O Brasil é o terceiro maior produtor de alimentos do mundo (cereais, açúcar, vegetais, frutas, raízes, tubérculos, carnes, etc), produzindo comida equivalente para alimentar 1,6 bilhões de pessoas (segundo o relatório World Food and Agriculture, de 2021). Ainda assim, mais de 20 milhões de pessoas passam por insegurança alimentar no país e quase 60 mil pessoas morrem anualmente em decorrência da alimentação por ultraprocessados — segundo estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), da Universidade de São Paulo (USP), da Fiocruz e da Universidad de Santiago de Chile.
O número de mortos pelos vilões da alimentação supera, inclusive, o de vítimas de homicídio. Apesar de ser conhecido que os ultraprocessados são grandes promotores de doenças crônicas não transmissíveis, como diabetes e hipertensão, o consumo aumenta cada vez mais. No último ano, segundo a USP, houve um aumento de 5,5%, principalmente entre os grupos de baixa renda e escolaridade.
Alimentos orgânicos e de qualidade são a alternativa mais saudável, mas nem sempre a mais acessível. Eles costumam ser mais caros que outros produzidos pela indústria do agronegócio, que geram uma quantidade maior de alimentos — e prejudicam mais o meio ambiente. Além disso, uma dieta “verde” tem conotações negativas por estar mais ligada a um estilo de vida branco e elitizado, acessível a uma pequena parcela da população, mais rica e mais escolarizada.
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ORGANICAMENTE RANGO: SUBVERTER OS PRIVILÉGIOS DA ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL
Uma iniciativa que está possibilitando uma alimentação de qualidade para as pessoas da quebrada é o Organicamente Rango, um restaurante fruto dos movimentos sociais na zona sul de São Paulo, que serve refeições de produtos orgânicos.
O restaurante, criado a partir de outros projetos de desenvolvimento social da agência Solano Trindade, busca melhorar a qualidade de vida dos moradores das periferias pela alimentação saudável e criar uma São Paulo mais conectada, mostrando que a capital paulista é mais do que as regiões nobres como Pinheiros ou Bom Retiro.
Criado por Thiago Vinícius de Paula da Silva e sua mãe, a chef Tia Nice, o Rango provê pratos de qualidade, orgânicos e saudáveis para as comunidades de Campo Limpo, do Capão Redondo, de Embu das Artes, de Taboão da Serra e outros bairros da Zona Sul de São Paulo.
O nível culinário do restaurante colocou a região no mapa gastronômico da metrópole e foi um dos responsáveis por impulsionar São Paulo como a 3º melhor cidade em restaurantes no relatório The World’s Best Cities.
Thiago, que integra a lista dos 50 jovens que estão mudando o futuro da gastronomia, da World’s 50 Best Restaurants, aponta a logística para adquirir os produtos como um dos maiores obstáculos de acesso para a quebrada.
Os altos preços dos vegetais e legumes orgânicos, além da distância que uma pessoa da região precisa percorrer para comprar, exclui parte da população que não tem como pagar, explica. Outra ponto é que há poucas organizações que trabalham para o comércio de orgânicos, principalmente aqueles que trabalham com uma bandeira social. Muitas dessas ONGs não têm fôlego financeiro para continuar e acabam fechando.
Foi buscando contornar esses desafios que, em 2022, o restaurante viabilizou mais de 150 mil marmitas, para cerca de 2 mil famílias dos distritos Vila Sônia, Taboão da Serra, Vila Andrade, Campo Limpo, Capão Redondo e Jardim São Luiz. O que o Organicamente Rango almeja é difundir a alimentação saudável nas quebradas de São Paulo e colocar as periferias no mapa de gastronomia e da cultura da cidade e, assim, melhorar a qualidade de vida dos moradores.
O COMÉRCIO DE ALIMENTOS ORGÂNICOS AINDA É RESTRITO
Luana, 37, é uma publicitária do bairro Bela Vista. No corre de uma quinta-feira, veio de bicicleta ao mercado para comprar uma escova de dente, alguns temperos e legumes. No caixa para pagar os produtos, o vendedor pergunta: ”Preço de contribuição?”, equivale a 35% do valor total. Luana pagou e continuou sua ida para o trabalho. O lugar era o Instituto Feira Livre, no centro de São Paulo.
O preço de contribuição é um valor em que o cliente pode pagar ou não. É usado para cobrir os gastos do local. A ideia é estabelecer uma relação comercial justa entre os atores da cadeia de produção, incluindo quem vai consumir os alimentos.
O Instituto Chão localizado na Vila Madalena, vende os produtos a preço de fornecedor, ou seja, por um valor muito mais em conta do que em supermercados. Outro grande exemplo é o Armazém do Campo, mantido pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no bairro Campos Elíseos. A feira vende produtos de assentamentos da reforma agrária, parceiros da agricultura familiar e produtores de frutas, legumes e verduras orgânicas.
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Este e outros lugares existem para poder facilitar o consumo de alimentos orgânicos e o comércio dos produtores familiares. Iniciativas muito interessantes, mas que ainda estão restritas ao hipercentro da cidade.
Fora da curva, a AAZL (Associação de Agricultores da Zona Leste) serve para dar apoio para agricultores das regiões de Guaianases, Cidade Tiradentes, São Miguel Paulista e São Mateus. A associação presta assistência técnica a hortas urbanas e promove parcerias para comercialização em feiras na zona leste, como a feira orgânica de Itaquera e São Miguel.
Uma das hortas representadas pela AAZL é da ONG Mulheres do Gau, uma associação de agricultura e gastronomia orgânica conduzida por mulheres periféricas na região de São Miguel Paulista. O local tem como objetivo de implementar a sensibilização ambiental e da culinária saudável na região da Zona Leste. Elas promovem eventos, palestras e oficinas sobre agroecologia e conscientização alimentar, trazendo a natureza para um contexto urbano.
COMO COMBATER A DESIGUALDADE ALIMENTAR?
Além da falta de acesso a espaços de compra a preço justo, alguns outros fatores precisam ser considerados para entender o problema. Alimentação saudável é um direito, mas nem sempre uma escolha. A rapidez e a disponibilidade de produtos industrializados, a gratificação de comer uma “besteira”, até pontos mais profundos como as jornadas de trabalho exaustivas que tomam o tempo de pensar e de executar uma dieta saudável, e a terceirização do trabalho doméstico nas parcelas ricas da sociedade.
Assim, a democratização alimentar é um esforço que passa pelo combate a um problema estrutural da sociedade. Na opinião da médica e mestra em saúde Dra. Denise Dornellas, a resolução desse problema começa por políticas públicas.
Em entrevista ao podcast Mano a Mano — no episódio que foi ao ar no final de julho —, ela explicou que as dificuldades da falta de nutrição e saúde estão ligadas a questões culturais e de educação.
Durante o episódio, a médica ressaltou a importância da educação alimentar para a população e como é difícil implementar essas práticas em pessoas adultas. Segundo ela, uma das principais causas é a falta de incentivo e parcerias ao produtor rural.
Na mesma sintonia, a chef de cozinha, ativista e escritora Bela Gil, também entrevistada pelo rapper e apresentador Mano Brown, destacou que uma das soluções seria começar a educação alimentar pelas escolas, ensinando as crianças a escolher o que é bom para elas desde cedo.
Em 2015, o atual ministro da Fazenda Fernando Haddad tentou fazer isso na cidade de São Paulo. Enquanto prefeito, ele incluiu alimentos orgânicos na merenda escolar das redes públicas e ainda garantiu que eles fossem provenientes da agricultura familiar. Essa política, infelizmente, não existe mais.
No cenário brasileiro, alimentos tradicionais, como feijão, arroz e a mandioca, perderam espaço para a soja, o milho, a cana e a carne, produtos destinados à exportação e que, na monocultura, degradam o meio ambiente. Em março de 2023, o Ministério do Desenvolvimento Agrário anunciou um plano para aumentar a produção de alimentos sem agrotóxicos com o objetivo de reverter essa falta de diversidade do que é produzido no país.
O caminho ainda é longo.
Fotos: Rafael Felix
Texto: Guilherme Schanner
Edição: Teresa Cristina Silva