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O que é o Afrofuturismo?

20/04/2021

afrofuturismo Kaylan F. Michael

Na década de 1950, o músico e filósofo Sun Ra ficou conhecido por sua “filosofia cósmica”, composições e performances com figurinos super originais. Nascido no Alabama, seu nome é referência ao Deus do Sol Rá, a principal divindade da mitologia egípcia. Sun Ra costumava dizer que o planeta Terra era muito cruel e, por isso, as pessoas negras deveriam viver em outro lugar do espaço. No filme “Space is the place”, escrito por Sun Ra e lançado em 1974, há uma cena em que o músico decola numa nave espacial e diz: “adeus terráqueos. Vocês só querem falar de verdades, não de mitos. Bem, eu sou o mito que vos fala. Digo-lhes adeus”. Na sequência, a nave, com tripulação negra, parte para longe da Terra e, dentro dela, vemos um televisor transmitindo imagens de destruição do planeta.

Sun Ra é apontado como um dos pioneiros do Afrofuturismo – e, vejam bem, isso foi há mais de 50 anos. Mas o que é, afinal, esse conceito tão falado ultimamente?

IDEOGRAMA SANKOFA: RETORNO AO PASSADO PARA CONSTRUIR O FUTURO

“O Afrofuturismo é a ideia radical de que pessoas negras existem no futuro”, costuma dizer a youtuber e ativista Nátaly Neri. Ou seja, é um movimento cultural, estético, social e político que traz a possibilidade de criar narrativas pretas que fogem da posição da dor para construir um futuro próspero com base na ancestralidade onde nós, pessoas pretas, nos vemos de maneira positiva, múltipla e autônoma.

Dentro de uma perspectiva preta, tanto africana quanto diaspórica, o Afrofuturismo é um movimento que une tecnologia e ficção científica e projeta futuros a partir do entendimento da ancestralidade e recuperação das tradições e valores africanos.

Um símbolo que representa bem o lance é o Sankofa, presente no Adinkra, conjunto ideográfico dos povos Aka, da África Ocidental. O ideograma mostra um pássaro que tem sua cabeça voltada à cauda e pode ser traduzido por “retornar ao passado para ressignificar o presente e construir o futuro” – bem Afrofuturista, né, mores?

ORIGEM DO TERMO

Você se lembra do desenho animado Os Jetsons ou do filme “De Volta para o Futuro”? Pois bem, nas duas obras os personagens eram predominantemente brancos. Sempre que eu assistia, pensava “onde estão os negros no futuro?”. O mesmo questionamento fez o teórico e crítico cultural norte americano Mark Dery (um homem branco), publicar o ensaio Black To The Future em 1994. O texto, que aborda a ausência de autores negros na literatura de ficção científica dos Estados Unidos, apresentou o termo “Afrofuturismo”. Porém, os elementos que definem o conceito já existiam há décadas no cenário artístico e foram inseridos, obviamente, por pessoas negras.

AFROFUTURISMO NAS ARTES E MÍDIA

O Afrofuturismo está presente na moda, literatura, quadrinho, artes plásticas, cinema, games, música e diversas outras vertentes da cultura pop. Na literatura, temos Octavia Butler, conhecida como “a grande dama da ficção científica” e considerada a mãe do Afrofuturismo. Em 1974, Octavia lançou o romance “Kindred” (Laços de Sangue no Brasil), em que uma moradora de Los Angeles faz uma viagem no tempo de volta ao período da escravização negra nos Estados Unidos.

No cinema, o gênio Spike Lee imagina futuros, reinventa presentes e revisita o passado. No filme “A Gente se vê ontem”, de 2019, o cineasta usa a viagem no tempo como instrumento contra genocídio do povo preto. Outro exemplo das telonas que é impossível não citar é Pantera Negra, de 2018. O filme, que foi um divisor de águas no cinema, mostra uma sociedade ancestral e altamente tecnológica e possui um elenco majoritariamente negro, na frente e por trás das câmeras.

O artista plástico e grafiteiro Jean-Michel Basquiat também carrega referências afrofuturistas. O pintor, que ganhou notoriedade num mundo dominado por brancos, trazia em suas telas críticas sociais e toques de ancestralidade com um imaginário da rua.

Na música há mais dezenas de referências, entre elas Jimi Hendrix, Afrika Bambaataa, Grace Jones, Erykah Badu, Outkast e Solange Knowles. Destaco Michael Jackson, que apresentou diversas ideias de futuro, inclusive o épico passo de dança Moonwalk (“caminhando na lua” em tradução livre). E aqui vai outra curiosidade: em 1995, o Rei do Pop e sua irmã Janet Jackson protagonizaram Scream, o videoclipe mais caro da história da indústria musical, que se passa em uma nave espacial e aponta para um futuro imaginário.

Atualmente, quem bebe na mesma fonte é a cantora Janelle Monáe. Todos os discos da cantora são ambientados nos anos 2700, num universo inspirado na ficção científica “Metropolis”. Nas obras, Janelle interpreta Jane Mayweather, um androide que é caçada por ser diferente, e aborda racismo, machismo, homofobia e liberdade sexual da mulher – super recomendo ver e ouvir.

FILME “A GENTE SE VÊ ONTEM”, DE SPIKE LEE: AFROFUTURISMO EM TEMPOS DE NETFLIX

AFROFUTURISMO A BRASILEIRA

No Brasil, temos grandes nomes que são referências do movimento, como a escritora Morena Mariah, criadora do podcast Afrofuturo, e a pesquisadora Kênia Freitas. Na música, há a cantora baiana Xênia França, que conecta ancestralidade e tecnologia, enquanto faz uma ode à diáspora negra brincando com os ritmos cubanos e baianos, e a brasiliense Ellen Oléria, que une instrumentos eletrônicos à ancestralidade do samba, atabaques e forró e tem um álbum intitulado Afrofuturista.

E você sabe quem trazia elementos afrofuturistas em plena ditadura militar no Brasil? O mestre Gilberto Gil. Em 1969, no mesmo ano em que o homem pisou na Lua, Gilberto Gil foi preso por usar a música como arma de resistência e lançou o disco Cérebro Eletrônico. Em 1972, saiu “O Expresso 2222”, que partia de Bonsucesso e levava direto ao fim do milênio no ano 2000. Já no álbum Quanta (1997), Gil aborda ciência, filosofia chinesa, candomblé, hackers e internet.

Por sua vez, na década de 1980, Jorge Ben exaltava deuses astronautas, mitologia egípcia e astrologia ao mesmo tempo em que celebrava Zumbi dos Palmares e a brasilidade. Na canção “A benção Mamãe, Abenção Papai”, de 1984, ele canta:

“Eu tenho fé, amor e fé no século 21. Onde as conquistas científicas, espaciais, medicinais e a confraternização dos povos e a humildade de um rei serão as armas da vitória para a paz universal”

Vale destacar que a estrofe foi usada 18 anos depois na música Vivão e Vivendo, do Racionais MC ‘s, que ilustra a realidade do jovem negro e periférico de São Paulo.

Por fim, nos voltemos aos nossos antepassados para ressignificar nossas dores em forma de arte, defender o espaço de pessoas pretas no futuro e, ao mesmo, tempo garantir que elas estejam bem no presente. O futuro é nosso!

IMAGEM DE ABERTURA: Kaylan F. Michael (Lost In The Island)

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