Reportagem de Giovanna Mattos e João Guerrato, alunos de jornalismo da Universidade São Judas Tadeu, realizada via convênio de ensino dual com a Emerge Mag, sob supervisão de Jaqueline Lemos.
Na periferia de São Paulo, onde os muros ganham vida com o graffiti, onde o break resiste no asfalto quente e o rap ecoa entre becos e vielas, surge uma voz que carrega a força de uma revolução. Essa voz é de Sodomita, multiartista, travesti negra, de 34 anos. Cria da Vila Nhocuné, na zona leste, ela transforma resistência em arte, contestação em música e vivência em poesia.
O hip-hop, com seus quatro elementos — rap, DJ, breakdance e graffiti —, é muito mais do que expressão cultural; é uma ferramenta de luta. Ainda há quem afirme que o quinto elemento seja o conhecimento, e Sodomita é a personificação disso. Para ela, a arte é sobrevivência e resistência.
“Nunca foi fácil viver aqui nesse lugar. No país que mais mata nós, minha voz nunca se calará”, declara, com a convicção de quem sabe o peso de cada palavra.
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O INÍCIO DE UMA TRAJETÓRIA ARTÍSTICA
A relação de Sodomita com a arte começou cedo, incentivada pela mãe, que a matriculou no teatro ainda na infância. “Meu primeiro contato com a arte foi com a dança, e isso foi desbloqueando novas paixões. Eu sempre gostei de escrever, já fazia poesia com 12 anos. Por isso uso muito o termo ‘multiartista’, porque sempre tive contato com várias linguagens artísticas”, explica.
Outro pilar em sua formação foi seu irmão, que apresentou a ela o universo do hip-hop, com grupos como Racionais MC’s. No entanto, como tantas crianças e adolescentes da periferia, os sonhos precisaram ser adiados pela necessidade de sobrevivência. Aos 16 anos, começou a trabalhar em restaurantes, bares e telemarketing para ajudar em casa.
“Infelizmente, o corre não é fácil. Da realidade que eu venho, qualquer forma de fazer dinheiro é válida.”
Sodomita
Mesmo afastada de suas aspirações artísticas, ela nunca deixou de escrever, dançar e se expressar. A arte permanecia latente, aguardando o momento certo para florescer.
A ORIGEM DE “SODOMITA”
Seu nome artístico, Sodomita, surgiu em um contexto de repressão e preconceito, mas foi ressignificado como símbolo de resistência. Criada em um ambiente religioso, frequentava a Igreja Universal do Reino de Deus, onde enfrentou discriminação devido à sua orientação sexual.
“Em uma dessas picuinhas de igreja, começaram a me chamar de ‘Sodomita’, pelo significado pejorativo. Foi doloroso, mas acabei abraçando o nome como forma de subverter esse ataque.”
Sodomita
Com o tempo, Sodomita entendeu a necessidade de separar o nome artístico de suas vivências pessoais. “Meu nome é Nia Naya, mas Sodomita é uma parte importante de quem sou. É a força da arte que transformei em resistência.”
O REENCONTRO COM A ARTE E A TRANSIÇÃO
Em 2015, Sodomita ingressou no curso de Jornalismo da PUC-SP, mas enfrentou dificuldades no ambiente universitário. “Foi muito violento, muito tóxico. Eu não me sentia pertencente”, relata. Após dois anos, decidiu trancar o curso e se reconectar com sua essência.
Ao se mudar para Florianópolis, encontrou no breaking uma nova forma de expressão. De volta a São Paulo em 2018, descobriu a cultura ballroom, que se tornaria essencial em sua vida pessoal e artística.
“Dentro do ballroom foi onde eu transicionei. Esse espaço me permitiu ser quem eu realmente sou.”
O ballroom, movimento artístico e político LGBTQIAPN+, ganhou força no Brasil e se tornou um lugar de acolhimento para corpos marginalizados. Sodomita participou ativamente da cena de São Paulo, que, no início, era composta por apenas três organizadores. Hoje, as balls acontecem quase todos os fins de semana, refletindo o crescimento dessa cultura no país.
Foi nesse ambiente que Sodomita começou a se aprofundar na música, conectando-a às poesias que já escrevia. Como commentator — responsável por narrar e guiar os eventos — descobriu sua potência vocal. “O ballroom me proporcionou um espaço seguro para explorar a musicalidade e conectar isso ao hip-hop.”
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ENFRENTANDO INSEGURANÇAS E ENCONTRANDO SUA VOZ
Mesmo envolvida com a música, Sodomita enfrentava um grande desafio: sua insegurança. “Eu fazia minhas músicas, mas não conseguia mostrar para ninguém. Tinha muita vergonha, muita, muita vergonha”, relembra. A pandemia de 2020 foi um momento de virada. Em meio ao isolamento, gravou um vídeo cantando Cadela de Raça (renomeada para Kdela de Ha), que hoje acumula mais de 64 mil reproduções nas plataformas digitais.
Foi também nesse período que enfrentou uma perda devastadora: a morte de seu irmão para a Covid-19. Apesar da dor, transformou esse luto em força criativa, participando de lives e ampliando seu alcance como artista.
Após o isolamento, realizou seu primeiro show na Praça Roosevelt, em São Paulo. Sem ter lançado um single, se apresentou em eventos de grande visibilidade, como o Rock in Rio. “Demorei para lançar minha primeira música, mas me apresentei em lugares incríveis. Foi surreal”, conta.
UM MARCO NO RAP NACIONAL
A participação de Sodomita no projeto Poetisas no Topo 3, da Pineapple Storm Records, foi um divisor de águas em sua carreira. Ao lado de grandes nomes femininos do rap, ela trouxe representatividade ao ser a única travesti no projeto. “Escrevi meu verso em 20 minutos. Estava nervosa, mas sabia que estar ali era importante”, diz ela.
O projeto, que acumula mais de 4 milhões de visualizações no YouTube, solidificou sua relevância na cena do rap e abriu portas para novas oportunidades.
“O rap ainda é muito masculino, então ser uma travesti nesse espaço é uma conquista enorme.”
Sodomita
Hoje, com cerca de 200 mil ouvintes mensais no Spotify, Sodomita representa uma nova geração de artistas independentes que conquistam espaço em plataformas digitais. Segundo dados de 2023, mais de 70% da receita gerada por artistas brasileiros no Spotify veio de artistas independentes ou selos menores, refletindo o impacto dessa nova dinâmica.
Ainda assim, ela não romantiza as dificuldades de ser uma artista independente. “Ter visibilidade é lindo, mas viver disso é um desafio imenso. Eu canto, componho, escrevo, pinto, atuo, tudo porque amo a arte, mas também porque é minha forma de sobreviver.”
Em 2024, Sodomita participou da Expo Favela Brasil, uma feira que promove empreendedores das favelas. Para ela, foi um momento de reafirmação. “A gente vê várias pessoas sugando nossas ideias, então ter um espaço onde somos protagonistas é essencial.”
Atualmente, ela usa sua música para narrar histórias de resistência, representando travestis e pessoas negras na cena do rap. “Fazer rap é falar sobre o que sou e o que passei. É dar voz a quem vive à margem, é transformar dor em força.”
Sodomita deixa um recado para quem enfrenta os mesmos desafios que ela enfrentou. “Obrigada por acreditar. Por não ter vergonha de falar o que fala, de construir o que construiu. Obrigada por ter coragem.”
E assim, com coragem e talento, Sodomita segue transformando a periferia em arte, o rap em resistência e sua vida em inspiração.
Fotografia de abertura: Bruna Di