O ácido acetilsalicílico, mais conhecido como aspirina ou AAS, foi lançado em 1899 pela Bayer. Na época, a farmacêutica alemã enviou folders para as principais cidades da Europa e Américas divulgando a descoberta. O que pouca gente sabe é que o analgésico mais conhecido do mundo tem origem na casca do salgueiro-branco, planta medicinal usada há milhares de anos por povos tradicionais.
Na real, estima-se que 40% dos medicamentos alopáticos (antibióticos, anti-inflamatórios, antialérgicos, antiácidos…) são derivados de plantas. Ou seja, têm origem em saberes ancestrais.
O chá de camomila, que acalma até os mais estressados dos paulistanos, contém apigenina. O composto natural age nos mesmos receptores cerebrais que alguns ansiolíticos. Há décadas, nossas sagazes avós já praticavam neurofarmacologia.
LEIA TAMBÉM: Afrocamponesa. Deixei a metrópole para viver na Chapada dos Veadeiros
Nesse sentido, nós, brasileiros, somos privilegiados. O país possui a maior biodiversidade do mundo, abrigando cerca de 20% do total de espécies de plantas. Detalhe: esse imenso patrimônio genético já está escasso nos países do norte global.
Das ervas cultivadas nos quintais urbanos até aquelas que ainda não tiveram batismo em latim da Amazônia profunda, há sabedoria destilada por gerações de observadores atentos à natureza. Costumo chamar esses antepassados de guardiões ancestrais de tesouros botânicos. São pessoas afro-indígenas peças-chave na atual redescoberta da farmácia natural.
DOS CORREDORES DOS HOSPITAIS AOS TERREIROS
Por dois anos, estive imersa em dois mundos aparentemente distantes. No primeiro, corredores assépticos de hospitais de Brasília, onde me dedicava aos cuidados de minha mãe, em recuperação de AVC. O segundo era em terreiros de candomblé, junto a mães e pais de santos que compartilham saberes junto aos tambores.
Vivia dualidades. Prescrições médicas minuciosamente calculadas e receitas intuitivas das raizeiras do cerrado. Laboratórios de última geração e consultas iluminadas por fogueira e velas com pajés.
E sabe o que é mais fascinante? Estamos apenas nos primeiros passos dessa cura que nasce do encontro entre mundos.
Enquanto mulher preta, africana nascida na diáspora, é inevitável abordar a saúde sob a cosmopercepção do Continente Mãe. Sigo uma compreensão holística que relaciona o corpo, a mente e o ambiente social. Aspectos espirituais e sociais são fundamentais no entendimento de saudabilidade. Nossa saúde está intimamente ligada às nossas relações e práticas culturais.
VEJA TAMBÉM: Hortas comunitárias no combate às mudanças climáticas
PERTO DAS PLANTAS MEDICINAIS, LONGE DA SAÚDE MENTAL
Nos últimos anos, os laboratórios farmacêuticos têm voltado cada vez mais os seus microscópios para a ayahuasca, cogumelos sagrados e cannabis.
Por sua vez, a ibogaína, substância extraída da raiz da Iboga, planta originária da África Central, tem demonstrado bons resultados na redução de síndrome de abstinência e intensidade de uso de diversas drogas, do álcool ao crack.
Pesquisada no Brasil há no mínimo 20 anos como redutora de danos, a ibogaína não tem avaliação e aprovação da Anvisa. Dessa forma, a sua comercialização é proibida por aqui. A importação só é permitida sob rigorosa prescrição médica individual, o que torna o processo burocrático e custoso.
As periferias são excluídas de tratamentos integrados com plantas como a iboga, que poderiam aliviar males que nos afetam. Por aqui, a nossa saúde não está em boas condições:
- 63% da população negra sofre de algum transtorno mental, comparado a 41% da população branca;
- Tentativas de suicídio entre jovens negros são 39% superiores às de jovens brancos;
- Em algumas comunidades indígenas da Amazônia, a taxa de suicídio é até 6 vezes maior do que a média nacional;
- Depressão acomete 23,5% da população negra, contra 15,2% da população branca;
- 55% dos homens negros têm hipertensão; taxa é de 35% entre homens brancos;
- 35% dos indígenas yanomamis do Alto Rio Mucajaí, em Roraima, apresentam reduzido desempenho cognitivo (memória, aprendizado, linguagem e concentração) devido contaminação por mercúrio de garimpos ilegais.
Nesse cenário de racismo estrutural, invisibilização e epistemicídio, surge a inquietação: se somos nós que fornecemos boa parte dos conhecimentos sobre plantas medicinais e de poder, é urgente que sejamos beneficiados pelo impacto que elas proporcionam.
Nos levantemos para uma revolução profunda: a democratização dos saberes ancestrais que foram guardados em terreiros, aldeias e quilombos. Quanto mais esses saberes circularem pelas quebradas e vilas de chão de terra, mais próximos estaremos da nossa cura.
Imagem de abertura: arquivo pessoal.