Reportagem de Aline Spantig, trainee da DW em intercâmbio profissional na Emerge Mag.
Vestida para festa, com sangue escorrendo de sua cabeça e presa entre pedras na beira do mar, Luciana Lage sabia que tinha um problema. “Eu chorava pedindo a Deus para não morrer”, lembra ela. Resgatada por paramédicos, a jovem por pouco não virou saudade.
Momentos antes, ela estava numa explosão de excessos. Num final de semana, foram três aniversários, três festas e três chances de beber até cair. Na última, enquanto procurava um banheiro, Luciana se desequilibrou e foi ao chão, batendo fortemente a cabeça. Aos 28 anos, ela se deu conta que estava próxima do fundo do poço. Mais tarde, ela chamaria o acidente de milagre, e algo necessário para despertá-la.
“Ao sofrer o acidente, percebi que a minha relação com o álcool havia se tornado um tsunami de autodestruição.”
Luciana Lage, em abstinência há dez anos.
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A SOBRIEDADE É MAIS DIFÍCIL PARA AS MULHERES
De Niterói, no Rio de Janeiro, Luciana não é um caso único. Em média, uma a cada cinco mulheres de sua faixa etária está abusando do álcool, segundo o Ministério da Saúde. O percentual de mulheres entre 25 e 34 anos que consomem quatro ou mais doses em uma mesma ocasião dobrou na última década. Embora o maior pico tenha sido registrado na pandemia, o número diminuiu pouco desde então.
E há mais um problema. De acordo com Kelly Hino, psicóloga do projeto Gente Precisa de Gente, voltado para a saúde mental de mulheres em São Paulo, a dependência é especialmente difícil de superar no universo delas.
“Para as mulheres, a sobriedade vai muito além do vício. Também é uma luta contra preconceitos machistas.”
Kelly Hino, psicóloga.
Por exemplo, enquanto os homens recebem mais apoio da família, muitas mulheres enfrentam a recuperação sozinhas. Outro fator que pesa é que a rotina da casa e da família já tende a consumir boa parte da energia delas. Uma vez que o tratamento inclui uma série de cuidados com estímulos, interações e ambientes sociais, segui-lo da melhor forma se torna muito mais difícil.
“Elas se sentem sobrecarregadas, cheias de culpa e sozinhas”, diz Kelly.
Essa mistura de sentimentos Luciana conhece bem. “A cena de uma mulher bêbada é vista como feia”, diz. Ela compara: uma mulher embriagada na rua, tropeçando e gritando é julgada como fraca e perdida. Por outro lado, um homem na mesma situação pode ser visto como alguém que exagerou um pouco, mas logo está bem novamente.
O preconceito não para por aí. Muitos tratamentos seguem uma lógica criada por e para homens. O resultado? Faltam médicos e terapeutas que entendam a perspectiva feminina. Algumas clínicas proíbem até produtos de cuidados pessoais, que podem ser essenciais para mulheres, como tinturas de cabelo ou maquiagem.
É importante lembrar que rituais de autoestima podem ajudar no tratamento de consumo de álcool por mulheres. É o lance de se olhar no espelho e pensar: ‘eu posso, eu consigo”.
Nos piores casos, as mulheres correm perigo até mesmo dentro dos grupos de ajuda. É comum cantadas e avanços sexuais nos encontros. Outro risco se dá quando homens tentam usar da vulnerabilidade para firmar relacionamentos abusivos com as mulheres alcoolistas.
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RENASCIMENTO EM ABORDAGENS PARA A RECUPERAÇÃO
Para combater o machismo e frear o consumo abusivo de álcool por mulheres, nasceu a Associação Alcoolismo Feminino. O grande diferencial da organização é ter foco em mulheres com filhos, negras, LGBTQIA+ e aquelas em situações de violência, física ou psicológica.
E como isso acontece? Em várias frentes, explica Gabriela Pomp, representante da associação. Por meio de psicólogas mulheres, elas superam dependências emocionais de homens tóxicos. Com apoio de educadoras financeiras, conquistam autonomia e poder econômico. Via encontros online, conseguem ter mais assiduidade e menos culpa por não deixar os filhos sozinhos.
“Quero que as mulheres saibam que é possível reescrever a própria história com uma abordagem feminina.”
Gabriela Pomp, da Associação Alcoolismo Feminino.
Fundada em 2020, em Belo Horizonte, a associação tem filiais no Rio de Janeiro e em Niterói. Devido boa parte das atividades serem online, mulheres de todo o país podem participar (saiba como se associar aqui). A associação também tem uma biblioteca e promove eventos para compartilhar histórias inspiradoras.
Gabriela, em abstinência há quase cinco anos, celebra o fato de que mais estudos sobre consumo de álcool por mulheres estão sendo publicados. Um deles, feito por cientistas da Universidade de Minnesota, aponta que o apoio social, como o dos pais, é especialmente importante para evitar que meninas abusem do álcool, mais do que em meninos inclusive.
Outro estudo mostra que as mulheres tendem a beber mais para lidar com o estresse e emoções negativas, enquanto os homens costumam beber para se sentir mais estimulados e melhorar o humor.
“Há muita esperança. Desde a pandemia, mais mulheres estão falando sobre saúde mental e rompendo o ciclo de ansiedade que pode levar ao álcool.”
Gabriela Pomp, da Associação Alcoolismo Feminino.
As boas notícias não param por aí. Em comparação com a Geração Y, os jovens nascidos entre 1995 e 2010 estão bebendo cada vez menos, e assumem a busca por uma vida mais saudável. Em outubro passado, aconteceu em São Paulo o primeiro festival sóbrio de música eletrônica. Na Escócia, jovens dançam em festas sóbrias que começam com sessões de meditação. Já nos Estados Unidos, há um coletivo de mulheres abstêmias que organizam caminhadas na natureza.
Se antes a vida com álcool era ladeira abaixo, agora elas escalam montanhas juntas — sororidade em sua melhor forma.
A UMA VIDA EQUILIBRADA
Por fim, dez anos depois do acidente, Luciana se mantém sóbria. Com a ajuda de um terapeuta, superou os períodos mais difíceis, como crises de ansiedade e pensamentos suicidas.
O tratamento foi essencial para compreender e ressignificar os gatilhos que a levavam a beber, entre eles conflitos familiares e crises na vida amorosa. “Algumas vezes, pensei em chutar o balde e buscar a conhecida válvula de escape. Mas o álcool era um amigo falso, uma relação problemática que eu finalmente estava encerrando.”
Na busca por tornar a mente e o corpo mais límpidos, ela se conectou à espiritualidade, estudos e natureza. Começou a praticar canoagem havaiana e corrida, viajou para a África do Sul e concluiu o ensino superior em uma universidade pública no Brasil. Recentemente, ela comemorou o primeiro aniversário de seu filho.
“Perdi muitas oportunidades no passado”, afirma. “Agora, cada passo que dou é uma construção de sonhos, numa vida em que finalmente me reconheço.”