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Premiado em Cannes, filme brasileiro aborda direitos reprodutivos

25/03/2024

Levante conta a história de Sofia, uma jovem atleta que descobre estar grávida as vésperas de um torneio de vôlei

#Emergereposta: Por Anna Ortega, originalmente publicado por Nonada Jornalismo

A descoberta de uma gravidez indesejada dá início a Levante, filme recém estreado no Brasil. Às vésperas de um campeonato de vôlei decisivo para seu futuro como atleta, a adolescente Sofia (Ayomi Domenica), uma jovem atleta de 17 anos, se depara com a dura realidade da criminalização do aborto no Brasil. Ao tentar interrompê-la de maneira clandestina, a adolescente se torna alvo de um grupo conservador e encontra na força do coletivo maneiras de sobreviver.

Dirigido por Lillah Halla, e co-roteirizado por María Elena Morán, o longa-metragem vem de uma trajetória de prêmios nacionais e internacionais, como o Festival do Rio, o Mix Brasil, o Festival de Cannes e o de Roterdã. 

A primeira ideia para o filme começou quando a diretora – ela/dela/elu/delu -, ao lado da co-roteirista do filme, atravessaram juntas a fronteira do Brasil e do Uruguai. A divisa muda tudo em relação a direitos reprodutivos, já que no Uruguai o aborto é um direito de saúde público desde 2012.

Segundo a OMS, um total de 73,3 milhões de abortos seguros e inseguros ocorreram no mundo anualmente entre 2015 e 2019. Na América Latina, três em cada quatro abortos são feitos de forma insegura. Por outro lado, é também na América Latina onde parece haver a maior efervescência de reivindicação do direito. 

LEIA MAIS: A ausência gritante de protagonistas gordas no cinema

GRACE PASSÔ, A ESQUERDA, E DOMENICA DIAS, A DIREITA. (Foto: divulgação)

A FRONTEIRA AINDA A SER ATRAVESSADA

“As fronteiras fluidas são importantes no filme”, aponta a diretora. E não só os limites territoriais são alargados no filme, mas, em também os de outros temas, como gênero e sexualidade.

Através das imagens, desde os primeiros minutos, o filme não só retrata mulheres cisgênero, mas, a partir da história de Sofia, pessoas trans, não-binárias, travestis, podem também compor o filme, e são retratadas com complexidade, e, logo com dignidade. Não só o elenco, mas a maioria da equipe é composta por mulheres e pessoas LGBTQIA+s. 

O resultado visto na tela é fruto de um longo trabalho de preparação de elenco, que segundo atores e a própria diretora, buscou ser o mais horizontal possível. Durante vários meses de 2021 e 2022, a equipe se concentrou e viveu junto em uma mesma casa. A preparação para as gravações aconteceu durante o período da pandemia, então o vínculo do elenco surgiu daí, por meio desse fortalecimento de laços.

Outra etapa foram os treinos de vôlei, em que o elenco recebeu treinamento como uma equipe profissional, com treinador e rigor técnico.

Foram dez anos entre o primeiro rascunho que Lilah fez do filme até o lançamento em 2023. O principal entrave relatado foi a captação de recursos, estagnada durante os últimos anos de desmonte cultural no país, em que o MinC foi extinto e a Ancine desmontada.

Para a diretora, o filme foi se transformando ao longo dos anos, e algumas das próprias imagens presentes bebem de cenas políticas marcantes do presente recente.

A diretora recebeu muitos questionamentos sobre a temática do filme. “A gente ouviu muitas vezes de patrocinadores e produtores que esse era uma ‘assunto de menina’. Daí começamos a hackear essa história e pensar: como tornar essa história de todes?”, contou, em resposta à pergunta do Nonada na coletiva de imprensa. Realizado com financiamentos internacionais, tornando-se uma coprodução entre Brasil, França e Uruguai.

“A gente ouvia muito: mas por que mais uma história sobre aborto? Acabou de sair uma. No começo eu ficava ofendida, mas depois comecei a me perguntar: mas por que mais uma história sobre traição, sobre coração partido?”

LILLAH HALLA, DIRETORA

O filme aborda, sobretudo, uma rede de apoio a qual a protagonista, Sofia, faz parte, em que amigues mostram ser sua família. Para a atriz Onna Silva (Nicolle) – ela/dela- o longa é uma história que humaniza todos os personagens envolvidos nela.

“É algo que acontece com vizinhas, primas, mães, tias. E a gente só vai conseguir se tivermos uma rede”

ONNA SILVA, ATRIZ

Para o ator Loro Bardot (Bel), a história é sobre contar as histórias que se passam com esses corpos, dos atores e dos personagens, a partir do ponto de vista da não promiscuidade que sempre contam sobre os corpos trans, pretos, LGBTs, corpos de pessoas que abortam.

“A importância do filme está em colocar esses corpos que são sempre vistos como promíscuos em uma rede de família, em um coletivo” 

LORO BARDOT, ATOR

Um dos acertos de Levante é apontar, do início ao fim, as questões particulares do (não) direito ao aborto em nosso país. Os cultos evangélicos e as ciladas para culpabilização social de quem pensa em abortar são retratados de forma corajosa no filme.

Se desde a idealização, a diretora e roteiristas pensaram em falar sobre fronteiras, nesse aspecto o longa cumpre um papel relevante de mostrar até onde correntes fundamentalistas cristãs são capazes de ir para cercear a liberdade do corpo de mulheres e pessoas que podem abortar. 

Levante evidencia que as diferentes condições estruturais e sociais mudam significativamente o direito à justiça reprodutiva. Lorre Motta (Ciano) -ele/dele- destaca que isso se reflete na própria trama da personagem principal.

“Quando uma pessoa preta busca saber sobre um aborto, ela é imediatamente encontrada, notificada. Toda perseguição que a Sofía e o grupo dela sofrem é por ela ser hipervisível, porque uma pessoa branca, cisgênera, vai fazer isso da forma mais anônima possível. Jamais seria condenada pela lei e jamais sofreria a violência que corpos pretos e/ou trans sofrem. A gente está exposto até demais”, conta.

ELENCO DE LEVANTE. (Foto: divulgação)

O COLETIVO NÃO É UMA UTOPIA

A atriz Karina Ishida (Mayumi) – ela/dela –  explica que “o que mais inspira é quebrar estigmas e parar de fingir que as coisas não acontecem, ou que é só com algumas pessoas”. Em um dos lançamentos do filme, a equipe perguntou para o público da sala de cinema quantas pessoas conhecem alguém que já havia abortado, e, elas contam, que praticamente todo o cinema ficou todo de pé.

Vale destacar que em nenhum momento é relevante à narrativa o modo como Sofia engravidou. A decisão dela é o ponto de início e, mesmo que esse seja apenas um detalhe, a escolha de não mostrar o que aconteceu antes diz muito sobre o argumento central do longa-metragem. 

A trilha sonora, composta por Maria Bertoldo, com participação especial de Badsista e Juçara Marçal, também dá o ritmo do filme e ocupa um lugar central na trama. As artistas contam que as próprias ideias para as músicas surgiram a partir de playlists colaborativas entre a equipe durante a preparação de elenco.

É destaque também a fotografia, dirigida por Wilma Esser, em que as imagens revelam gozo e alegria sem fetichizar corpos LGBTQIA+s. É possível sentir através do que vemos que as imagens são construídas de dentro para dentro, e não a partir de um olhar exterior, cis-masculino.

Embora a presença feminina e dissidente seja marcante e maioria, o personagem do pai João (Rômulo Braga) também ganha importância no desenrolar de Levante. Lillah conta que a entrada desse personagem no roteiro também foi gradual, após uma série de pitches e reformulações.

A presença do pai rende alguns dos melhores diálogos do filme, como o momento em que Sol (Grace Passô), treinadora do time, o aconselha: “Ou você ajuda ou você atrapalha”. O vínculo entre pai e filha também reforça o compromisso do filme em mostrar que o aborto é um tema para todas as pessoas. 

O longa é repleto de imagens que acrescentam camadas oníricas e afetivas. Ao contrário do que se pode esperar em uma narrativa vendida pelo conservadorismo como violenta, o filme abre espaço para um mel que escorre, através de planos detalhes muito bem escolhidos, e de uma cumplicidade que fica visível, e encoraja, que assiste.

Em resumo, Levante faz diversas defesas, que vão além do direito de decidir e existir. Defende também um cinema em que corpos marginalizados não sejam vitimizados na tela, mas que possam ser vistos como dignos de amor, afeto, doçura, e família. Em Levante, o coletivo não é uma utopia. 

Foto de abertura: divulgação

#FICAADICA: A associação de jornalismo feminista Gênero e o Número separou mais filmes recentes sobre aborto para se aprofundar no tema — como Incompatível com a Vida, de Eliza Capai. Boa sessão!

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