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Um ano de Casa 1. Os desafios do centro LGBT mais pop de São Paulo

18/01/2018

Iran Giusti fala sobre as belezas e dores de manter a república e espaço cultural Casa 1.

Há um ano, nascia a Casa 1, o centro de acolhida LGBT mais popular de São Paulo. O espaço foi fundado por Iran Giusti, de 28 anos, para receber jovens expulsos de casa ou que passaram por situações de extrema violência. O projeto tomou forma por meio de uma campanha de crowdfunding. A inauguração foi em janeiro de 2017.

Com capacidade para 20 pessoas, a casa recebe pessoas entre 18 e 25 anos, que podem se abrigar no espaço por até três meses, com direito a refeições. Em um ano, 74 moradores passaram pela casa e a grande parte é de pessoas pobres, negras e de baixo grau de escolaridade. A maioria chega desempregada. Iran comenta o panorama:

“Embora não exista um perfil de LGBT que é expulso de casa, naturalmente se criou um recorte na Casa 1 devido a questões estruturais da nossa sociedade, que fazem com que pessoas negras e pobres estejam mais expostas à violência”

A proposta da casa é ensinar aos jovens como se tornarem independentes: fazer a própria comida, limpar a casa, conseguir um emprego, dar continuidade aos estudos e iniciar tratamento de saúde clínica e mental. Como o tempo é curto, a Casa 1 desenvolveu uma equipe multidisciplinar, que envolve assistente social, psicólogos, advogado, médico e dentistas. É a oportunidade para um novo planejamento de vida.

NECESSIDADE DE RECURSOS

A Casa 1 não é conveniada a nenhum órgão público e Iran acredita que esse formato de financiamento é inviável. Há várias críticas. A principal é o conjunto de regras impostas pelas entidades do governo.

FACHADA DA CASA 1: 20 JOVENS PODEM SER ABRIGADOS SIMULTANEAMENTE

De acordo com o militante, há metas de atendimento, que podem fazer com que o serviço se torne pouco flexível. Há também normas para gestão de conflitos, que envolvem o acionamento da Polícia Militar.

“Essas pessoas vêm de um contexto de fragilidade social que a polícia não pode resolver”, diz Iran.

Quando há furtos dentro da casa, por exemplo, são usadas dinâmicas baseadas em conversas. Geralmente, alguém assume a culpa e repõe o objeto.

Desde sua fundação, a Casa 1 funciona por meio de doações de pessoas físicas e empresas. Há também um financiamento coletivo recorrente que gera cerca de R$ 16 mil por mês.

Em 2017, houve doações de grandes marcas. A primeira aconteceu durante a Parada Gay, quando a Skol dou cerca de R$ 100 mil.  Em junho, a Doritos lançou uma campanha para recolher doações. Foram arrecadados pouco mais de R$ 100 mil. Também houve uma ação com o Festival Milkshake, que rendeu R$ 27 mil, além de outros projetos menores.

As doações permitiram a criação do Galpão Casa 1, em outubro de 2017. Localizado a poucos quarteirões da sede original, o espaço oferece atividades culturais e educativas aos moradores e pessoas da comunidade. É a política da casa aberta. Há aulas de inglês para crianças e adultos, cursinho preparatório para o Enem, teatro, dança e performance.

Atualmente, os custos fixos para manter tudo funcionando giram em torno de R$ 33.500.

CRÍTICAS DENTRO DO MOVIMENTO LGBT

O formato de financiamento fora da iniciativa estatal fez com que a Casa 1 fosse criticada dentro do próprio movimento LGBT.

FESTAS SÃO REALIZADAS PARA POPULARIZAR A CASA

De acordo com Iran, há uma parte da militância, que luta por políticas públicas desde a década de 80, que afirma que aceitar doações de empresas é uma forma de validar políticas neoliberalistas – e correto seria o Estado ser responsável pela assistência social aos LGBTs.

“Entendo a visão deles, mas acredito que todos têm que fazer a sua parte: as empresas, a sociedade civil e o Estado”.

Para Iran, infelizmente, sem as empresas e com o Estado em crise, dificilmente acontecerá projetos relevantes de assistência social. Segundo ele, o atual sistema nunca funcionou. Ele cita, por exemplo, o centro de acolhida Zaki Narchi, localizado no Brás, o qual ele chama de “depósito de corpos de existência dissidente”. O espaço funciona em superlotação e reúne diferentes perfis. Há usuários de álcool e drogas, doentes mentais, mulheres vítimas de violência doméstica, idosos e pessoas oriundas do sistema carcerário.

“Precisamos lutar por uma reforma no sistema de assistência social do país para depois pensar em propostas como a Casa 1″, diz Iran. “O sistema está errado.”

Por outro lado, Iran afirma que as ações com as marcas não resultaram apenas em dinheiro e exposição na mídia. A Pepsico (dona da Doritos), desenvolveu um programa de voluntariado de funcionários dentro da Casa 1. A empresa também contratou dois moradores da casa como jovem aprendiz. Também foi realizado um projeto de sensibilização junto ao RH da empresa. A ação também serve para as empresas promoverem mudanças estruturais no que tange a população LGBT.

“Geralmente, as marcas trabalham com um grupo minorizado com fins de publicidade e marketing, mas há um problema estrutural. Então, também precisam ser agentes de mudanças a longo prazo. Não adianta mandar dinheiro na Parada Gay e voltar só no ano seguinte”

IMAGEM HIGIENIZADA PARA UM PROBLEMA COMPLEXO

Antes mesmo de abrir as portas, a Casa 1 já estava em evidência. Na época da inauguração, ela foi tema de centenas de reportagens em sites e jornais. Originalmente, o projeto começou em 2015, quando Iran passou a oferecer nas redes sociais um sofá-cama de sua casa para jovens em situação de risco.

A ideia cresceu ao longo de 2016, quando a Casa 1 foi pensada para ser um projeto midiático, uma vez que precisaria impactar muita gente para atingir a meta do financiamento coletivo. O lance também tem a ver com a formação de Iran, que é graduado em relações públicas, com passagens por agências de publicidade e comunicação e redações jornalísticas.

“Higienizamos a nossa comunicação visual. Foi uma estratégia bastante funcional. No entanto, no dia a dia, a realidade é dura”

A casa possui uma rotina regrada. Todos são acordados às 9 horas da manhã para realizar as tarefas de limpeza e organização. Aos sábados, acontece o que Iran chama de “Casos de Família”, uma roda de mediação de conflitos em que os moradores lavam a roupa suja. Há também o apelo para que eles participem da programação educativa e cultural.

Embora a convivência da maioria seja saudável, há casos de moradores que não respeitam as regras. “Não é porque você foi expulso de casa que, aos 18 anos, desenvolverá senso de responsabilidade. Nessa idade, eu também era assim”, diz ele.

INGLÊS PARA CRIANÇAS: PESSOAS DA VIZINHANÇA DA CASA 1 TAMBÉM PODEM USUFRUIR DOS SERVIÇOS

Para ele, uma das maiores dificuldades é fazer com que os jovens entendam que as obrigações e deveres fazem parte da vida adulta. A complexidade é ainda maior porque a população atendida possui um histórico de opressão – o que pode fazer com que essas pessoas sejam mais arredias.

No início de dezembro, seis jovens foram desligados da casa. Desses, três estavam hospedados há mais de sete meses – a prorrogação tinha sido permitida devido a fatores de saúde mental. Com os encaminhamentos médicos realizados, houve o desligamento.

“Rolou briga, gritaria, eles afirmaram que estavam sendo expulsos”, diz Iran.

Ele reconhece que essas situações poderão ser constantes. A cada dez moradores, apenas dois aderem a todos os tratamentos e serviços.

Após sair da casa, 10% passam a dormir em centros públicos de acolhida. Cerca de 40% alugam quartos ou vivem em pensões, 30% vão para cortiços e 10% voltam para o espaço familiar. Os 10% restantes têm paradeiro desconhecido. Também já houve cinco casos de jovens que, após um período fora, voltaram a morar na casa.

A VIDA DENTRO DA CASA

Desde outubro, Iran mora num quarto no Galpão Casa 1. Ele diz que não foi a casa que transformou sua vida, mas sim ele que transformou sua vida na casa. Assim, traz para dentro do espaço todos os seus interesses: festas gratuitas, sessões de filmes, apresentações de teatro, debates e exposições.

Vale lembrar que Iran é o autor do tumblr Criança Viada, que funcionou entre 2013 e 2014. O site serviu de base para a série de pinturas homônima da artista Bia Leite, que foi alvo de críticas de conservadores desinformados e motivou o cancelamento da exposição Queermuseu, do Santander Cultural de Porto Alegre, em outubro. Na época, Bia disse que o intuito da obra era dar visibilidade a crianças cuja vivência foge aos padrões heteronormativos.

Agora, Iran tem tentado entender seus espaços de socialização fora da casa. Muitos dos lugares que frequentava já não fazem mais sentido. Algumas amizades também não. É o conflito da proximidade dos 30 anos, quando uma parte dos amigos ainda vive como adolescente e a outra está voltada à criação dos filhos. Assim, entre risadas, ele resume:

“A gente fica ‘não tô nem lá e nem cá’, e agora como faz? Aí fiz uma casa cheia de gay e dou risada”.

IMAGENS: Kalinca Maki (foto de abertura) e divulgação

Quem escreveu

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Italo Rufino

Jornalista pós-graduado em marketing com dez anos de experiência. Trabalhou na revista Exame PME (Editora Abril), nos sites Diário do Comércio e Projeto Draft e na ONG de urbanismo social A Cidade Precisa de Você. Natural de Diadema (RMSP). Pai de uma criança de 10 anos. Fundador da Emerge.

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