Literatura como aliada para a saúde mental da periferia

07/05/2025

Poetas, saraus e coletivos literários criam uma rede de afeto e acolhimento frente às violações de direitos que abalam a nossa saúde mental.

No bairro do Parque São Lucas, na zona leste de São Paulo, o escritor Aramyz enfrentou uma infância marcada por desafios. No entanto, a leitura nunca foi um deles. Autodidata, ele aprendeu a ler antes mesmo de ingressar no primeiro ano do ensino fundamental.

Para o garoto tímido, diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (Nível 1 de Suporte) e com dificuldades de socialização, os livros tornaram-se não apenas um refúgio, mas também uma salvação.

Décadas depois, a literatura viria a resgatá-lo mais uma vez, agora do perigo invisível da depressão. Seu mais recente livro, Suicídios Diários, publicado em 2024 e vencedor do Prêmio Deus Ateu de Teatro e Artes, é uma obra gestada a partir das cicatrizes causadas durante o adoecimento mental. A obra, que apresenta 60 poemas sobre saúde mental e a resistência ao suicídio, foi escrita durante momentos de crise.

“Cada vez que eu tinha uma recaída na depressão, escrevia um poema e guardava. Acredito que poderei escrever livros parecidos a vida toda”.

Aramyz, escritor.

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A intersecção entre literatura e saúde mental deu origem a uma recente pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) em parceria com o Ministério da Cultura. O estudo mapeou a atuação de 292 coletivos literários de periferias brasileiras, distribuídos em nove estados e no Distrito Federal.

POETA ARAMYZ: livro premiado foi escrito durante crise de depressão.

De acordo com 89% dos entrevistados, a conexão entre literatura e saúde pode promover uma maior participação social, principalmente como medida de enfrentamento e redução de danos frente às violações de direitos.

Entre as violações mais citadas pelos coletivos estão o racismo (32%), seguida de violência urbana (26%) e o desemprego (24%).

Lançado no último mês de março, o estudo da Fiocruz dialoga com conceitos cunhados por Nise da Silveira (1905-1999), médica psiquiatra brasileira que revolucionou o tratamento mental no Brasil por meio da arte, livre expressão e afetividade.

A humanização do cuidado psiquiátrico proposta por Nise envolvia atividades como pintura, desenho, modelagem, colagem e costura, em detrimento de métodos desumanos que predominavam em sua época, como o eletrochoque e as lobotomias (intervenções cirúrgicas que causavam danos irreversíveis no cérebro).

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AS PALAVRAS NOS TORNAM HUMANOS

De fato, a arte pode ser um meio para pacientes de transtornos mentais se conectarem com suas emoções. De acordo com a psiquiatra e psicanalista Vanessa Corrêa, integrante da Sociedade Brasileira de Psicanálise e coapresentadora do podcast Lá Fora, a leitura, por exemplo, é uma função de grande elaboração do ponto de vista neuroquímico.

“Ler e interpretar uma obra literária, criando associações com outros conhecimentos, ajuda a nomear pensamentos que ainda não estão formulados simbolicamente. Ou seja, ajuda o paciente a entender seu próprio funcionamento mental”.

Vanessa Corrêa, psiquiatra e psicanalista.

Além de médica, Vanessa também é poeta. Em seu perfil no Instagram, ela compartilha poemas autorais e obras de autores consagrados, clássicos e contemporâneos. Sua conexão com a literatura, assim como a de Aramyz, nasceu da necessidade de sobrevivência.

“Minha infância e adolescência foram em uma comunidade violenta”, diz ela. “A literatura sempre foi uma possibilidade de encontrar outros universos.”

FESTA LITERÁRIA DAS PERIFERIAS: atividades culturais, em conjunto com serviços sociais e de saúde, trazem bem-estar para pessoas em fragilidade emocional (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

SARAUS: O PALCO COMO TERAPIA

Se a violência social ainda assombra as periferias paulistanas, a resistência floresce em forma de saraus. Esses eventos culturais transformam bares, praças, parques e centros comunitários em espaços de acolhimento e compartilhamento de alegrias, angústias e exaltações.

“Há vezes que o sarau acontece em bares. É comum ter garçons, que têm pouco contato com a poesia, se sentir tocado e dizer ‘isso diz sobre a minha vida e a minha trajetória’”, afirma Aramyz.

Desde 2023, o Sarau Sopa de Pedras reúne artistas de toda a capital paulista e cidades do entorno num espaço democrático, na Vila Ré, na zona leste de São Paulo. Realizado a cada três meses, o evento atrai cerca de 80 participantes, que ocupam o palco e compartilham obras autorais.

“O palco tem um valor terapêutico. Receber aplausos é medicinal. A arte é uma grande aliada da saúde mental.”

Abduzido, idealizador do Sarau Sopa de Pedras.

Outro fator que valoriza os saraus é a criação de laços afetivos entre os participantes. Para Vanessa Corrêa, os encontros presenciais, sem mediação de telas, ajudam na construção de vínculos.

“Embora o sarau não tenha função como tratamento de saúde mental, pode contribuir no processo de cura”, afirma a médica e psicanalista.

Seguindo o raciocínio de Vanessa, podemos dizer que em conjunto com o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), família, escola e demais instituições sociais, os saraus e outras atividades culturais formam uma rede que amplia e melhora a qualidade de vida e bem-estar de pessoas em situação de fragilidade emocional.

“Essa multiplicidade de agentes é o que promove a saúde mental”, reforça Vanessa.

Nas periferias, onde o acesso à saúde mental ainda é limitado, a literatura emerge não como solução única, mas como um farol. Ou, nas palavras do poeta, “quando você é uma criança pobre, você vai sonhar por outros vieses, vai achar outros caminhos. E a literatura tem esse poder.”

FOTOGRAFIAS: divulgação e acervo pessoal.

Quem escreveu

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João Ricardo Dias

Jornalista profissional com interesse em cultura, direitos humanos, história e política internacional. É escritor com seis obras literárias publicadas, entre elas Hóstia Negra (2021) e Os anjos calados escutam a sinfonia de Deus (2022). Já atuou como roteirista e diretor de transmissões ao vivo.

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