Torcidas LGBTQIA+ exigem respeito no futebol

15/09/2025

Organizações sociais ocupam as arquibancadas para transformar o futebol em um espaço mais inclusivo e acolhedor para todas as pessoas.

Uma das premissas de torcer por um time de futebol é a paixão inabalável. É o apoio incondicional e o orgulho de pertencer a um grupo de canta e vibra no mesmo ritmo, nos bons e nos maus momentos.

Acontece que as arquibancadas refletem as tensões da sociedade. Enquanto a paixão pelo esporte segue viva, torcedores LGBTQIAP+ enfrentam desafios dentro de um ambiente historicamente hostil à diversidade.

De acordo com o Anuário LGBTQIAP+ no Futebol 2024, casos de LGBTfobia cresceram 191,4%, entre 2020 e 2023. Desses, 52,5% aconteceram dentro dos estádios e 52,5% foram direcionados à torcida.

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Para torcedoras como Giulia Leite, 18 anos, corintiana e estudante de relações públicas, esses números se traduzem em experiências concretas. Criada em uma família majoritariamente masculina, Giulia aprendeu a amar o futebol, mas também a temer suas arquibancadas.

“A condição de mulher e lésbica no estádio é de desaprovação. Recebemos olhares e ouvimos comentários machistas e homofóbicos. Nosso direito de existir ainda é questionado.”

Giulia Leite, torcedora do Corinthians.
TORCEDORA GIULIA: ser mulher e lésbica ainda é motivo de desaprovação.

Diante desse cenário, coletivos de torcedores LGBTQIA+ que ocupam as arquibancadas para transformar o futebol em um espaço mais inclusivo e acolhedor para todas as pessoas.

Fundado em 2019, o Canarinhos LGBTQ+ reúne mais de uma dezena de torcidas organizadas com foco em diversidade sexual e de gênero. Participam a LGBTricolor (Esporte Clube Bahia), Marias de Minas (Cruzeiro), Palmeiras Livre (Palmeiras), Furacão LGBTQ (Atlético Mineiro) e Papão Livre (Paysandu), entre outras.

Entre as frentes de atuação do coletivo estão monitorar e denunciar práticas discriminatórias, compilar dados e propor soluções para evitar discriminação. O esforço envolve parcerias e diálogos com clubes, torcidas, federações, justiças desportivas, marcas e outros elos do esporte.

Em 2021, por exemplo, o coletivo comunicou ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) cantos homofóbicos emitidos pela torcida do Flamengo, no jogo contra o Grêmio pelas quartas de final da Copa do Brasil.

O clube carioca foi enquadrado no Artigo 243-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva: praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito. Duas semanas depois, o Flamengo foi condenado a pagar uma multa de R$ 50 mil.

Para Onã Rudá, 35 anos, presidente da Canarinhos LGBTQ+, a condenação foi um marco. Embora o artigo existisse desde 2009, e cânticos homofóbicos fossem comuns, nunca um clube havia recebido punição, que demonstrava uma tolerância generalizada a LGBTfobia.

“Ações afirmativas e punições contra os clubes por motivos de homofobia demonstram que as instituições que regulam o futebol precisam ter comprometimento com causa.”

Onã Rudá, fundador do Canarinhos LGBTQ+.

De acordo com Onã o primeiro clube que criou ações afirmativas públicas e levantou bandeira LGBTQIA+ foi o Esporte Clube Bahia, ainda em 2016. Já em 2023, o clube elegeu para sua presidência Emerson Ferretti. Ex-jogador com passagens pelo Flamengo, Bahia e Vitória, Emerson se tornou o primeiro presidente de um clube da Série A do Campeonato Brasileiro assumidamente gay.

LGBTRICOLOR: Esporte Clube Bahia foi pioneiro em ações afirmativas LGBTQIA+ no futebol. Desde 2023, tem como presidente um homem gay (foto: Laura Samily/Mídia NINJA).

MENOS AGRESSIVIDADE, MAIS AMOR

Fundado em 2019, o Porco-Íris é um coletivo de torcedores LGBTQIA+ do Palmeiras. Além de um local de acolhimento e resenhas esportivas, objetivo é exigir respeito e reconhecimento para pessoas da comunidade, tanto dentro quanto fora dos estádios.

A motivação para criação do coletivo se deu quando a diretoria palmeirense e a CBF convidaram Jair Bolsonaro para entregar taça do Campeonato Brasileiro ao time, no Allianz Parque. Na data, Bolsonaro já havia sido eleito presidente, mas ainda não tinha sido empossado.

“Num momento tão importante para o clube, muitos torcedores LGBTQIAP+ se sentiram desrespeitados com a presença de uma pessoa publicamente homofóbica”. Lucas Barsalini, administrador do Porco-Íris.

Apesar da presença ativa nas redes e de alguns integrantes nas arquibancadas, o Porco-Íris não costuma levar bandeira ao estádio, inclusive por receio de agressões. O coletivo já tentou contato com a diretoria do clube para propor ações de diversidade e inclusão, mas foi ignorado.

“O máximo que o clube já fez foi uma postagem sobre o Dia do Orgulho LGBTQIA+ nas redes sociais”, diz Lucas, 31 anos. “Mas foi uma ação muito superficial”.

Lucas explica que é mais comum o coletivo se reunir em jogos da equipe feminina. “O público é mais empático e o ambiente mais receptivo”, diz.

Nesses casos, um detalhe faz toda a diferença: há menor presença de torcedores agressivos. Machista, esse tipo de torcedor costumar dizer que futebol feminino não tem qualidade, daí não vai aos jogos das mulheres.

A estudante Ellen Oderdenge, 20 anos, também palmeirense, concorda. No entanto, ela faz uma ressalva:

“A própria baixa visibilidade do futebol feminino, em comparação com o masculino, é reflexo do preconceito, ainda mais porque muitas jogadoras são lésbicas e bissexuais declaradas.”

Ellen Oderdenge, torcedora do Palmeiras.

Embora considere o futebol feminino muito mais acolhedor, a jovem, que costuma acompanhar amigos LGBTQIA+ nas partidas, lembra de mais um episódio recente de machismo no meio.

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Em maio, Stella Terra, do Red Bull Bragantino acusou o árbitro Juliano José Alves Rodrigues de falas machistas. De acordo com a jogadora, durante uma partida contra o São Paulo, pelo Campeonato Paulista, o árbitro disse “na hora certa, vou te pegar”. A fala foi confirmada por outras jogadoras, inclusive da equipe adversária.

MULHERES NO FUTEBOL: Ellen (a última à direita) é atleta amadora e frequenta estádios.

Stella afirmou ainda ter sido ignorada após seguir o protocolo da Federação Paulista de Futebol, que determina a imediata sinalização com gesto de “braços cruzados acima da cabeça” em situações de preconceito.

Coletivos de torcedores LGBTQIA+ nas arquibancadas não é só um gesto simbólico, é um chamado à mudança. Nasce da ausência de políticas efetivas de inclusão por parte dos clubes e das instituições esportivas. Ou seja, é necessário que dirigentes e demais agentes se comprometam de fato com a diversidade.

O futebol é uma paixão coletiva, e só será verdadeiramente grande quando for de todos.

FOTO DE ABERTURA: Laura Samily/Mídia NINJA.

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Revista digital de cultura, direitos humanos e economia criativa interseccional e consultoria de diversidade e impacto social (ESG).

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