Quantos filmes, séries e novelas você lembra de ter assistido com pessoas gordas? Caso a sua memória traga alguns exemplos, em quantos deles têm mais de uma personagem ou uma protagonista com essa característica? E pior, em quantos a única pessoa gorda não interpreta o papel da cômica, “looser”, que está sempre comendo, ou a complexada, solitária, atrapalhada, escrachada, e muitos outros estereótipos extremamente problemáticos?
E as narrativas? Em quantas delas “ser gorda” é a única questão da vida da pessoa? E em quantas vende-se o emagrecimento como sonho ou sucesso, e engordar enquanto decadência, desleixo ou sofrimento?
Se houvesse algum tipo de equivalente ao teste Bechdel* para essa questão, a lista da ausência de filmes com protagonistas gordas seria enorme. Sempre que pergunto para as pessoas se elas já viram algum filme que não reproduza as problemáticas acima mencionadas, a resposta costuma ser um vácuo. Um vazio. Você tem indicações?
Enquanto estamos vendo outras pautas, com muito custo, aos poucos sendo trazidas para as produções audiovisuais, a gordofobia ainda segue naturalizada, em uma cara de pau de quem parece que ainda está nos anos 1990.
A ditadura da magreza é tanta que pessoas com corpo nem gordo nem magro são consideradas gordas nas telas, revistas e passarelas. Afinal, quem não lembra que Renée Zellweger era considerada uma mulher gorda em “O Diário de Bridget Jones”?
Existe um lugar demarcado de não ser apenas uma atriz, mas uma atriz gorda. De não ser uma modelo, mas modelo plus size. É o lugar de negação da neutralidade, da “normalidade”, semelhante ao que vivem pessoas racializadas, trans e com deficiência.
Lista de filmes com protagonistas gordas
Gostaria de trazer uma grande lista de filmes com protagonistas gordas para indicar mas, quando essa lista existe, ainda é pequena. Por isso, segue abaixo uma seleção de obras com pessoas gordas protagonistas vivendo suas jornadas sem que seus corpos sejam a grande questão da história:
Temporada (Netflix)
Filme nacional protagonizado pela maravilhosa Grace Passô. É esse tipo de filme que pessoas acostumadas com o frenesi hollywoodiano diriam que “não acontece nada”, mas revela muitas coisa nas sutilezas do cotidiano de uma mulher negra na periferia de BH.
Bagdad Café (Prime Video)
Um filme sobre o encontro de uma mulher branca europeia com uma mulher negra estadunidense no deserto do Arizona. Aqui tem uma crítica ótima da arquiteta e escritora Joice Berth.
The Forty-Year-Old Version (Netflix)
Filme autobiográfico dirigido, escrito, produzido e atuado por Radha Blank, uma mulher negra de 40 anos que decide investir na carreira de rapper.
Steven Universo
Vou tomar a liberdade de citar um desenho animado. Steven Universo é uma animação fofa sobre uma criança meio humana, meio alien criada por três alienígenas, que apresenta uma vasta diversidade de corpos, gêneros, orientações sexuais e etnias.
Esquadrão Trovão (Netflix) e Ghostbusters – Mais Além (Netflix)
Apesar de estarem no campo da comédia, e um deles ser bem mais ou menos, vale mencionar dois filmes recentes: Esquadrão Trovão (Netflix) e Caça-Fantasmas 3 (Ghostbusters – Mais Além). No primeiro, as protagonistas são duas super-heroínas gordas não jovens. Já Caça-Fantasmas 3 tem a atuação de Melissa McCarthy, que vive a investigadora paranormal Abby Yates.
Além disso, uma referência bem aleatória, mas que me marcou, é o clipe “Jenifer” (assista aqui), do falecido cantor Gabriel Diniz. Seria um clipe de sertanejo de boy como outro qualquer, não fosse o fato de o par romântico do cara padrãozinho ser uma mina gorda.
Normalizar corpos gordos é urgência básica
Apesar de dados de 2019 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicarem que pessoas consideradas acima do peso correspondem a 60,3% da população adulta nacional, em pleno 2022 conhecemos uma infinidade de atores e atrizes magros da indústria audiovisual de massa, mas contamos nos dedos o nome de pessoas atuantes gordas.
Se descartarmos as comediantes, sobra menos ainda. Um único nome me vem à cabeça: Octavia Spencer. E vocês, de quem lembram?
Normalizar corpos gordos é uma urgência tão básica, mas o que vemos quando essa pauta é levantada são discursos de ódio falaciosos que acusam a “romantização da obesidade”.
Já se sabe que Índice de Massa Corporal (IMC) não é o único fator para avaliar a saúde. Não falar sobre isso, não mostrar essas pessoas, é não representar a maior parte da população. A falta de referência nas telas e mídias em geral abala a saúde mental, sobretudo de mulheres, e condiciona a um preterimento afetivo brutal.
Pessoas gordas são associadas como “feias” e não tem espaço para pessoas consideradas feias nas grandes mídias e nos afetos. Assim como ser travesti não é piada, ser gorda não é piada, e também não precisa ser tragédia.
Encerro aqui com uma reflexão de Leticia Rodrigues, a @famosatriz:
“No fundo, as minhas tentativas são de encontrar um lugar no mundo, de me sentir parte de algo maior do que eu e das minhas questões. De encontrar um lugar no qual eu possa me sentir reconhecida ou, ainda, pertencente. É muito cansativo não ser normativo. A nós não há chance de sermos medíocres, fracas, superficiais… tudo tem que ser no extremo porque, mesmo sendo imensas, nos invisibilizam em absolutamente tudo. Empreguem-nos, cuidem-nos e estejam ao nosso lado quando reivindicamos espaços e direitos para existirmos nessa sociedade.”
*Bechdel é um teste criado para avaliar, com uma série de parâmetros, o papel das personagens femininas nos filmes