De origem jamaicana, eventos de reggae com caixas de sons empilhadas nas ruas movimentam mais de 120 coletivos em todo o país
A presença feminina no mundo do reggae e do sound system é vista ainda hoje com estranhamento. Se em pleno 2020 é assim, vamos fazer um exercício e voltar 12 anos no tempo, quando as discussões de gênero estavam engatinhando no Brasil, e pensar em uma mulher escrevendo um blog sobre a música da jamaicana. Essa é a uma das facetas da história de Dani Pimenta, criadora do Groovin Mood, blog lançado em 2008 que apresenta notícias, entrevistas e listas de Reggae Music.
“A ideia foi trazer ao público um conteúdo que não tinha espaço em outros blogs e sites da época”, diz Dani. “Foquei no panorama da cultura sound system e da movimentação mais underground da cena.”
A cultura dos sound system – pilhas de alto-falantes instaladas nas ruas – começou nos bairros de Kingston, na Jamaica, na década de 1950, como opção para quem queria curtir um som e não tinha dinheiro para frequentar os clubes da época. Nos anos 60 e 70, os seletores (como são chamados os DJs de sound system) se tornaram quase tão importantes quanto a música. Aqui no Brasil, tudo começou no Maranhão, nos anos 70, que abraçou o reggae e até hoje tem sua capital São Luís chamada de “Jamaica Brasileira“. Vale lembrar que por lá se dança reggae em duplas, agarradinho.
Em São Paulo, um dos primeiros coletivos a levar sound systems para as ruas foi o Dubversão, em 2001, e a primeira mulher a ter um sistema de som foi a cantora Lei Di Dai, com o Gueto pro Gueto Sistema de Som. Hoje, a cultura sound system mantém seu espaço nas periferias de regiões metropolitanas. Além de São Paulo e São Luís, há movimentos em capitais como Belém, Rio de Janeiro e Recife, onde rolam diversos gêneros músicas.
Embora os eventos se virem muito bem na periferia, Dani aponta para a importância de ocupar também locais elitizados e lutar contra a apropriação dos rolês, que é o que vemos muito por aí.
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PRESENÇA DAS MULHERES NOS SOUND SYSTEMS
Como era de se imaginar, uma das maiores dificuldades iniciais da jornalista foi a questão de gênero. Dani teve seu trabalho questionado de forma machista. “Enfrentei o preconceito ao não dar ouvidos a críticas infundadas de homens e foquei no trabalho”, afirma ela. E o trabalho rendeu. Além de continuar com o blog, Dani se tornou DJ e organizadora da Feira de Discos de Reggae, que vende centenas de LPs e compactos, livros, acessórios e diversos outros itens relacionados ao universo da rica e ampla música jamaicana.
Em 2016, teve mais uma façanha. Dani, ao lado das artistas Lovesteady, Laylah Arruda e Rude Sistah, criou o Feminine Hi-Fi, coletivo de sound system formado só por minas. A primeira edição do evento aconteceu na área aberta do CDHU Jaraguá, zona oeste de São Paulo. A festa, que reuniu centenas de mulheres e durou oito horas, foi bancada pelas próprias organizadoras, que venderam adesivos por R$ 1 para cobrir os custos. Dani comenta:
“Muitas pessoas acham que colocar umas caixas de som na rua e tocar reggae não é cultura. Mas é uma ruptura, porque a partir do momento em que se ocupa e gera estranhamento há uma importante oportunidade para lutar por políticas públicas, leis e incentivos de democratização da arte”
Apesar da maior presença nos últimos anos, as mulheres ainda são minoria no mundo da música. De acordo com edição 2020 do relatório Por Elas Que Fazem a Música, desenvolvido pela União Brasileira de Compositores, entre os 100 maiores arrecadadores de direitos autorais no país, apenas 10 são mulheres. Em 2019, elas receberam somente 9% do total distribuído em direitos autorais. Além disso, dos mais de 33 mil associados da UBC, apenas 15% são mulheres.
“O universo da música acolhe mais os homens por vários fatores”, diz Dani. “Quando crescemos mulheres, ninguém te incentiva a aprender elétrica, montagem de som e colecionar discos, por exemplo.”
Embora existam poucos dados com foco em gênero sobre sound system, Dani garante que a diferença ainda é brutal. Mas elas não param. Com o crescimento das redes sociais e do movimento feminista, as mulheres têm buscado cada vez mais ocupar os espaços antes negados a elas, ao mesmo tempo que reafirmam as suas vontades e demandas, considerando as diversas interseccionalidades, claro. E isso afetou também o sound system. Quando começou a carreira de DJ, era raro Dani ver outras artistas mulheres. Hoje, há mais seletoras e cantoras participando de eventos de reggae, mas o machismo ainda existe, só que menos frequente e de maneira mais sutil.
“Às vezes me pego pensando: “se eu fosse um homem fazendo o que eu faço e escrevendo o que eu escrevo, será que não teria mais relevância?'”, diz ela.
A JORNALISTA QUE VIROU PESQUISADORA
Diferentemente da paixão pela música, o gosto de Dani pelo reggae não veio cedo. A oportunidade de se conectar com os sons que saem dos toca-discos começou quando ela já era adulta. Entre 2002 e 2003, Dani era repórter e escrevia sobre hip hop para sites como o Bocada Forte e Coletivo MTV. Três anos depois, ela foi pela primeira vez numa festa de sound system.
“Eu não compreendia o que era um sound system. Mas, ao ver um ao vivo pela primeira vez, bateu uma paixão muito forte. Eu já escrevia sobre música e estava sendo arrebatada pelo reggae. Aí decidi pesquisar sobre o tema e criei o Groovin Mood”
Na mesma época, Dani iniciou o Mapa Sound System Brasil, um levantamento contínuo de sistemas de som espalhados pelo país. Já foram identificados mais de cem sistemas operantes – o levantamento não considera as radiolas e as aparelhagens de tecnobrega, como as vistas na região norte do país. Com atuação online, o impacto do blog e do mapa é nacional e amplifica a visibilidade de coletivos e equipes em todo o país. Vale destacar que dos mais de 100 sistemas levantados no mapa, somente quatro são de mulheres (olha a questão de gênero de novo, gente).
Em 2019, o levantamento virou o livro Mapa Sound System Brasil Volume 1, um registro documental-histórico com compilação visual de mais de 120 sistemas de som do Brasil. A obra tem coautoria de Natan Nascimento, responsável pelas ilustrações do livro.
Dani conta que tem a ideia de montar um portal exclusivo para o mapa, que poderia ser atualizado com frequência por meio de um formulário em que os próprios coletivos poderiam se cadastrar. “Se eu tivesse verba, poderia criar várias coisas novas”, diz ela. “Tenho muitas ideias, mas não dá para tirar do papel se não tiver dinheiro.”
Além da falta de verba, 2020 trouxe outro desafio para Dani. Se a atividade e o espírito do sound system é nas ruas, como fazer isso durante a pandemia da Covid-19? Ainda não temos respostas. Muitos artistas e coletivos têm se virado com lives de shows e bate-papos nas redes sociais. Entretanto, Dani aponta que, por ser um rolê em sua maioria periférico, nem todas as equipes têm uma boa estrutura para fazer as lives. E aí vemos mais um dos obstáculos sociais que a pandemia escancarou no país. Por enquanto, esperamos a tão sonhada vacina e a volta das festas de rua.
FOTOGRAFIAS: Rafael Felix. As imagens foram produzidas remotamente.
*Esta reportagem integra o projeto Mapeamento de Coletivos e Produtores Culturais da Região Metropolitana de São Paulo e conta com apoio do Edital ProAC nº 14/2019, de incentivo ao desenvolvimento da cultura popular, tradicional, urbana, negra, indígena e plural no Estado de São Paulo.