Em artigo, rapper e modelo participante do reality show de moda transfeminina Born To Fashion escreve sobre música, atualidades e pretitude
Natt Maat é modelo, compositora, escritora, atriz e apresentadora. Ouça suas músicas no Spotify e a siga no Instagram.
Hoje, aos 27 anos, venho me deparando com muitas respostas para perguntas que ecoam há tempos dentro da minha cabeça; e uma dessas respostas é o amor. Desde as minhas primeiras criações artísticas, muitas delas na música, sempre pedi por algo que não tinha. Minha motivação para criar são emoções e sentimentos, como raiva, ódio, impaciência, ironia e deboche, usados para apontar o que me faltava: companheirismo, atenção, carinho, amor e oportunidades.
Gritar foi o que eu fui ensinada a não fazer; dialogar sempre foi recomendado e tenho trabalhado a minha calma e paciência não é de hoje. Foram inúmeras vezes que me deparei com situações de discriminação, de uma amostra de maldades que surgem como mágica, de tão rápidas e inesperadas que acontecem e o quão constantes conseguem ser, como ondas místicas de ideais. A discriminação sempre esteve comigo, desde quando nasci e assumi minha insatisfação – e isso não parecia ser agradável aos que estavam assistindo de primária. Mas foi insatisfação essa que me deu gás para fazer música, com seleções de instrumentos, letras e voz que eram sobre a minha vida, sobre situações que acontecem com pessoas como eu e o quanto eu só quero expor as vivências com o intuito de correção e reparação. Esse é o meu legado na música: utilizar as ondas sonoras como meu diário e como um registro de tudo o que eu vivi. E com a comédia não foi diferente, adentei nesse universo para poder fazer piada do que me machuca.
Nessa trajetória, encontro respostas para o futuro no Brasil, na religião, no Estado e na minha participação no reality show de moda transfeminina Born To Fashion. Inclusive, quando fiz minha inscrição no programa, disse que uma modelo precisa ser referência em educação e respeito – e deixo explícito que estou disposta a usar todos os recursos para atingir esse objetivo. Dentro dessas trajetórias, me vi cercada de diferenças; as diferenças de classe, de raça, de gênero, de acessos, de assuntos, de demandas e, principalmente, de necessidades.
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Com a tamanha inclusão que tive nesse mundo, não tive outra escolha a não ser me posicionar diante todos os pontos que me intrigavam. Um desses pontos eram o porquê de tanta mulher travesti de pele clara – pensava eu, uma preta de pele clara, também conhecida como mulata, morena, parda… Eu me questionava sobre quais os parâmetros de escolher um elenco de dez pessoas em que sete tinham a pele clara. Me questionava com as pessoas ao meu redor sobre os motivos de cada participante estar envolvida em um projeto tão lindo e tão esperançoso. “Transgredir a moda brasileira” é uma fase recorrente no programa. Eu só não entendia como mudar o mundo da moda sem questões, sem apontamentos e nem correções. Está bem nitído que precisamos, urgentemente, mudar o mundo – e não só o da moda, mas o mundo em geral.
Há exatamente um ano, eu recebi o pagamento do trabalho que fiz em Born to Fashion. Não foi à toa que fiquei mega preocupada e minimamente feliz; afinal, poderia usar o dinheiro para alugar uma casa e ter um lugar de tranquilidade. Cabe destacar aqui um agradecimento as amigas Camila Ronú e a Naísa Zaiiah, que se dispuseram a me apoiar na decisão de alugar um lugar para mim. Neste período de transição, agradeço muito por ter ido força de vontade e por ter contado com o apoio de Bowvents, outro amigo e companheiro de vida, que teve um papel importantíssimo para a minha construção. Bowvents é um homem branco e cis, que descobriu que perderia privilégios por estar com alguém que não tem privilégios – e, mesmo assim, sentiu que me apoiar é o que pode fazer. Rogo para existam mais pessoas assim.
E a vida andou. Com a casa alugada, era a hora de decorá-la. E decoração é uma prática que não é sobre capital, mas sim sobre o que, onde e como disponibilizamos objetos num ambiente. E foi o que eu fiz; levava para casa tudo que achava nas ruas e julgava que era bom (hoje, parei de fazer isso rs). Morar em São Paulo foi uma escolha que eu não escolhi. É aqui que preciso estar para poder sentir que faço parte do “meio artístico” – em contrapartida, sempre me senti parte de uma revolução. Eu sou a REVOLUÇÃO, assim como José dirige o ônibus, assim como Renata Carvalho, lindamente, atua; assim como Djamila Ribeiro fala e, principalmente, assim como Marsha P fez: pedir correção, corrigir, exigir respeito e ser respeitada. Podemos e devemos amar e respeitar todas as pessoas, inclusive as que militam por um futuro respeitoso e digno para todas as pessoas. Não é nada fácil ter que cobrar respeito, não é fácil pedir por alimentação, por saúde, por educação, segurança e pelo atendimento a essas demandas.
Não sinto que a militância e o ativismo sejam eternos, sinto que são necessários para eternidade da humanidade, desde ativistas do meio ambiente, alimentos saudáveis e da vida animal até aqueles que militam pela equidade de gênero e pela desobrigação de gênero no nascimento. E toda essa luta busca um amor sincero. Dizemos amar aos animais…, mas não nos tornamos uma sociedade vegana; dizemos amar a natureza…, mas a enchemos de lixo e a matamos a todo instante. E isso não é diferente comigo: quantas pessoas dizem que me respeitam, mas que na primeira oportunidade não hesitariam em me tirar de suas vistas.
Hoje, ao ouvir meus sons e assistir meus clipes, reflito muito sobre meu tão esforçado acesso que tive e tenho na música. Ouço me, pois meu som é pura revolução. Assisto-me, pois minha imagem é a busca de humanização. Busco paz, busco amor e busco respeito. Busco pelo acerto, pela inclusão e pelo amor sincero – amor esse que vai mexer nas estruturas mais profundas e romper com os preconceitos disfarçados de conceitos. Esse será o amor que fará valer os acessos, as certezas, as validações, as belezas e as perfeições. Será o amor que une as pessoas, os seres e a natureza como um todo. E só assim veremos nosso verdadeiro planeta, o planeta amor, que é o planeta vida.
FOTOGRAFIAS: Nu Abe