Reportagem de Bárbara Ariola
A primeira personagem lésbica que se tem notícia no teatro brasileiro data de 1950, da peça Entre quatro paredes, a portas fechadas. Não tinha beijo no roteiro escrito por Adolfo Celi: quem decidiu foi a irreverente Cacilda Becker que, ao interpretar uma ‘lésbica cruel’ (sic, 2007), achou que valia dar um beijo na sua colega de cena. Outra referência de prestígio é a peça de 1982, As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, dirigida por Celso Nunes em referência ao filme alemão, de mesmo nome, escrito por Rainer Warner Fassbinder. A história é sobre uma estilista apaixonada platonicamente por outra moça, que na versão brasileira é interpretada por ninguém menos que Fernanda Montenegro.
Depois disso, vieram mais algumas peças estreadas por Christiane Torloni, Vange Leonel, etc; mas poucas registradas, embora a gente saiba que, fora dos grandes circuitos e registros históricos, muita coisa aconteceu na relação entre lésbicas e sua representação nas artes cênicas.
A experiência lésbica — seja ela vivida por mulheres cis ou trans — não é algo muito popular nas grandes mídias, sobretudo no teatro, mas isso não significa que não haja arte sendo produzida no mundo e Brasil afora. No cenário das artes cênicas brasileiro, são produções, em sua grande maioria, independentes, que necessitam de financiamento de editais e políticas públicas de fomento. Dificilmente iniciativas privadas ou maiores instituições vinculadas ao teatro fomentam narrativas do tipo.
Para quem vive o amor, a sexualidade e identidade de gênero dissidente, ou seja, fora dos padrões heterossexuais, a pergunta que paira é: quem tem medo de ver a figura da lésbica sendo representada nos palcos e até mesmo na televisão? Nós, que vivemos essa experiência, sabemos a resposta.
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POLÍTICAS PÚBLICAS MUDAM A CENA DO TEATRO LÉSBICO
A atriz e dramaturga Bárbara Esmênia, 39 anos, vinda do bairro da Penha, Zona Leste de São Paulo, integrante do grupo Ybyrá Teatro das Oprimidas, aponta para a importância das políticas públicas para a manutenção de um teatro lésbico. Não só para acesso, mas para a formação no teatro, principalmente no contexto de periferias.
Sua trajetória começou aos 15 anos, no seu bairro de origem, com o projeto Ocupação nos Teatros Públicos, da prefeitura de São Paulo (na gestão da então prefeita Marta Suplicy, atualmente filiada ao Partido dos Trabalhadores), no Centro Cultural da Penha. No ano seguinte, Bárbara ingressou no Programa Vocacional, projeto também de políticas públicas que formou e forma até hoje artistas no campo das artes visuais, música, dança e teatro.
“Em termos profissionais, no sentido de ser remunerada, tem acontecido mais agora. Dei algumas oficinas de teatro ao longo do caminho, e agora um pouco com a dramaturgia. Desde 1999 nunca parei de fazer teatro, mas sempre autônoma e sem verba.”
Bárbara Esmênia estreia pela primeira vez como dramaturga a peça Cavalos Pretos são Imensos, selecionada entre 280 textos pela 7ª Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos, pelo Centro Cultural São Paulo, outra instituição cultural pública da cidade.
O espetáculo conta história de Nininha, personagem inspirada em Luana Barbosa, lésbica negra e mãe que foi assassinada por três policiais militares em 2016, na cidade de Ribeirão Preto, ao se recusar a ser revistada por policiais do sexo masculino. Caso não fosse morta, qual seria o seu destino? Possivelmente o cárcere, que é a narrativa que Bárbara nos traz com as atrizes Fernanda Gomes, Martinha Soares, Rebeka Teixeira, Rosangela Roma e Valquíria Rosa, com encenação de Thais Dias. A peça, que estreou em junho de 2023, foi também selecionada pela Royal Court Theatre de Londres para uma leitura dramática em janeiro de 2024.
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LESBOFOBIA E MISOGINIA
Outro grupo de teatro que conta — e reconta — a narrativa de vidas lésbicas é a Cia do Flores, do ABC Paulista. Mais especificamente na sua última peça Flores Brancas, também viabilizada por políticas públicas, dessa vez pelo Programa de Ação Cultural (ProAC), do Governo do Estado de São Paulo. O espetáculo é protagonizado pelas atrizes Daniela Rosa, Denise Hyginio e Fran Rocha, com som da musicista Mica Matos, todas lésbicas, sob direção de Claudia Jordão. Além da vivência, a peça é baseada em uma pesquisa profunda a partir do Dossiê sobre Lesbocídio no Brasil, com dados entre 2014 e 2017.
Conversamos com Fran Rocha, 36 anos, também cria de políticas públicas para o teatro. Suas primeiras aulas foram na sua cidade natal, Santo André (SP), em oficinas promovidas pela prefeitura. Desde então, passou por alguns projetos e grupos de teatro, até chegar na Cia do Flores.
“O teatro é muito aberto, é um trabalho livre, tanto que a gente tem inúmeros grupos, companhias e projetos. É para gente ser quem a gente é, falar de política e tudo mais”, afirma. “Porém, foram pouquíssimas as atrizes que vi ao longo da minha trajetória que sejam como eu.”
O “como eu” mencionado por Fran é o perfil lésbico desfem, de mulheres que não performam feminilidade, popularmente conhecidas como “caminhoneiras”. Tanto na história de Luana Barbosa quanto na pesquisa feita pela Cia do Flores para montagem de Flores Brancas, o que se vê são histórias de lesbofobia em que os alvos principais são lésbicas que não performam o que se espera socialmente de uma mulher — o que traz uma camada a mais de misoginia para a opressão.
Ainda que as narrativas abordem temáticas sensíveis, ambos espetáculos dão novos contornos e formas de se contar essas histórias. Teatro lésbico não são apenas histórias de quem vai dar o beijo em quem, ou uma ‘simples’ história de amor, mas vivências que são profundas, únicas e muitas vezes arriscadas de se viver em um mundo hostil às mulheres, especialmente as fora dos padrões e negras.
ABISMO DE ACESSO
De acordo com Bárbara, as companhias atuam sem perspectivas financeiras a médio e longo prazo. Por depender de editais, há períodos em que projetos são aprovados e outros que não há apoio.
Na visão da atriz e dramaturga, além de questões burocráticas que dificultam o acesso, ainda são poucos artistas e projetos que conseguem as verbas de fomento. Nos últimos editais do ProAC de 2023, por exemplo, dos mais de 19 mil inscritos, apenas 870 projetos acessaram a verba de R$ 89,2 milhões, prevista para as 45 categorias do programa.
“Tem esse abismo de como a gente constrói uma política pública que vai suplantar cultura. E a gente está falando de algo que vai ser devolvido de forma gratuita ou de forma acessível para a população. É entender a arte, como dizia Amir Haddad, como um serviço público, se não a gente entra num funil de pensar em arte como mercadoria”, defende.
FOTO DE CAPA: Daisy Serena
EDIÇÃO E REVISÃO: Teresa Cristina