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A existencialidade das mulheres gordas no pole dance

21/01/2019

Estúdio 'Maravilhosas Corpo de Baile', em São Paulo, mistura dança e pole dance como ferramenta de libertação e empoderamento para mulheres gordas

Coletivo feminista Maravilhosas Corpo de Baile usa atividade popularizada em boates e clubes de striptease como ferramenta de libertação e convívio social para mulheres com diferentes tipos de corpos

Estúdio ‘Maravilhosas Corpo de Baile’, em São Paulo, mistura dança e pole dance como ferramenta de libertação e empoderamento para mulheres gordas

Em 2007, em parte graças às apresentações sensuais da atriz Flávia Alessandra, a novela “Duas Caras” manteve picos de audiência no já decadente horário noturno da Rede Globo. Vivendo a personagem Alzira, mulher que de dia trabalhava como enfermeira e à noite fazia striptease e pole dance numa boate, a atriz mexeu com o imaginário de todo o país – inclusive das mulheres.

Foi justamente essa lembrança da atriz global realizando acrobacias em um mastro de ferro que fez a produtora de moda Daylane Cerqueira, de 34 anos, se interessar pelo pole dance. Dez anos depois daquelas imagens da TV, Day, como é conhecida, buscava uma atividade capaz de resgatá-la do sedentarismo e, ao mesmo, que a ajudasse a emagrecer. No entanto, ela queria algo mais envolvente do que os programas tradicionais de academias.

Com 85 quilos e 1,55 de altura, Day sempre carregou o cruel estigma social dos padrões de aparência que rotulam as gordas como feias, desleixadas e até doentes. É verdade que a obesidade pode aumentar as chances de doenças crônicas não transmissíveis, porém, o sedentarismo de uma pessoa magra possui proporcionalmente os mesmos riscos.

A solução para se movimentar aconteceu quando ela descobriu o workshop Ame Seu Corpo Dançando. O cartaz de divulgação do evento exibia bailarinas gordas. Como poucas vezes na vida, ela se viu representada.

“Aquela aula de dança foi a porta de entrada para o universo do pole dance, o que fez eu me aproximar do meu corpo gordo e enxergar a sua beleza”

O evento era ministrado por Graziela Meyer, a Grazi, que mantém, ao lado de Eloísa Honorato, a Maravilhosas Corpo de Baile.

GORDAS NO POLE DANCE: DAY, DA MARAVILHOSAS CORPO DE BAILE. ESTÁ COM UMA LINGERIE PRETA E CINTA LIGA, MEIAS ATÉ OS JOELHOS E SALTOS. ELA TEM O CABELO CACHEADO E ESTÁ DE PÉ, COM OS BRAÇOS LEVANTADOS ATRÁS DA CABEÇA
DAY, DA MARAVILHOSAS CORPO DE BAILE: DE SEDENTÁRIA A PROFESSORA DE DANÇA SEM PERDER PESO (Foto: Marianna S)

O estúdio, localizado hoje no bairro de Pinheiros, mistura dança e pole dance como ferramenta de libertação e instrumento de empoderamento de mulheres com os mais variados tipos de corpos.

Elas se intitulam um coletivo “artivista” feminista. Daquele dia até hoje, muita coisa mudou na vida de Day, mas nada que tenha a ver com suas curvas e medidas.

Em pouco mais de dois anos, ela passou de aluna para instrutora de pole dance – sem precisar perder peso. Semanalmente, aos sábados, ela ministra aulas no estúdio com um público específico: outras mulheres gordas. A ideia de transformar Day em professora da Maravilhosas Corpo de Baile partiu da própria Graziela, que percebeu na jovem a autoestima e a desenvoltura para executar os movimentos na barra.

Também incomodava Grazi o fato da escola se dizer aberta a todos os corpos, mas não possuir nenhum corpo assumidamente gordo em função de liderança. Ela, que afirma que Day é foda no que faz, comenta:

“As meninas gordas só estão aqui hoje porque veem uma mulher gorda lá na frente fazendo belos movimentos. Por meio da professora, elas descobrem que também podem dançar. Isso traz toda uma luta contra a gordofobia, que é uma de nossas bandeiras”

A aversão à gordura e obesidade faz com que as mulheres gordas sejam agredidas, discriminadas e rejeitadas em diversos momentos, desde o uso do transporte público à busca por emprego. Todo esse ódio, inclusive, fomenta graves transtornos psicológicos nas pessoas.

Mulheres gordas fazendo aula de pole dance. Três delas aparecem com a mão segurando a barra e a perna levantada. Elas usam roupas curtas e justas.
AULA COM FOCO EM MULHERES GORDAS ACONTECE AOS SÁBADOS (Foto: Evelyn Costa)

Projetos como o Maravilhosas vão na contramão dessa corrente irresponsável, com as aulas levando em conta também a necessidade de convívio social. Iniciada no segundo semestre de 2018, a turma de pole dance para mulheres gordas conta atualmente com oito participantes.

São muitas as autoras e autores que descrevem a escolha pelo exercício físico para as mulheres como algo relacionado à autoestima. Grazi e Day contam que veem isso na prática.

É comum as alunas novatas usarem shorts compridos e camisetas largas, por exemplo. Com o passar do tempo e por necessidade – o pole dance exige o contato da pele com a barra para que não ocorra o deslize na hora dos movimentos – as meninas aderem ao top com hot pants (tipo de short curto). É quando acontece mais um passo para nutrir um olhar mais generoso consigo mesmas. “Cada uma delas tem a sua própria história de opressão e rejeição ao corpo e se desprender disso toma um tempo”, diz Day.

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UM CORPO É UM CORPO

Nas últimas décadas do século XX, a desvalorização estética e a medicalização do corpo gordo se intensificaram de tal forma que, na sociedade da aparência, sinônimo de saúde e beleza é ser magra. Acrescente ao cenário o fato de que a dança e seus componentes, como a sensualidade, são muitas vezes negados às mulheres gordas por pura discriminação.

Assim como tantas outras mulheres, a fundadora da Maravilhosas, que é atriz, DJ e performer, também teve uma relação bastante conflituosa com seu corpo. No passado, Graziela chegou a ter 12% de gordura corporal, um percentual de atleta de alto rendimento. Mas ela não se sentia feliz, nem estava satisfeita com seu corpo e com o desempenho que ele podia lhe entregar.

Sua vida mudou quando ela ingressou numa aula de pole dance, na cidade de Florianópolis, onde morava. O ano era 2015 e sua primeira professora era totalmente fora dos padrões estéticos da modalidade. A instrutora ajudou Grazi a se descobrir como uma mulher maravilhosa.

Duas mulheres aparecem juntas, uma agachada com um salto grande lingerie preta e a outra em pé e com um maiô colorido. A que está em pé segura a barra de pole dance.
GRAZI, FUNDADORA DO COLETIVO, E DAY: ARTIVISMO COM RESPEITO À DIVERSIDADE DE CORPOS E MOVIMENTO (Foto: Evelyn Costa)

Neste processo de autoconhecimento, ela percebeu que muitas mulheres buscam exatamente aquilo: um local seguro, onde possam ter um encontro com seus corpos e consigo mesmas.

Assim nascia a Maravilhosas Corpo de Baile. Na escola, Grazi implantou uma metodologia de respeito à diversidade não só dos corpos, mas também de movimentos.

Ela acredita que o corpo é muito mais a função do que a forma. Essa consciência a fez ressignificar o pole dance. Por exemplo, um dos movimentos do pole dance chama Butterfly. No manual da Federação Internacional de Pole Esportes (IPSF) está especificado, com uma figura, como deve ser a boa execução do movimento.

“Só que apenas me interessa na figura saber onde vai mão e onde vai pé na barra para que eu execute o movimento com segurança”, diz Grazi. “De resto, cada corpo compreende o Butterfly como melhor entender”. A execução, portanto, passa longe de uma suposta perfeição e vem recheada de sentimentos únicos que contemplam cada mulher naquele momento.

DA LONA DE CIRCO PARA AS OLIMPÍADAS
Atualmente, é necessário pagar uma mensalidade para participar das aulas das Maravilhosas. O estúdio conta hoje com 150 alunas, com idades entre 7 e 60 anos. Há também a festa Geni, encontros mensais itinerantes exclusivos para mulheres.

Agora, Grazi tem planos para abrir vagas com foco social, sem custos. Utilizar o pole dance como impacto social é extremamente simbólico para as mulheres. Apesar de alguns ligarem sua origem ao Mallakhamb, um tipo de ginástica indiana em que se executa movimentos de equilíbrio, flexibilidade e força num poste vertical de madeira, foi no século 20, no ocidente, com conotação erótica que o pole dance se popularizou em apresentações de circo.

Nesses eventos, além da tenda de espetáculo principal, também costumava haver uma tenda de show erótico. Como essa tenda era muito pequena, os postes que seguravam as lonas ficavam muito perto das dançarinas. Assim, elas começaram a usá-los nas coreografias.

A partir daí a modalidade se expandiu por bares burlescos – e posteriormente boates. Colocadas socialmente de uma forma em que o corpo serve, essencialmente, como objeto de desejo de outros, as strippers tomaram os poles para si, como símbolo de seu movimento e de sua profissão.

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Grazi, mulher com cabelo ruivo cacheado, está de olhos fechados e braços abertos. Ela está na frente de uma mesa de DJ, com um maiô branco, fones de ouvido e flores coladas no busto.
GRAZI DURANTE A FESTA GENI: ENCONTRO EXCLUSIVO PARA MULHERES (Foto: Divulgação)

Hoje, existem diferentes linhas da prática, desde a sensual e artística passando pela fitness e esportiva, sendo esta última mais higienista e sem qualquer conotação sexual.

Graças à campanha da inglesa Katie Coates, que fundou a IPSF, a prática pode alcançar o posto de esporte olímpico nos próximos anos. Grazi tem ressalvas ao movimento da IPSF devido ao seu caráter associado apenas à excelência esportiva, que tenta afastar o pole dance de seu aspecto sensual e dos cenários que o popularizou.

“Você não precisa ser stripper para praticar pole dance, mas você precisa entender e respeitar que essa barra e esses movimentos vieram do trabalho na night dessas manas”, diz ela. “Eu uso minha voz, meu trabalho e minha escola para relembrar essa história, que é uma história feminina muito bonita de resistência e existência”.

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