*Com reportagem de Matheus Santino.
Há mais de 10 anos, o Centro de Pesquisa e Documentação Histórica Guaianás (CPDOC Guaianás) se dedica a investigar, registrar e difundir as memórias dos trabalhadores do extremo leste paulistano.
Com foco nos distritos de Guaianazes, Lajeado, Cidade Tiradentes, São Mateus e Iguatemi, o centro é formado por historiadores, cientistas sociais, fotógrafos e museólogos, entre outros profissionais.
A atuação coletiva tem feito os moradores da região se reconhecerem enquanto sujeitos históricos — pessoas que se apropriam dos processos de transformações sociais, políticas, econômicas e culturais para construir os seus próprios territórios.
Um dos primeiros projetos do CPDOC Guaianás foi As Divisas nos Muros da História. Para superar o estigma de que a região é composta por “bairros dormitórios”, foram criados grafites sobre histórias de vida dos moradores. Os desenhos nos muros promoveram o território periférico como um espaço de produção e criação.
“Estávamos acostumados a ser estudados por pessoas que não são da periferia. O coletivo surge para que nós mesmos possamos participar e relatar as nossas histórias.”
Ireldo Alves, integrante do CPDOC Guaianás.
Desde a fundação em 2014, o coletivo se mantém por meio de editais públicos de incentivo à cultura. Em 2015, por exemplo, se tornou um ponto de cultura reconhecido e apoiado pelo Ministério da Cultura e Prefeitura de São Paulo.
Já na semana que Ireldo conversou com a Emerge, o coletivo estava finalizando a inscrição de um projeto para o Programa de Fomento à Cultura da Periferia. Curiosamente, integrantes do CPDOC Guaianás participaram da criação da lei que deu origem ao programa, em 2016.
Por outro lado, mesmo com longa trajetória e reconhecimento em nível local, o CPDOC Guaianás nunca teve um projeto aprovado no Programa Nacional de Apoio à Cultura, popularmente conhecido como Lei Rouanet.
Principal meio de incentivo à cultura do Brasil, a Lei Rouanet permite que empresas e cidadãos apoiem atividades culturais em troca de descontos no Imposto de Renda (IR).
COMO DEMOCRATIZAR OS RECURSOS DA LEI ROUANET
O caso do CPDOC Guaianás não é único. Na verdade, é bem comum os recursos da Lei Rouanet não chegarem à periferia.
De acordo com a pesquisa Lei Rouanet e a Periferia, que analisou a distribuição dos recursos na cidade de São Paulo entre 2014 e 2023, apenas 1,38% dos repasses foi para projetos de organizações sediadas nas margens da cidade.
Dos oito distritos que não tiveram projetos aprovados, todos são periféricos: Marsilac e Parelheiros (zona sul), Iguatemi, Itaim Paulista, Lajeado e São Rafael (zone leste), Jaraguá e Perus (noroeste).
Já outros 14 distritos aprovaram projetos, mas não conseguiram captar nenhum valor. São eles: Anhanguera, Cangaíba, Ermelino Matarazzo, Jaçanã, Jardim Ângela, Jardim Helena, José Bonifácio, Pari, Parque do Carmo, Perus, São Lucas, São Mateus, Vila Curuçá e Vila Matilde. Juntos, somam 62 projetos aprovados sem captação.
A pesquisa Lei Rouanet e a Periferia foi realizada pelo Observatório Ibira30, em parceria com a Universidade Federal do ABC (UFABC).
De acordo com Alexandre Marques, pesquisador do Ibira30 e cofundador da ONG Braduca, o Governo Federal, como garantidor e provedor de direitos fundamentais, precisa considerar a Lei Rouanet também como um mecanismo de reparação histórica.
“Uma vez que os recursos da Lei Rouanet veem de descontos em impostos de grandes empresas e grandes fortunas, que sejam direcionados para as pessoas que foram exploradas para que essas empresas conseguissem acumular tanta riqueza”.
Alexandre Marques, pesquisador do Ibira30.
Nesse sentido, cabe ressaltar o tema Justiça Tributária, em alta no país devido ao Projeto de Lei 1087/2025. De autoria do Governo Federal, o PL amplia a faixa de isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil.
Em contrapartida, para equilibrar as receitas, o projeto propõe uma cobrança adicional de até 10% de IR para os chamados super-ricos, grupo de cerca de 140 mil pessoas com rendimento tributável acima de R$ 50 mil por mês (R$ 600 mil ao ano), de acordo com o Governo Federal.
Aprovado por unanimidade na Câmara dos Deputados no dia 1 de outubro, o projeto seguiu para o Senado. Caso aprovado e sancionado pelo presidente até o fim do ano, a medida passa a valer a partir de 2026.
Voltando a Lei Rouanet, outro ponto que colabora para a exclusão é o processo de inscrição de projetos. Para Alice Silva, estudante de Planejamento Territorial e Ciências e Humanidades da UFABC que atuou na pesquisa, é necessário simplificar o processo de aplicação.
“Os editais utilizam uma linguagem técnica que não é acessível para a maioria da população, além de ter diferentes fases burocráticas. Já cientes da dificuldade de captação, muitos proponentes desistem do processo.”
Alice Silva, estudante e pesquisadora da Universidade Federal do ABC.
Para aumentar a inclusão e favorecer o acesso aos recursos, os pesquisadores estão desenvolvendo ações com foco em organizações periféricas, como oficinas de escrita de projetos.
Nesse sentido, outra medida bem vista pelos produtores culturais é o acompanhamento das iniciativas após o repasso financeiro, como mentorias de gestão de projetos.
E PARA ONDE VAI O DINHEIRO DA LEI ROUANET?
A mesma pesquisa Lei Rouanet e a Periferia apontou que o distrito de Pinheiros é o grande epicentro de projetos aprovados, concentrando 1.382 aprovações — 15% do total.
Em seguida, aparecem Consolação, Jardim Paulista, República e Vila Mariana, todos distritos de classe média ou alta e localizados no centro ou centro expandido. Pinheiros também aparece como o distrito com mais proponentes e o com maior participação na captação.
Na outra ponta, a organização cultural que mais teve projetos aprovados foi Museu de Arte de São Paulo (MASP). Foram 16 propostas, que renderam R$ 26,6 milhões em patrocínios entre 2014 e 2023.
Na sequência das recordistas de aprovação está a Fundação OSESP e a Fundação Bienal de São Paulo. As três organizações possuem sede, respectivamente, nos distritos da Bela Vista, Santa Cecília e Moema.
Por sua vez, Painel de Dados da Lei Rouanet, da plataforma de seleção e monitoramento de projetos sociais Prosas, mostra que quatro dos cinco maiores patrocinadores, que abatem impostos via a lei, são grandes bancos. Os dados são referentes de 2021 a 2024 e abrange somente o Estado de São Paulo.
Para Alexandre, os dados mostram como dinheiro circula num mesmo ciclo de pessoas: a elite econômica paulista.
“Além do capital financeiro, há a concentração de capita social”, diz o pesquisador. “São pessoas e instituições que trabalham juntas para manter os recursos dentro de uma mesma bolha, e longe das periferias”.
FOTOGRAFIA DE ABERTURA: Favela Galeria, projeto do Grupo OPNI, no distrito paulistano de São Matheus, registrado por Rafael Felix.
*Esta reportagem foi produzida com apoio do Território da Notícia como parte da campanha Justiça Tributária, Já.