*Com reportagem de Matheus Santino.
Fundado em 2022, o Grupo Okán é um coletivo de audiovisual que democratiza o acesso à produção cinematográfica nos bairros Jaraguá e Perus, periferias da zona norte de São Paulo. Para além de captação de imagens e roteiros, o coletivo usa o cinema para transformar perspectivas e empoderar realidades de grupos subrepresentados.
As três últimas produções exemplificam bem a missão. Frames de Liberdade foi um projeto de formação em cinema para pessoas de periferias e egressas do sistema prisional. Sentença Materna é um documentário sobre mulheres que dão à luz sob custódia judicial. Já Rosa é um curta-metragem de ficção sobre maternidade no cárcere.
Realizados entre 2024 e 2025, os três projetos contaram com recursos do programa Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), iniciativa da prefeitura de São Paulo para promover a inclusão cultural, a economia criativa local e o fazer artístico na cidade.
De acordo com Breno Andreata, 26 anos, cofundador do coletivo ao lado de Bárbara Lessa, 37, a falta de recursos é o principal desafio do coletivo. Os integrantes recebem ajuda de custo mensal de menos de meio salário mínimo e têm duplas jornadas para gerar renda, incluindo empregos informais.
“Nós temos a criatividade, o conhecimento e a vontade. Mas os projetos dependem de dinheiro para sair do papel. Fazemos malabarismos para trabalhar com cultura na periferia.”
Breno Andreata, cineasta e cofundador do Grupo Okán.
LEIA MAIS: Educação afetiva leva periferia à universidade.
COMO O PODER PÚBLICO FINANCIA A CULTURA
Hoje, os dois principais formatos de acesso a recursos financeiros públicos que coletivos paulistanos como o Grupo Okán têm à disposição são os incentivos diretos e os indiretos.
O primeiro é aquele que vem do próprio orçamento das secretarias de cultura municipal e estadual. Por exemplo, em 2025, a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo reservou R$ 318,8 milhões para 70 editais voltados ao teatro, dança, música, patrimônio cultural e literatura, entre outros fazeres culturais. O Programa VAI é um desses editais.
Na esfera estadual, é exemplo de investimento direto o Proac Editais, que este ano conta com 10 editais com orçamento total de quase R$ 90 milhões. Os recursos são provenientes tanto do orçamento estadual quanto da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), sendo esta última uma iniciativa do Governo Federal de repasse de recursos para estados e municípios.


Já os incentivos indiretos são aqueles em que o governo permite que pessoas físicas e jurídicas destinem parte dos impostos que deveriam pagar para projetos culturais aprovados pelas secretarias de cultura e ministério da cultura. Em troca, o doador receber deduções fiscais — desconto nos imposto.
A nível federal, o principal incentivo indireto é o Programa Nacional de Apoio à Cultura, popularmente conhecido como Lei Rouanet. Nessa modalidade, empresas e cidadãos apoiam atividades culturais e tem descontos no Imposto de Renda (IR). De acordo com a Lei Orçamentária Anual 2025, a renúncia fiscal via Lei Rouanet poderá chegar a R$ 2,9 bilhões.
O equivalente à Lei Rouanet na cidade de São Paulo é o Programa Municipal de Apoio a Projetos Culturais (Promac). Com valor de renúncia fiscal de R$ 30,83 milhões em 2025, pessoas físicas e jurídicas que apoiam o Promac tem os valores abatidos no Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS) e no Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU).
Já o principal programa de incentivo indireto estadual é o ProAC ICMS. Em 2024, o programa teve orçamento de R$ 100 milhões, provenientes de descontos no Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
VEJA TAMBÉM: As drag queens que minam o conservadorismo na periferia.
DESIGUALDADE NA DISTRIBUIÇÃO DE RECURSOS
Para quem não está acostumado com as dinâmicas da economia criativa, ler tantas cifras milionárias pode dar a impressão de que o segmento é um oásis de riqueza. Mas não é o caso. De acordo com o Mapeamento da Indústria Criativa 2025, realizado pela Firjan, o mercado criativo paulista emprega 517 mil pessoas, com destaque para a capital, que concentra 53% dos postos de trabalho. Ou seja, há muitos trabalhadores na disputa pelos recursos.
Para profissionais da periferia, há mais um problema: os recursos não chegam até as margens da cidade. Lançada em julho, a pesquisa Lei Rouanet e a Periferia realizou uma análise inédita sobre a distribuição dos recursos da Lei Rouanet na cidade de São Paulo entre 2014 e 2023.
Combinando bases de dados públicas, como da Receita Federal, o estudo aplicou recortes territoriais para entender a lógica de concentração e exclusão no acesso aos incentivos.
Os dados escancaram uma realidade desigual: 88,8% dos recursos foram captados por regiões centrais da cidade, que concentram apenas 17% da população. O distrito líder em captação é Pinheiros, com 1.382 projetos aprovados, que representam 15% de todo o recurso. Na sequência, aparecem Consolação, Jardim Paulista, República e Vila Mariana, todos distritos de classe média ou alta e localizados no centro ou centro expandido.
Enquanto isso, as periferias, que concentram mais da metade dos paulistanos, ficaram com apenas 1,38% dos recursos. Dos oito distritos que não tiveram projetos aprovados, todos são periféricos: Marsilac e Parelheiros (zona sul), Iguatemi, Itaim Paulista, Lajeado e São Rafael (zone leste), Jaraguá e Perus (noroeste).

Além da não aprovação, 14 distritos da cidade aprovaram projetos, mas não conseguiram captar nenhum valor. São eles: Anhanguera, Cangaíba, Ermelino Matarazzo, Jaçanã, Jardim Ângela, Jardim Helena, José Bonifácio, Pari, Parque do Carmo, Perus, São Lucas, São Mateus, Vila Curuçá e Vila Matilde. Juntos, somam 62 projetos aprovados sem captação.
As análises revelam um funil de exclusão que atinge projetos periféricos, desde a aprovação até a captação de recursos, resultado de barreiras técnicas, institucionais e de rede. A pesquisa foi realizada pelo Observatório Ibira30, em parceria com a Universidade Federal do ABC.
O QUE É JUSTIÇA TRIBUTÁRIA, E COMO ELA PODE INCENTIVAR A CULTURA
Uma medida que poderia aumentar os recursos para a cultura de periferia é a Justiça Tributária. O conceito se refere a um sistema tributário equitativo, no qual a cobrança de impostos leva em conta a capacidade econômica de cada contribuinte. Ou seja, cada pessoa deveria ser tributada de acordo com as suas possibilidades.
No Brasil, a Justiça Tributária é ainda mais necessária, pois é uma forma de enfrentar e reduzir as desigualdades históricas. Observamos o exemplo de São Paulo. Uma parcela significativa da elite econômica e política do estado tem suas raízes e fortunas ligadas ao sistema escravista, tanto na compra e venda de pessoas negras quanto no uso de sua mão de obra em fazendas produtoras de café no século 19.
Cerca de 200 anos depois, qual é a consequência? Na região metropolitana, a renda média mensal dos 10% mais ricos, majoritariamente brancos, é 50 vezes maior do que dos 10% mais pobres, majoritariamente negros de perifeira, de acordo com dados do Seade.
Para piorar a situação, no atual sistema tributário brasileiro, a maior parte dos tributos (43%) incide indiretamente sobre o consumo e os serviços que utilizamos. Pagamos impostos em tudo que consumimos, desde a comida do supermercado até o transporte que nos leva ao trabalho. Na sequência, pagamos impostos sobre a renda que vem do nosso trabalho, de até 27%.
Por sua vez, os super-ricos — donos de grandes fortunas, com renda média mensal superior a R$ 95 mil, que somam 156 mil pessoas no Brasil, de acordo com a FGV Social — pagam proporcionalmente menos impostos do que os pobres. Isso se dá devido a renda deles ser proveniente de lucros e dividendos, que não são tributados no Brasil.
Nos últimos meses, o tema da tributação dos super ricos está em alta devido ao Projeto de Lei 1087/2025. De autoria do Governo Federal, o PL amplia a faixa de isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil.
Em contrapartida, para equilibrar as receitas, o projeto propõe uma tributação mínima para pessoas de alta renda. Progressiva, a nova tributação seria de 0,83% a 10% e abarcaria pessoas que ganham acima de R$ 650 mil por ano.

De acordo com Cecília Rabêlo, advogada e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), a taxação dos super ricos poderia ser usada para corrigir falhas dos programas de incentivo à cultura.
Mestre em Direito Constitucional e especialista em Direito Público e em Gestão de Políticas Culturais, ela cita o Imposto Sobre Grandes Fortunas (IGF).
Previsto na Constituição Federal desde 1988, o IGF nunca foi aplicado por ainda depender de uma lei complementar para definir o que é “grande fortuna”, as alíquotas e as regras de cobrança — parâmetros que o PL 1087/2025 tenta consolidar no momento.
“Com criações de leis específicas, que prevejam benefícios ao segmento criativo, recursos provenientes da taxação de grandes fortunas podem se tornar incentivo à cultura.”
Cecília Rabêlo, mestre em Direito Constitucional e especialista em Gestão de Políticas Culturais.
Ao mesmo tempo, a advogada chama a atenção para outro fator que pode atingir coletivos culturais da periferia.
A Reforma Tributária (Emenda Constitucional nº 132/2023), já promulgada, prevê que o ICMS e o ISS, impostos utilizados, respectivamente, por estados e municípios para o incentivo indireto à cultura, serão substituídos pelo Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
A reforma é uma tentativa de simplificar a tributação no Brasil. Com mudanças graduais até 2033, há também o objetivo de colocar todos os estados e municípios dentro das mesmas regras.
“Haverá um conselho gestor formado por estados e municípios que irá decidir sobre como o IBS será aplicado”, diz Cecília.
A grande questão para Cecília é que, com a extinção do ICMS e do ISS, extingue-se também o incentivo fiscal sobre tais impostos. Além disso, atualmente, a Constituição Federal veda a concessão de incentivo fiscal sobre o IBS.
Dessa forma, o estado e o município de São Paulo não poderão executar, respectivamente, os editais do Proac ICMS e do ProMac. Caso não haja uma nova lei que permita que recursos do IBS sejam destinados à cultura, ou a criação de outros mecanismos de incentivo fiscal, o segmento criativo terá uma queda drástica de recursos.
“Não ter mecanismos de isenção fiscal para apoiar à cultura é um grande problema”, diz Cecília. “No momento, precisamos pensar em alternativas de fomento para a economia criativa.”
Por sua vez, como a Lei Rouanet utiliza recursos do Imposto de Renda, a taxação dos super ricos poderá aumentar o orçamento do programa. No entanto, é necessário que a distribuição dos valores considere recortes territoriais e de gênero e raça, com linhas de apoio específicas para populações subrepresentadas.
Nesse sentido, é justo que quem ganha mais pague mais. Porque, enquanto a conta não for dividida com equilíbrio e justiça, ela vai continuar pesando sempre nas mesmas costas.
*Esta reportagem foi produzida com apoio do Território da Notícia como parte da campanha Justiça Tributária, Já.







