando a galera com sua voz inconfundível e vibe única. Me preparei para fazer algumas fotos, mas estava mesmo me aquecendo para chegar afiado para a apresentação do “cara”. 

Nesse mesmo dia, ainda teriam performances de vários artistas, de estilos musicais diferentes. Já que estamos falando de rap aqui, destaco os grupos Planet Hemp e Racionais MC’s, duas bandas influentes e de trajetórias notáveis dentro do estilo. No caso do primeiro grupo, a extraordinária mistura entre o rock e o rap marcou o país. 

Na “moral”, a experiência poderia ser facilmente confundida com uma história de fantasia, ou até mesmo um sonho, para alguém como eu: jovem negro, nascido e criado no extremo da Zona Leste da cidade de São Paulo (SP), nos anos noventa. Me recordo mais dos anos 2000 e, naquela época, o rap comandava as caixas de som da quebrada. Chegar aos 29 anos, vencendo as estatísticas e ver artistas que foram essenciais para minha formação enquanto um homem negro foi realmente fantástico.

Depois de esquentar o sangue com a apresentação explosiva do Planet Hemp, chegou a hora de ver Racionais MC’s. Os “caras” não economizam nos shows, entregam uma parada completa, com bailarinos, cenografia, figurinos e a por*** toda. Não é atoa que é o maior grupo de rap do Brasil.

Em uma pausa entre músicas, Mano Brown deu uma pista do que ainda estava por vir: “um mano que influenciou nóis”. Nessa hora, geral “sacou” a importância daquele momento. O “cara” influenciou os Racionais, que, por sua vez, influenciaram todo o Brasil. Momento histórico. Estávamos prestes a ver a influência da influência, logo após ver quem muito nos influenciou.

Ao contrário do show dos Racionais MC’s, no palco de Cube havia apenas ele e seu “mano” WC, no apoio dos backing vocals, um telão com várias imagens do rapper e da West Coast (Costa Oeste, sua quebrada nos E.U.A.). Foi f***, simples e direto. Com uma energia surreal e contagiante, que contrastava com a simplicidade de elementos. 

Adivinhem só quem eu flagrei de cantinho, no backstage do palco, sorrindo que nem um garoto que acaba de ganhar um presente? Isso mesmo, Brown, curtindo e dançando com um sorrisão no rosto.

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O show estava “monstrão”, não havia como negar, mas ainda faltava uma parada, que todo mundo pedia. Naquela altura, já na metade da apresentação, começaram a surgir dúvidas se Cube iria atender ao pedido. Sem parar, o público gritava pelo clássico Fuck Tha Police, do disco “Straight Outta Compton”, do extinto grupo N.W.A e de autoria do Cube. O álbum foi lançado em 1988, no mesmo ano em que os Racionais começaram oficialmente.

A música foi uma denúncia direta ao racismo e à truculência da polícia americana contra os jovens negros das periferias da Costa Oeste. Rapidamente, virou um hino contra toda repressão e racismo policial na cultura hip-hop mundial. Apesar de ter sido um sucesso, a música gerou forte censura ao grupo e até uma prisão durante a turnê de lançamento do disco. 

Ice Cube foi censurado em seu país e não poderia cantar a faixa, mas como ele estava no Brasil — e nóis queria memo era tacar fogo em tudo — e era o momento mais aguardado pelo público, não deu outra. Senhoras e senhores, Ice Cube cantando “Fuck Tha Police” ao vivo. Foi lindo. Do público mais jovem, a galera mais “cascuda” do rolê, dos “playboys” — que eram muitos, diga-se de passagem — aos “real vivência”, ninguém ficou parado.

Se tratando de Brasil, essa música ainda faz todo sentido: 84% das pessoas mortas em ações policiais no país são negras*. É triste pensar que, 35 anos depois, a denúncia ainda precise ser feita, porque a injustiça ainda é uma realidade forte e pulsante. Nossos jovens continuam sendo assassinados pela polícia diariamente.

Sobre o show, Ice Cube entregou tudo e mais um pouco, mostrando o porquê de todo o respeito e notoriedade que o rapper carrega até hoje, mesmo após décadas de carreira.

*dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, de 2021.

Foto de capa: Rafael Felix
Edição: Teresa Cristina

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Redação Emerge Mag

Revista digital de cultura, direitos humanos e economia criativa interseccional e consultoria de diversidade e impacto social (ESG).

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