Coletivo formado por profissionais do audiovisual foca em projetos de formação, curadoria e aproximação de agentes do segmento entre o público afro-brasileiro
O Brasil é a maior nação negra fora do continente africano. Somos 54% da população brasileira, mas, assim como ocorre em outras áreas, a nossa presença não se reflete no mercado audiovisual brasileiro.
De acordo com a pesquisa Raça e Gênero no Cinema Brasileiro, do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa, das 10 maiores bilheterias nacionais entre 2002 e 2014, apenas 3% foram assinadas por um cineasta negro, 2% tiveram roteiristas negros envolvidos e nenhuma obra foi dirigida ou roteirizada por uma mulher negra.
A partir deste cenário de exclusão e de forma propositiva, nasceu o Instituto Nicho 54.
O coletivo busca aumentar a inserção de pessoas negras no cinema nacional por meio de projetos de formação, curadoria e de aproximação com agentes do setor.
Recém fundado, o Nicho 54 é formado por Fernanda Lomba, produtora executiva; Heitor Augusto, crítico e curador; e Raul Perez, roteirista e executivo de comunicação. Os três são profissionais negros com experiências distintas.
O objetivo do coletivo é garantir a representatividade racial no cinema, atuando na estruturação de carreiras de homens e mulheres negras em posições de liderança criativa, intelectual e econômica na indústria. O coletivo também incorpora perspectivas de gênero, classe e orientação sexual. Fernanda comenta o panorama:
“O abismo racial na indústria do audiovisual brasileiro não acontece pela ausência de profissionais negros. O que falta é oportunidade no mercado e iniciativas acessíveis de formação”
O projeto nasce em diálogo com experiências internacionais que tratam de reparação histórica frente ao cenário de exclusão devido raça e gênero no audiovisual. São exemplos de programas já existentes o Diversity at Berlinale e Diversity in Cannes.
A CONSTRUÇÃO DA NOSSA PRÓPRIA NARRATIVA
Em 20 de novembro (Dia da Consciência Negra), o Nicho 54 lançou o Nicho Novembro, uma iniciativa que reúne mostra de filmes, workshops e uma masterclass com Maria Angela de Jesus, diretora brasileira de produções originais da Netflix no Brasil (saiba mais sobre evento que acontece dia 30 no final do texto). Todas as atividades são gratuitas.
A ação tem correalização da Spcine, apoio do Projeto Paradiso, uma iniciativa do Instituto Olga Rabinovich, e acontece no Jardin do Centro, espaço que inclui café, sala de cinema e coworking no centro de São Paulo. O local também abriga a residência da Emerge.
Na abertura do Nicho Novembro, o coletivo realizou um bate papo com profissionais e estudantes de audiovisual. Na sequência, com o intuito de contar novas narrativas e reforçar a mensagem sobre a potência negra, foi realizada uma exibição do longa Cleopatra Jones, dirigido por Jack Starrett.
Lançado em 1971, a trama conta as aventuras da heroína homônima que usa o trabalho de supermodelo para viajar para lugares exóticos e realizar missões secretas para o governo americano. Ela também desmascara policiais racistas e é orgulho de sua comunidade.
No filme, quem dá vida a personagem é a atriz Tamara Dobson, ícone do “Black Is Beautiful” que também era modelo e participou de campanhas para marcas como Revlon, Fabergé e Chanel.
O longa é um clássico do Blaxploitation, movimento cinematográfico protagonizado por atores e diretores negros, que também tinha o negro norte-americano como público-alvo. Vale lembrar que Quentin Tarantino se inspirou no Blaxploitation para criar seu clássico Jackie Brown, estrelado por Pam Grier, em 1997.
De acordo com os integrantes do Nicho 54, a exibição de Cleopatra Jones é importante devido ser extremamente necessário ter narrativas cinematográficas em que pessoas negras são vistas de forma positiva. É uma questão de representatividade, como a que aconteceu recentemente com o filme Pantera Negra.
Ao longo da história do cinema, foi – e ainda é – comum atores negros interpretar personagens subalternizados, seja de uma empregada doméstica que vive na casa de uma família rica (e branca) ou de um trapaceiro que vive de aplicar golpes.
Geralmente, esses filmes, como a grande maioria, são dirigidos ou produzidos por pessoas brancas – e suas obras ajudam a cristalizar uma imagem social negativa em relação aos negros.
“É necessário que pessoas negras construam suas próprias narrativas para que, cada vez mais, também possamos nos ver como heróis nas telas”, afirma Heitor.
Ao fim da exibição, todos os presentes foram convidados para mais uma celebração, dessa vez no Quintal do Centro, que também pertence a rede do Jardin. Foi lá que rolou uma edição especial do Afrojam, projeto musical que celebra a música de artistas negros independentes.
Além de colocar todo mundo para dançar, a festa fomentou ainda mais a sensação de aquilombamento presente em toda a programação do Nicho Novembro.
SERVIÇO
Nicho Novembro
Masterclass com Maria Angela de Jesus, diretora de produções originais da Netflix no Brasil.
Dia 30/11 (sábado), às 15h30.
No Unibes Cultural (Rua Oscar Freire, 2.500, Sumaré, São Paulo – SP).
Entrada gratuita.
Jardin Do Centro
Cafeteria e loja de plantas. Um pequeno oásis verde no centrão de São Paulo.
Rua General Jardim, 490, Vila Buarque – São Paulo (SP).
De segunda a sábado, das 9h às 20h, e domingo, das 10h às 17h.
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Diálogos e Café
Diálogos e Café é a nova editoria da Emerge Mag, fruto de uma parceria com o Jardin do Centro, que congrega a marca homônima; o Quintal do Centro; o Bento 43 e a Quadra 27. A parceria de mídia consiste, principalmente, na cobertura de eventos culturais, artísticos e de viés social de diferentes vertentes.
Fotografias: Marcelo Nucci/Adesampa