O psicólogo Lucas Veiga criou um curso para formar profissionais que leva em consideração os efeitos do racismo na saúde mental da negritude
Eu sempre tive receio de fazer terapia. Só de pensar no assunto já batia aquela sensação “ah, isso aí não é pra mim não”. Até que chegou num momento que as tensões da vida fizeram eu me abrir para essa possibilidade. Estava na faculdade, estagiando e sem grana de sobra. Uma amiga me indicou um local onde era possível fazer sessões por um preço acessível. Pois bem, fiz uma triagem simples e marquei a consulta com uma psicóloga – branca e na faixa dos 55 anos. Lá pela terceira sessão, eu (mulher, lésbica e negra) introduzi o tema racial na conversa. Após alguns minutos, ouvi da psicóloga “mas racismo nem existe mais, afinal a Meghan Markle casou com o Príncipe Harry”. Não bastasse a primeira, ela prosseguiu: “mas têm uns negros que são bonitos, aqueles negrões, sabe?”. E um das falas que mais me doeu: “Ah, mas o Lázaro Ramos é feio, né?” Logo pra mim, fã de Lázaro desde criança – e um dos poucos homens negros na TV. Pronto, foi o fim dos meus atendimentos com ela. Afinal, mais do que palavras, o que eu ouvi foi uma violência. Após essa experiência bem ruim, procurei uma psicóloga negra. Hoje, tenho a felicidade de ela considerar minhas questões de uma forma mais empática e técnica, o que tem sido muito positivo para cuidar da minha saúde mental.
Estou contando essa história para ficar bem nítido que as pessoas pretas continuam sendo renegadas em várias frentes em direitos humanos básicos, como o acesso à saúde. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde de 2013, 74, 8% de pessoas brancas consultaram um médico ao menos uma vez ao ano – contra 69,5% e 67,8% de pessoas pretas e pardas, respectivamente. Na particularidade saúde mental, precisamos ir ainda mais a fundo. O capitalismo racista nos fez crer que as pessoas pretas, principalmente as mulheres, são fortes e guerreiras e que não tem “tempo para ficarem tristes, pois precisam se manter ativas para sobreviver”. Isso é uma grande falácia. Além de nos desumanizar, é uma justificativa da branquitude para perpetuar o difícil acesso de negros à saúde integral.
Pelo bem da nossa cabeça, o psicólogo Lucas Veiga está mudando esse cenário. Mestre em psicologia clínica pela Universidade Federal Fluminense, ele é o idealizador do curso Introdução à Psicologia Preta, voltado a profissionais de saúde mental, principalmente negros que atendem negros. O curso é baseado no conceito da Black Psychology, vertente de estudo focada no atendimento da subjetividade negra e como os afrodescendentes conhecem e experimentam o mundo. O método surgiu nos Estados Unidos, entre os anos 60 e 70, e teve como expoentes os psicólogos Wade Nobles e Naim Akba, que realizaram estudos sobre saúde mental para além do racismo cotidiano intensificado pela violência. É importante frisar que a saúde mental da população preta passa também por um processo de acolhimento e valorização de sua história. Lucas explica:
“A psicologia preta promove uma dupla escuta: tanto uma escuta da história individual e singular do sujeito quanto uma escuta dos efeitos da colonização sobre os povos africanos”
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AUTO-ÓDIO GOELA ABAIXO
Uma das consequências do racismo é o auto-ódio sentido pelas pessoas negras. No Livro “O Genocídio do Negro Brasileiro: processo de um racismo mascarado”, grande obra de debate étnico-racial de autoria de Abdias do Nascimento, também criador do Teatro Experimental do Negro, é abordado as várias formas que a sociedade racista tenta nos matar. Na eleição de 2018, apenas 4% dos candidates eleitos para senador, deputado estadual e federal eram negros. Das 1.626 vagas, apenas 65 foram preenchidas por candidates pretos. A Pesquisa de Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil 2018, do IBGE, apontou que cargos gerenciais das empresas são compostos por 68,6% de pessoas brancas, contra 29,9% ocupados por pretos ou pardos. Todas essas estatísticas estão em diversos outros setores, em que não há representatividade e proporcionalidade, uma vez que 56,2% da população brasileira é negra. Lucas é cirúrgico:
“O apagamento das produções de conhecimento negras sobre saúde mental, que se traduz pela pouca ou nenhuma presença de intelectuais negros nos currículos das graduações em psicologia, também é uma forma de genocídio”
O ódio é um afeto que vem sendo historicamente projetado pelas instituições brasileiras sobre os corpos e subjetividades negras. Segundo Lucas, esse afeto de ódio – que é projetado – pode ser introjetado na psique e resultar no doloroso processo de auto-ódio. Dessa forma, a pessoa negra passa a odiar a própria pele, os traços e a sua história. Não podemos negar que uma evolução aconteceu desde que nossa história começou. Mas, infelizmente, ainda estamos longe do ideal.
“No Brasil, é muito raro partir das instituições não-negras contar as histórias da grandiosidade e glória do povo africano no período anterior à colonização”, reflete o psicólogo.
Com a Psicologia Preta, passamos a dispor de ferramentas para promover o processo de cura desse sentimento além de todas as outras questões que envolvem a história singular e coletiva das pessoas negras. Assim, a construção de uma identidade negra positiva é a cura do auto-ódio.
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A FORMAÇÃO DE PSICÓLOGOS
Quando tinha 14 anos, Lucas perdeu seu avô, que havia sido diagnosticado anos antes com transtorno de bipolaridade. O fato fez com que Lucas buscasse a psicologia como área de trabalho. “Meu avô não recebeu um tratamento que, hoje, eu consideraria adequado para um homem negro com essa condição psicológica”, diz o mestre em psicologia.
Em 2015, com a graduação já concluída, Lucas passou a atender jovens negros em situação de rua e dependentes de drogas acolhidos pela Casa Viva, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Ali ele notou, de forma ainda mais latente, as lacunas de sua formação em psicologia. O fato de os jovens estarem em situação de vulnerabilidade social e fazerem uso abusivo de drogas podia ser uma consequência que ia além de suas histórias singulares. Para Lucas, aquela realidade também era efeito de uma história coletiva anterior ao seu nascimento, como os processos de colonização de nações africanas e de escravização de pessoas negras, que durou 300 anos no Brasil.
A situação percebida por Lucas é apontada em vários dados. De acordo com a edição 2023 do Atlas da Violência, 76,5% das vítimas de homicídio no país são negras. Totalizando 35.531 vítimas, para cada pessoa não negra assassinada no Brasil, 2,8 negros são mortos. E, ainda sim, a grande maioria das graduações do Brasil até hoje não estudam a subjetividade da nossa população. Daí a necessidade de o mundo acadêmico aprofundar o conhecimento sobre as singularidades e os efeitos psicológicos de ser uma pessoa negra neste território. Dessa forma, será possível formar profissionais da área da saúde mais capazes de nos auxiliar, nos acolher e nos escutar.
Hoje, Lucas atende num consultório particular na cidade do Rio de Janeiro e mantém o Descolonizando, plataforma online de divulgação de artigos, vídeos e textos que abordam questões relacionadas à descolonização do indivíduo e do mundo. Devido a pandemia, seus cursos estão acontecendo online.
SERVIÇO
Curso Introdução à Psicologia Preta
A partir da questão “como curar a negritude dos efeitos do racismo?”, o curso aborda as marcas da colonização na produção de conhecimento e na produção de subjetividade e dialoga com intelectuais negros do campo da saúde mental, como Frantz Fanon, Wade Nobles, Neusa Santos Souza, dentre outros, para apontar caminhos para o tratamento dos impactos do racismo na subjetividade negra.
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Fotografias: Francisco Costa