Cantora lançou recentemente o álbum “Igreja Lesbiteriana, Um Chamado”, com músicas que versam sobre racismo, política, feminismo e relacionamento afrocentrado.
Você já ouviu falar de Música de Mulher Preta (MMP)?
O termo foi cunhado pela jovem cantora e compositora Bia Ferreira, que nos últimos anos tem encantado a população negra e LGBTQIA+, que encontra na artista uma maneira de reverberar causas relacionados a gênero, raça e sexualidade.
Para chegar ao conceito artístico, Bia se inspira em uma das grandes filósofas da contemporaneidade, a norte-americana Angela Davis. A pensadora é conhecida por sido integrante dos Panteras Negras e por ser ponta de lança do feminismo negro desde os anos de 1970. Uma das frases mais emblemáticas da ativista, por exemplo, intersecciona raça e classe:
“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras. Muda-se a base do capitalismo”
Quando falamos sobre arte, principalmente música, é quase impossível não pensar em movimento, seja do nosso corpo ou dos nossos pensamentos.
“A MMP é sobre levar informações para as mulheres para que elas possam mover essa pirâmide”, diz a cantora. “E entender que a gente não se encaixa em apenas um gênero musical”.
Recentemente, a compositora lançou primeiro álbum de estúdio, intitulado “Igreja Lesbiteriana, Um Chamado”, que conta com nove faixas e tem influências de soul, R&B, funk e gospel.
Com apenas 26 anos de idade, uma característica marcante de Bia é a didática imposta em suas composições.
Ela ensina as ouvintes sobre racismo, política, feminismo e relacionamentos – verso por verso, palavra por palavra.
Uma de suas músicas mais populares é “Cota não é esmola”, escrita ainda em 2011. A composição envolve temáticas ligadas ao sistema de cotas e programas como Sisu e ProUni, que foram fomentados durante os governos federais de Lula e Dilma.
As medidas beneficiaram a população pobre, preta, parda e indígena brasileira ao oferecer oportunidades de acesso ao ensino superior que, até então, não existiam em larga escala no Brasil. Parte da equipe da Emerge Mag, incluindo essa repórter que vos fala e o fundador do site, foi bolsista do ProUni.
“Existe muita coisa que não te disseram na escola
Cota não é esmola!
Experimenta nascer preto na favela pra você ver!
O que rola com preto e pobre não aparece na TV“
Na entrevista exclusiva para a Emerge, Bia comenta o lançamento do disco, um marco para afirmar que no ano de 2019 havia pessoas se posicionando contra o avanço do conservadorismo que tem crescido no país.
No atual contexto político, social e econômico brasileiro, que tenta perpetuar a lógica de dominante e dominador, que beneficia principalmente os homens brancos, ter artistas que se tornam “megafone” para as demandas da população é extremamente importante. Bia complementa:
“O novo álbum é uma obra contra a opressão misógina e racista que a gente vive. A revolução só está acontecendo porque está sendo encabeçada por mulheres e para mulheres, para que a gente mova a pirâmide social para que ela deixe de ser uma pirâmide”
A cada faixa do álbum, podemos observar a versatilidade de ritmos e interpretação. Ora acompanhada de instrumentos, outra liderada somente por sua voz rouca e impactante.
O afeto também está presente na arte de Bia. A cantora versa, principalmente, no amor afrocentrado: o relacionamento afetivo entre pessoas negras. De acordo com Bia, as letras são voltadas para informação e potencialização de mentes de pessoas pretas.
“É tecnologia de sobrevivência, manutenção da nossa sanidade mental e construção de um conteúdo intelectual coerente para se manter vivo na sociedade de hoje”, diz Bia.
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DA IGREJA PARA OS PALCOS
Oriunda do interior de Minas Gerais, Bia mostrou interesse por música ainda bem pequena.
Filha de uma família tradicional evangélica, sua mãe era cantora, regente de coral e pianista.
Aos 3 anos, Bia seguiu os passos da matriarca e começou a estudar piano. Posteriormente, ela ingressou no Conservatório Brasileiro de Música.
O piano foi a sua base musical até o começo de sua carreira profissional, quando adotou o violão.
Nessa época, aos 15 anos, ela morava em Aracaju, capital do Sergipe. Além do piano, Bia também domina outros 24 instrumentos musicais, como contrabaixo elétrico, cavaquinho, atabaque, djembe e bateria.
Entre 2015 e 2016, Bia se mudou para São Paulo devido as melhores condições que a cidade proporcionava para divulgar seu trabalho autoral.
Um dos marcos da sua carreira aconteceu no ano seguinte, quando ela fez uma apresentação intensa e firme de “Cota Não É Esmola” para o Sofar Latin America, em novembro de 2017. No YouTube, o vídeo da apresentação soma mais de 8 milhões de visualizações.
“Quantas vezes você correu atrás de um busão
Pra não perder a entrevista
Chegou lá e ouviu um
‘Não insista
A vaga já foi preenchida viu
Você não se encaixa no nosso perfil’”
Em 2018, saiu seu primeiro registro fonográfico de um show ao vivo pelo Estúdio Showlivre. Cerca de um ano depois, ela conseguiu lançar seu primeiro álbum de estúdio, o já citado “Igreja Lesbiteriana, Um Chamado”, que era um objetivo antigo que ela vinha desenvolvendo desde 2013.
Antes mesmo de lançar o álbum, Bia foi indicada a vários prêmios, como os do Women Music Event e da Semana Internacional da Música.
Desde então, ela fez inúmeros shows pelo Brasil, como nos festivais Latinidades, Levada, Percurso e Red Bull Amaphiko, e turnês internacionais.
Há poucos dias, ela fez shows na Alemanha, França e Portugal ao lado da companheira amorosa e parceria de música Doralyce.
Durante a viagem, ela participou de um debate na Euroleads, a maior conferência de estudantes brasileiros da Europa.
Na conversa sobre arte como catalisadora de progresso social, Bia dividiu a mesa com a filósofa Djamila Ribeiro e o digital influencer Spartakus Santiago.
Levando, literalmente, a arte como melhor arma, Bia Ferreira é uma artista contemporânea necessária para que continuemos levantando a bandeira antirracista, do amor, equidade de gênero e dos direitos humanos, “porque o povo preto veio revolucionar”.
FOTOGRAFIAS: Amanda Araújo e Coletivo 22.