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O futuro da Mamba Negra

12/01/2018

Mamba Negra, festa de música eletrônica feita por mulheres e pessoas LGBTQIA+, corre o risco de acabar devido pressão política.

O ano de 2018 não será fácil para a Mamba Negra, uma das principais festas independentes de música eletrônica de São Paulo. As dificuldades atuais não são tão novas. No entanto, agora, os “inimigos” estão mais organizados. Há maior burocracia e repressão, dentro da “legalidade”, dos órgãos públicos e o lobby de empresários da noite que tentam inibir movimentos artísticos autônomos.

“Talvez, a gente rode em breve”, afirma Laura Diaz, cantora e produtora musical, que ao lado da DJ Carol Schutzer, a Cashu, fundou a Mamba Negra.

Em 2013, a festa nasceu com a proposta de criação de espaços de experimentação artística e política. Com atuação focada no centro velho, a ideia é explorar ambientes mal utilizados da metrópole – as cicatrizes geradas pelo plano urbanístico falho e a especulação imobiliária.

Em quase uma centena de festas, houve edições gratuitas no Largo São Francisco; debaixo do Viaduto do Chá; na ocupação do MSTS no Cine Marrocos; no Centro Cultural Ouvidor 63, prédio do governo do estado ocupado há três anos por artistas, e na Casa Florescer, centro de acolhida para mulheres trans e travestis.

Em paralelo, a Mamba também realiza festas pagas, que são usadas para custear os eventos gratuitos. As edições acontecem em fábricas abandonadas da Luz, Ipiranga e Brás. O resultado: um espaço utópico [perfeito] e distópico [assustador por evidenciar uma realidade opressiva].

“A Mamba é um meio e uma mensagem de criação de liberdades criativas, sexuais e de consciência e gênero”

Cashu, fundadora da Mamba Negra
MAMBA NEGRA: edições privadas custeiam eventos em locais públicos

BUROCRACIAS, INFLAÇÃO E EMPRESÁRIOS

Em maio de 2017, durante os preparativos finais da festa de aniversário de quatro anos, a Mamba Negra sofreu um baque. A Fabriketa, antigo prédio industrial onde seria o local da festa, foi embargada uma semana antes durante a realização de outro evento. A justificativa dada por Fábio Lepique, na época secretário adjunto das Prefeituras Regionais – ele foi demitido por João Doria em outubro –, foi que o local não possuía alvará de funcionamento.

No entanto, a Mamba Negra já tinha emitido seu alvará semanas antes. Mesmo para um evento de pequeno porte, a emissão de alvará requer uma série de documentos. Em média, o custo é de R$ 10 mil.

A saída foi fazer a festa num espaço convencional e convocar uma manifestação para não deixar a treta passar batida. Numa tarde de domingo, o after aconteceu num trio elétrico que circulou pelas ruas da cidade até a sede da Prefeitura.

De acordo com Laura, as fábricas abandonadas usadas por elas estão localizadas em zonas industriais e mistas da cidade. “Têm arquitetura ideal para realização de eventos” diz ela. “Contem com amplos espaços de circulação, acesso, ventilação e rotas de fuga”.

ESPAÇOS OCIOSOS: festas acontecem em fábricas abandonadas

Além da despesa com alvarás, a Mamba tem sofrido com a inflação dos preços das locações e de fornecedores, como iluminação, caixas de som e banheiros químicos. No geral, os preços triplicaram. Hoje, o custo para realizar uma festa para cerca de 1.500 pessoas pode chegar a R$ 100 mil.

Quando há o embargo de uma locação em cima da hora, o prejuízo é tão grande que pode inviabilizar a continuidade de um coletivo ou grupo independente. No último semestre de 2017, a Mamba não conseguiu gerar receitas suficientes para cobrir os custos dos eventos.

Ao mesmo tempo, as festas de rua também estão mais escassas devido a outra burocracia. Desde o início de 2017, o pedido de autorização para eventos em espaços públicos deve ser feito, no mínimo, com dois meses de antecedência  – e sem a garantia de aprovação.

De acordo com Laura e Cashu, o panorama piorou desde o início da gestão do prefeito João Doria, mas o problema não é exclusividade do atual mandato. Entre as causas está o que Laura chama de “plano de venda da cidade”, que beneficia apenas empresas quando o assunto é uso do espaço público.

Vale lembrar que, no final do ano passado, foi aprovada a lei que rege o Plano Municipal de Desestatização. A diretriz prevê a concessão de parques, terminais de ônibus, mercados municipais e outros bens da cidade para a iniciativa privada. Para Laura, quando empresas privadas passam a ter poder sobre o espaço público, surge medidas de proibição de acesso e circulação, o que tornam o ambiente infértil. Assim, há o esvaziamento do conceito de cidade.

“A cidade ainda não é capaz de absorver as iniciativas culturais e a demanda jovem. Nós acreditamos que a cidade deve ser para todos”

Laura, fundadora da Mamba Negra

E há mais embaraços. Em 2016, nasceu a Associação da Noite e Entretenimento Paulistano (ANEP), que reúne promotores de eventos e donos de grandes casas noturnas, como D-Edge, The Week e Lions. O objetivo é representar estabelecimentos de lazer e entretenimento no debate com o poder público e a sociedade.

A ideia pode parecer boa. No entanto, de acordo com Laura, a ANEP não mantém diálogo com os coletivos de festas de rua. Inclusive, a atuação da ANEP, focada somente em negócios formais, marginaliza ainda mais os coletivos, que não possuem interlocução positiva com o poder público.

AUTONOMIA E LIBERDADE

Talvez, o distanciamento da ANEP tenha sido causado porque os coletivos geraram uma ruptura na cultura de música eletrônica da cidade.

CASHU E LAURA: representatividade feminina na noite paulistana

No começo da década, a noite paulistana era feita por clubes fechados, com preços de entrada e consumo abusivos, seguranças truculentos e pouca diversidade na programação. Geralmente, os artistas eram homens brancos, o que Laura costuma chamar de “paredão de boy”.

Com a efervescência dos coletivos, que teve início com a Voodoohop, no final de 2009, as coisas mudaram. Surgiram festas como Capslock, Selvagem, Gente que Transa e Metanol. Na mesma época, a Mamba foi criada.

Se nas primeiras edições a Mamba Negra reunia cerca de 300 pessoas, três anos depois houve eventos com mais de 2.000. Elementos consagrados por Laura e Cashu, como a comunicação baseada em Glitch Art (a exploração estética do erro causado por máquinas digitais), locações não convencionais, instalações artísticas e performances pipocaram na noite.

REDUÇÃO DE DANOS E DIVERSIDADE

Infelizmente, a popularização das festas independentes trouxeram alguns males. A maior lotação fez surgir casos de frequentadores que foram dopados na intenção de serem furtados ou assediados.

Há pouco mais de um ano, a Mamba Negra também se associou à Coletividade Namíbia, grupo que reúne artistas negros LGBTQI+. Hoje, a Coletividade Namíbia é responsável pelas performances das festas. Em 2017, também foi implementada a lista VIP para pessoas transgêneros.

Acesso o sinal amarelo, organizadores de festas se reuniram com um grupo de prevenção de danos e criaram campanhas de conscientização sobre o uso de drogas e saudabilidade. A Mamba também passou a oferecer água de graça nas festas pagas – o que diminui as ocorrências médicas em 80%.

“É uma questão de representatividade. Quanto mais artistas negros, mulheres e trans no palco, maior será a diversidade do público”

Cashu

Outra iniciativa foi a criação da Mamba Rec, selo musical para lançamentos de produtores que permeiam as festas e estão fora do circuito comercial. Já houve três lançamentos: Gasolina, do Teto Preto; Serra, de EXZ; e Demolição, de Entropia-Entalpia.

Neste ano, a Mamba também pretende lançar um zine (bem no estilo punk) com fotos, textos poéticos e agenda de eventos. Há também a ideia de criar um site para reunir todas as iniciativas, como o Rádio Vírusss, podcast semanal comandado por Cashu. A intenção é não depender tanto do Facebook, que já excluiu o perfil das duas.

E o que mais podemos esperar de 2018?

Laura e Cashu reconhecem que, no passado, os coletivos falharam ao não se articularem na criação de uma estratégia para proteger as festas à longo prazo. Mas, agora, já há movimentações conjuntas. Aqui, cabe um detalhe: embora atue em rede e de forma horizontal, a Mamba Negra, por si só, não é um coletivo, mas sim um projeto dirigido por Laura e Cashu.

Para elas, é necessário que a comunidade das festas independentes – artistas, produtores culturais e frequentadores – tenha uma postura política mais forte. “Temos que captar a informação, politizar a discussão e batalhar pelo nosso espaço”, afirma ela.

E quem estiver pela frente, sinta o suor frio. A cobra peçonhenta está preparada para o ataque.

IMAGENS: João Ferreira (Laura e Cashu) e arquivo Mamba Negra (festas)

Quem escreveu

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Italo Rufino

Jornalista pós-graduado em marketing com dez anos de experiência. Trabalhou na revista Exame PME (Editora Abril), nos sites Diário do Comércio e Projeto Draft e na ONG de urbanismo social A Cidade Precisa de Você. Natural de Diadema (RMSP). Pai de uma criança de 10 anos. Fundador da Emerge.

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