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Elas fazem a cerveja delas: antirracista, feminista e ancestral

17/08/2023

Por meio da economia solidária e aquilombamento, mulheres têm transformado o mercado da cerveja artesanal

Eu tinha treze anos na primeira vez que tomei cerveja. Não que justifique, mas havia um contexto. Era a minha primeira vez em um estádio de futebol, acompanhada do meu irmão e seus amigos de 20 e poucos anos. Havíamos viajado 75 quilômetros, de Betim, zona metropolitana de Belo Horizonte, a Sete Lagoas. Não conhecíamos a cidade e chegamos bem cedo ao estádio, que ainda estava fechado. Minha versão pré-adolescente morria de sede, mas ninguém havia levado água. A solução foi tomar cerveja, que aí sim tinha aos montes. Não curti o primeiro gole, nem o segundo e o terceiro. Levei vários anos para me render aos encantos do líquido.

Minha história peculiar não é única. Acredito que quase todos os brasileiros devem ter algo para contar sobre a bebida. Afinal, a cerveja faz parte da cultura nacional. Do churrasco na laje de quebrada ao happy hour dos farialimers. A cerveja flui nas veias do Brasil. O país é o 3º maior produtor e consumidor de cerveja do mundo, segundo dados do Sebrae e do Relatório Global de Consumo de Cerveja, ambos de 2021.

Um dado interessante é a diversificação na indústria. Há 20 anos, havia 53 cervejarias registradas no Brasil. Hoje, são mais de 1.700, de acordo com o mais recente anuário da cerveja, divulgado pelo Ministério da Agricultura e Pecuária. Desses novos empreendimentos cervejeiros, a maioria são micro empresas com produção artesanal.

Acontece que, ao observar com lupa o mercado de cerveja artesanal, encontramos um ponto de atenção. O crescimento do segmento não foi acompanhado pela diversificação dos produtores. Segundo o Censo das Cervejas Independentes Brasileiras (Sebrae e Abracerva), 90% dos produtores são homens. O estudo não analisou a raça, mas, se eu tivesse que apostar, diria que a grande maioria são brancos. 

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DA INDÚSTRIA AO COPO: MULHERES QUE MUDAM O CENÁRIO CERVEJEIRO

Desde 2017, Danielle Lira é sommelier de cerveja. Ao dar os primeiros passos na carreira, quando ainda morava na cidade do Rio de Janeiro, percebeu que costumava ser a única pessoa preta nos espaços especializados em cerveja artesanal. Quando se mudou para São Paulo, o choque foi ainda maior, o mercado era dominado totalmente pela branquitude masculina. Entre essas e outras, ao criar o Torneira Bar —instalado em Vila Madalena, bairro de alta classe econômica —, quis oferecer um espaço que abraçasse as mulheres, sobretudo negras, e a comunidade LGBTQIAP+. Ao lado de um sócio e amigo, Danielle traçou um plano de negócio que incluísse a diversidade em todas as esferas, com o compromisso na empregabilidade inclusiva como ponto essencial. A ideia é ser um bar para que todes possam ser quem são sem nenhum julgamento. Ela comenta:

“Todas as nossas vagas são afirmativas. Nossa equipe tem duas travestis, dois homens trans, duas mulheres lésbicas e assim vai. O Torneira respira diversidade”

DANIELLE LIRA, DIRETORA DO TORNEIRA BAR
DANI LIRA NO TORNEIRA BAR: UM ESPAÇO DE TODES QUE GOSTAM DE CERVEJA (Foto: Rafael Felix)

Conheci Danielle pessoalmente em ocasião da entrevista para essa matéria. Em um momento de conversa mais descontraída, ela me mostrou, irritada, duas fotos que havia acabado de receber pelo Whatsapp. A primeira era de um grupo de cerca de trinta pessoas, que eram organizadoras de um grande evento nacional de cerveja artesanal, que não vale ser citado aqui. Todas, sem exceção, eram brancas. Te dou uma chance para tentar adivinhar o gênero da maioria.

A segunda foto era das idealizadoras do Tereza de Benguela Cervejeiras, projeto que, em colaboração com a Goose Island Brewhouse, criou uma remessa limitada da cerveja de mesmo nome, do tipo Red Ale com ameixa e baunilha Kalunga, e um evento em celebração ao Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. O Tereza foi uma cocriação de Adriana Santos (sommelier de cervejas), Cinarah Gomes (sócia e idealizadora da cervejaria Serafina), Daniela Souza (idealizadora e produtora da cerveja Omi Odara), Sara Araújo (sommelier, pesquisadora e produtora de conteúdo sobre cerveja) e a própria Danielle. Na foto, as cinco mulheres negras exibiam seus sorrisos abertos e o copo cheio. “É por isso que a gente se junta, se aquilomba”, disse Danielle.  

O projeto surgiu justamente do desejo e da necessidade de aproximação de cervejeiras negras, que já tinham suas trajetórias individuais no mercado, para juntas (re)afirmarem suas posições e saberes. O nome é uma homenagem a Tereza de Benguela, líder e rainha do Quilombo do Piolho/Quariterê, que existiu na região do atual estado do Mato Grosso no século 18. Durante mais de duas décadas, cerca de 100 pessoas negras e indígenas resistiram à escravidão sob a sua liderança. Não à toa, no Brasil, 25 de julho é o Dia de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, mesmo data do Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, uma homenagem a seu legado e importância histórica.

“A união entre mulheres negras cervejeiras é um lugar para trazer o passado e trabalhar o presente para prospectar o futuro”

SARA ARAÚJO, SOMMELIER DE CERVEJA E PRODUTORA DE CONTEÚDO
TEREZA DE BENGUELA: RED ALE COM AMEIXA E BAULINHA KALUNGA COCRIADA POR CINCO CERVEJEIRAS

CERVEJA TEM ORIGEM AFRICANA

SARA ARAÚJO COM CERVEJAS, DA ESQUERDA PARA A DIREITA, STOUT, RED ALE, IPA E WEISS

Uma das linhas de pesquisa de Sara Araújo é, justamente, o resgate histórico da ancestralidade na cultura cervejeira. As origens da cerveja remontam às origens da civilização. Ela conta que os povos responsáveis pelos primórdios do cultivo e manejo de grãos tem origem no que hoje é o Egito, na civilização negro-africana Kemet. Posteriormente, houve migrações para a região da Mesopotâmia, área do sistema fluvial dos rios Tigre e Eufrates, que abrange terras que atualmente compreendem o Iraque, Kuwait e Irã.

Em 2021, arqueólogos encontram no Egito o que pode ser a mais antiga fábrica de cerveja conhecida do mundo, com cerca de 5 mil anos. Entre os achados, havia 40 potes usados ​​para aquecer uma mistura de grãos e água usada para fazer cerveja.

“O povo negro foi apagado da história da cerveja de forma proposital. Querem criar uma narrativa única dessa historiografia brancocêntrica e retirar o negro como aquele que forjou a história”, afirma Sara.  

O trabalho relevante da sommelier, infelizmente, não passou isento do racismo. Logo nos seus primeiros passos no mercado, Sara já experimentou o amargor do preconceito. Em 2018, em um festival de cerveja na cidade de Maringá, no Paraná, foi ignorada e tratada com grosseria por um atendente ao perguntar mais informações sobre uma cerveja do estilo IPA. “Não é IPA e sim Ai-Pi-Ei“, teria respondido, emulando um sotaque em inglês norte-americano. Um casal de pessoas brancas se aproximou em seguida e o mesmo vendedor “deu uma aula” para a mulher branca sobre o estilo, com toda a gentileza do pacto narcisístico da branquitude. “Era uma questão de raça”, Sara não teve dúvidas.

Ser ponta de lança já a colocou em mais situações de enfrentamento ao racismo Em 2020, após dar palestra sobre mercado cervejeiro, Sarah sofreu um massivo ataque racista num grupo de troca de mensagens com mais de 200 homens. Eles não aceitaram uma mulher preta falando com propriedade e evidências sobre cerveja, e nem a reivindicação por mais pessoas negras no mercado.

CORISCA, A CERVEJA ARTESANAL FEITA NA QUEBRADA

Nascida em Salvador, Melissa Moraes vive há 20 anos na região metropolitana de São Paulo. Atualmente, reside no município de Taboão da Serra. Antes, no bairro Campo Limpo, do outro lado da divisa. Ela conta que precisava se deslocar para a região do hipercentro de São Paulo para conseguir uma boa cerveja artesanal e ainda pagava caro por ela. “Nós atravessávamos a ponte para pagar 30 reais em um copo. Entre um gole e outro, pensava ‘por que a quebrada não pode ter a sua cerveja? Ter o nosso produto em nosso território?’”

Melissa levou a inquietação para a Agência Popular Solano Trindade, organização de fomento a economia criativa, cultura e impacto social que atua na região, da qual era integrante. O pessoal se motivou e, juntos, contrataram um instrutor para dar um curso de cerveja artesanal, o que tornou o projeto acessível. Em 2017, ela criou o seu primeiro lote de cerveja. Na sequência, criou sua marca própria, a cervejaria Corisca, ao lado da esposa Eneide Gama.

“Lá na Bahia, quando uma menina está muito agitada, serelepe, falamos que está ‘corisca’. E eu sempre fui muito corisca. Daí surgiu o nome da cerveja”

MELISSA MORAES, FUNDADORA DA CERVEJARIA CORISCA
MELISSA MIRANDA E SUAS CORISCAS, NO ZURAFFA. Foto: Rafael Felix

Seis anos depois, a Corisca é referência de cervejas produzidas por mulheres e pessoas periféricas. Com o slogan “cerveja a preço justo”, o negócio adota o modelo de cervejaria cigana, isto é, aquela que não tem fábrica própria. A Corisca tem parceria com a nanocervejaria Zuraffa, criada por outra mulher, Miriam Moraes, onde aluga um tanque industrial.

No entanto, o modelo de produção possui desafios. Devido aos custos de locação de equipamentos, o custo por litro é alto, o que afeta a margem de lucro. Uma maneira de amenizar o problema tem sido participar de eventos, em que, em vez de garrafa, a venda é feita em copos de chope, o que permite maior margem. Ainda assim, Eneide precisou voltar ao mercado de trabalho e só trabalha na Corisca aos finais de semana.

E qual seria uma boa solução para a sustentabilidade do negócio, Melissa? “O trabalho em rede é fundamental para o futuro do mercado de cerveja artesanal”, diz ela, que aparece nas fotos abaixo, fazendo o processo de engarrafamento da Corisca. “A ideia é ter uma cooperativa de pequenas empreendedoras, o que baratearia os custos e daria maior competitividade”.

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BEBA BEM, BEBA MELHOR

Além da cerveja Corisca, dos barris do Torneira só saem bebidas produzidas por produtoras independentes, pessoas pretas, LGBTQIAPN+ ou, no mínimo, de empresas com consciência sócio-política. Contar com fornecedores diversos é uma forma de conectar o público do bar. “Ao saber que está comprando uma bebida produzida por uma mulher preta e/ou lésbica, por exemplo, o cliente vai se sentir feliz e responsável por fomentar uma pessoa de sua comunidade e de mercados inclusivos”, aponta Danielle.

O TORNEIRA BAR SERVE CERVEJAS ARTESANAIS DE PRODUTORAS INDEPENDENTES, PESSOAS PRETAS E LGBTQIAPN+, MAJORITARIAMENTE

Com seu trabalho de formiguinha, divulgando a necessidade de mais diversidade e inclusão no mercado, ela espera que haja cada vez mais mulheres, sobretudo negras, no setor. “O empreendedorismo de mulheres pretas é muito lembrado apenas em julho, em novembro. Trabalhamos o ano todo”. Para superar esse obstáculo, ela vê como fundamental a capacitação dessas empreendedoras, promovida, especialmente, pelas grandes empresas, detentoras do capital e que podem garantir projetos de aprendizado e desenvolvimento. Ela acredita que o mercado irá aderir à diversidade em algum momento, mas que será feito através de três Cs: ou por convicção, ou por conveniência, ou por constrangimento.

E é por isso que trabalhos como Tereza de Benguela Cervejeiras são tão fundamentais. “A cada ano é fazer algo diferente. Mostrar nossos corpos e nossos rostos, resistindo e existindo”, completa Danielle. Sua amiga e parceira de coletivo, Sara reforça: “O futuro é ter mais vozes, mais mulheres negras no mercado da cerveja. Até porque a cerveja nasce das mãos das mulheres. Precisamos retomar o que é nosso.”

Quanto ao desafio do acesso — afinal, cervejas artesanais costumam ser mais caras — entre outros pontos, as três foram categóricas na defesa do mantra cervejeiro: “beba menos, beba melhor”. Isto é, sempre que possível, fortaleça a produção de pessoas pretas, mulheres, LGBTQIAPN+ e de periferia, cuide do seu corpo e saboreie toques ancestrais e de luta em forma de cerveja.

FOTOGRAFIAS: Rafael Felix

Quem escreveu

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Teresa Cristina

Jornalista pela Universidade Federal de Minas Gerais e colagista autodidata. Combina as paixões por escrita, arte e design. Experiência em produção e edição de conteúdo digital. Trabalhou no Museu de Arte Moderna de São Paulo e BDMG Cultural.

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