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A naturalidade da cineasta Julia Katharine

04/04/2019

A atriz e roteirista fez sua estreia na direção em Tea For Two, o primeiro filme dirigido por uma pessoa trans a entrar no circuito comercial de cinema

Quando tinha 17 anos, Julia Katharine conseguiu seu primeiro emprego. A função: caixa de uma de videolocadora. Foi lá, debruçada sobre uma mesa lendo revistas de cinema, que ela descobriu filmes de Ingmar Bergman, Rainer Werner Fassbinder e Woody Allen. Algumas vezes, chegou a ”furtar” algumas fitas.

“Levava para casa para assistir com a minha mãe”, relembra ela. “Ninguém alugava mesmo”.

Mais de 20 anos depois, a agora atriz, diretora e roteirista subiu ao palco para receber o Prêmio Helena Ignez, dedicado ao trabalho de mulheres no cinema. A entrega aconteceu na cerimônia de encerramento da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes, em janeiro.

O feito de Julia a fez pioneira. Ela foi a primeira mulher trans a ser premiada na história da tradicional mostra que acontece anualmente na cidade mineira.

Julia conquistou o prêmio por ter protagonizado e co-roteirizado, junto do diretor Gustavo Vinagre, o longa Lembro Mais dos Corvos, exibido no festival. O filme estreou em salas de todo Brasil em fevereiro. E, agora, tem sido exibido em outros festivais pelo país.

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JULIA DURANTE A PREMIAÇÃO NA 22ª MOSTRA DE CINEMA DE TIRADENTES

A estrutura do filme é bem enxuta. Somente uma câmera fixa no tripé e, à frente da lente, Julia sentada no chão de seu apartamento.

Tudo começa com a pergunta da atriz para o diretor: “o que eu posso contar sobre mim?”. Ele respondeu: “Tudo”. Então, se inicia um diálogo de quase 90 minutos em que Julia, boa contadora de história, como ela mesma afirma, vara a madrugada narrando fatos de sua vida, da infância até o presente.

Tudo é falado com muita naturalidade – o que faz o espectador acreditar, muitas vezes, que o relato é totalmente verídico. A ficha cai aos poucos, quando há cenas que deixam claro que há partes combinadas. A linguagem acaba apresentando uma linha tênue entre realidade e ficção.

Julia lembra, por exemplo, a relação com seu tio-avô, que durou dos oito aos 13 anos – somente na fase adulta ela entendeu que havia sido vítima de um pedófilo.

Ela também relata a vivência no Japão, país para o qual imigrou para trabalhar na indústria. Foi lá que ela comprou seu primeiro perfume Chanel Nº 5, inspirada pela atriz Marylin Monroe. Como guardava o perfume para ocasiões especiais, o frasco acabou perdendo a validade ainda quase cheio.

Da mesma forma, a atriz fala de traumas de infância causados por brigas na escola, a relação com os pais, a desistência de “bombação” com silicone industrial, a hormonização bancada por um ex-namorado.

Sem pudores, mas sem ser escrachada ou caricata, ela conta que gostava de dirigir filmes pornôs caseiros, fala das noitadas na icônica casa noturna Massivo durante os anos 90 e revela o flerte sutil com o guarda da rua em que mora, no centro de São Paulo.

JULIA E GILDA NOMACCE EM TEA FOR TWO: PRIMEIRO FILME DIRIGIDO POR UMA PESSOA TRANS A ESTREAR NO CIRCUITO COMERCIAL DE CINEMA

Embora o filme exponha dificuldades, aceitação e resistência de uma pessoa trans, o fio condutor é uma história humana que não fica presa à identidade de gênero.

O filme é uma narrativa sobre autoconhecimento, relações interpessoais, amores, ilusões, ironia e gozação.

Por várias vezes, Julia arranca risadas da plateia, como quando conta, fazendo careta, que ficou meses com metade do rosto paralisada devido a um AVC.

SER (E REPRESENTAR) QUEM VOCÊ DESEJAR

Junto ao lançamento de Lembro Mais dos Corvos, chegou ao cinema o curta-metragem Tea For Two, em que Julia é responsável pela direção, roteiro e também atua.

O filme aborda a vida de Silvia, interpretada por Gilda Nomacce, uma cineasta em crise com sua vida. Numa mesma noite, ela é surpreendida pela visita da ex-esposa (Amanda Lyra) e conhece sua misteriosa e fascinante vizinha, a personagem de Julia.

Tea For Two foi o primeiro filme dirigido por uma mulher trans a estrear no circuito comercial do Brasil. O curta foi exibido, por exemplo, na Sessão Vitrine Filmes, do Espaço Itaú de Cinema, no Shopping Frei Caneca.

Um dos pontos altos da obra é, novamente, a naturalidade de Julia de conduzir histórias.

A obra é sobre encontros – daqueles que se dão de forma despretensiosa, mas nos conduz a novas (e incríveis) possibilidades de vivências. Embora o tema trans esteja presente, não é o foco da narrativa.

Além disso, a personagem transexual é apresentada sem ser objetificada ou exotificada, fugindo de estereótipos preconceituosos.

O filme é uma contribuição para dissolver a segregação entre as pessoas, seja no cinema ou em qualquer outro ambiente que uma trans escolha frequentar.

Quando Julia retrata uma personagem transexual dentro de um contexto de simplicidade e naturalidade, esse mesmo espaço é destinado a todas as outras. Ainda, ela estimula que elas possam ser representadas, uma vez que a arte também é política.

“O cinema – e a sociedade em geral – tem o mau costume de colocar pessoas trans dentro de caixinhas. Uma atriz trans é conhecida por ser trans. Eu, como cineasta, quero escrever sobre histórias de amor, independentemente de identidade de gênero ou sexualidade das personagens”

REFERÊNCIA PARA SUAS SIMILARES

O interesse de Julia por cinema vem da infância: ainda pequena, sonhava em ser atriz. Na época, gostava de Meg Ryan e outras atrizes que via em filmes da Sessão da Tarde.

Na adolescência, passou a ler livros e revistas de cinema. No entanto, nunca via pessoas trans como diretoras, atrizes ou produtoras. A falta de representatividade fomentava a ideia de que ser trans seria um empecilho na carreira.

CENA DE LEMBRO MAIS DOS CORVOS: RELATO PESSOAL QUE FUNDE FICÇÃO E REALIDADE

Ela recorda apenas duas referências: Roberta Close, no filme O Escorpião Escarlate, e Rogéria, em A Maldição do Sanpaku.

Somente em 2005 Julia iniciou sua carreira como atriz. Ela foi convidada para fazer figuração no filme O Crime Delicado, de Beto Brant. De improviso, acabou criando uma fala que entrou na versão final do longa.

Naquela época, já pensava em começar a carreira interpretando e, conforme acumulasse experiência, escreveria roteiros e assinaria direções – numa atuação similar a atrizes dos anos 90, como Jodie Foster. No entanto, ela deixou os planos de lado ao ir morar no Japão devido a questões familiares.

A ideia de voltar a atuar só renasceu quando retornou ao Brasil, já em 2013. Ela, que nunca fez faculdade ou curso técnico de cinema, reencontrou o amigo Gustavo, um de seus maiores incentivadores. Das conversas com ele, nasceria o roteiro de Lembro Mais dos Corvos.

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A partir de 2017, Julia começou a escrever Tea For Two e o projeto saiu do papel graças a um edital do SPCine voltado à diversidade.

No Brasil, os editais públicos têm extrema importância na viabilidade de projetos culturais. O auxílio ajuda a democratizar a produção cinematográfica – uma vez que o círculo costuma ser capitaneado por homens brancos e heterossexuais.

CINEASTA ESTÁ FINALIZANDO O ROTEIRO DE SEU PRIMEIRO LONGA, FAMÍLIA VALENTE

Assim como acontece em outras esferas de produção cultural, aqueles que possuem privilégios sociais conseguem ter apoio para criar e financiar seus projetos.

Essas pessoas também não dependem, necessariamente, do retorno financeiro da obra para tirar seu sustento (sabe, pagar boleto mesmo).

No entanto, parece que o cenário tende a piorar: em 2019, grandes empresas estatais estão revendo o orçamento de patrocínio em cultura.

Há poucos meses, a Petrobras suspendeu o patrocínio à Sessão Vitrine, que exibia filmes semanalmente com ingressos pela metade do preço, e do Cinearte, cinema de rua em São Paulo.

A empresa também não renovou os contratos com a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que venceu em fevereiro.

Também meses atrás, a Caixa cancelou o patrocínio ao Cine Belas Artes, tradicional cinema paulistano, que foi reaberto em 2014.

Ainda, ano passado, o BNDES retirou o investimento de R$ 400 milhões que destinava ao Festival de Cinema de Gramado.

De acordo com Julia, as verbas dos editais devem minguar ainda mais nos próximos anos devido ao desprezo do atual governo federal pela cultura. Mas ela não arredará o pé.

“É necessário pensar em resistência frente ao retrocesso e desmanche da cultura no Brasil. Nós, mulheres trans, chegamos em um ponto muito interessante de nos inserirmos no mercado de trabalho, naturalizando nossos corpos nesta sociedade heteronormativa”

Agora, Julia está na busca pela criação de redes de apoio e acolhimento para desenvolver novas formas de fazer cinema. A ideia é firmar parcerias com outros artistas e realizar produções de baixo custo.

Ela está finalizando o roteiro de seu primeiro longa, chamado Família Valente. A história aborda a situação social do Brasil, num viés de uma família de atrizes. Novamente, o protagonismo será feminino, com Gilda Nomacce como atriz principal e produtora.

E, assim, Julia mantém sua militância em existir fazendo cinema.

IMAGENS: Leo Lara/Universo Produção e Divulgação

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Redação Emerge Mag

Revista digital de cultura, direitos humanos e economia criativa interseccional e estúdio criativo de Diversidade, Equidade, Inclusão e Impacto Social.

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