Reportagem de Evellyn Foltz, Julia Lopes, Kauan Bessa, Luana Taquatiá e Nícolas Furlanetti, alunos de jornalismo da Universidade São Judas Tadeu, realizada via convênio de ensino dual com a Emerge Mag, sob supervisão de Giselle Freire.
O Mapa Drag é um catálogo online que reúne mais de 100 drag queens e kings da região metropolitana de São Paulo. Um dos objetivos da iniciativa é gerar oportunidades profissionais para os participantes e combater o trabalho precarizado no segmento criativo.
Com sistema de busca, o mapa facilita empregadores a encontrar figurinistas, maquiadores, estilistas, mestre de cerimônias e atrizes, além de outras funções que as pessoas que dão vida as queens e kings desempenham no mercado criativo.
O catálogo é uma criação do Coletivo Acuenda, do Jardim Romano, periferia da zona leste de São Paulo. Desde 2014, o coletivo realiza ações artísticas e performáticas itinerantes e mantém programação regular na sua sede, o Espaço Cultural Mansão das Queens.
Um dos eventos é Cabaret D’água, com programação de música, dança, poesia e teatro. Nos últimos 11 anos, foram mais 500 ações, entre elas as tradicionais de Carnaval, São João e Dia das Crianças.
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Para Bruno Fuziwara (Dhiana D’Água), fundador do Acuenda, a atuação do coletivo tem naturalizado a cultura e as vivências LGBTQIA+ no território, por meio de um intenso trabalho de base.
“As crianças do bairro não usam mais palavras pejorativas, como ‘viadinho’ e ‘baitola’. Ao contrário, elas convidam outras crianças para participar dos eventos, o que cria uma rede de conscientização no território.”
Bruno Fuziwara, a Dhiana D’Água, fundador do Coletivo Acuenda.
GLITTER E MAQUIAGEM CONTRA O CONSERVADORISMO
Ao questionar normas tradicionais de identidade de gênero, arte drag desafia diretamente os pilares do conservadorismo, especialmente em comunidades periféricas. Porém, o que seria o conservadorismo?
Segundo a socióloga Elisabete Margenta, o conservadorismo é uma corrente de pensamento que busca preservar tradições, normas e estruturas sociais consideradas fundamentais para a manutenção da “ordem” e da “estabilidade”.
Geralmente, o conservadorismo se manifesta como uma resistência às manifestações culturais, sociais e políticas que desafiam valores estabelecidos, mesmo que tais princípios sejam injustos e vão contra os Direitos Humanos.
“O conservadorismo tem aversão a mudança e prega a estagnação. Ao impedir novas formas de pensar, agir e de ser, tenta manter uma mesma perspectiva e visão de mundo.”
Elisabete Margenta, socióloga, historiadora e neuropsicopedagoga.
No entanto, em contextos periféricos, o conservadorismo pode ganhar uma dimensão específica: funciona como uma forma de proteger a identidade e os laços comunitários em meio à vulnerabilidade e à insegurança socioeconômica. Opera via reprodução de discursos historicamente cunhados pelas elites econômicas brasileiras, de origem escravocrata.
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Frequentemente, essa resistência à mudança perpetua desigualdades e exclusões, especialmente para grupos como a comunidade LGBTQIA+. Ao manter uma visão estática do mundo, o conservadorismo limita a inclusão e dificulta a construção de uma sociedade que valorize a diversidade e a pluralidade de identidades.
“Quando o Coletivo Acuenda surgiu, muitos pais e mães do bairro nos viam como travestis, grupo social historicamente marginalizado e oprimido. Era comum parte das famílias impedirem os filhos de frequentarem os eventos de drag.”
Bruno Fuziwara, fundador do Coletivo Acuenda.
ESPAÇOS DE APRENDIZADO E REFÚGIOS
A arte é um instrumento poderoso de mudança social. Ao combinar emoção, criatividade e narrativas, comunica experiências humanas que transcendem as palavras. Em territórios em que o acesso a oportunidades culturais é limitado, a arte funciona como um estimulante em prol da transformação, pessoal e coletiva. É um refúgio que permite as pessoas expressem suas dores, esperanças e identidades.
Por sua vez, a arte drag vai além da estética. Ela reconstrói histórias marginalizadas ao oferecer visibilidade a grupos que frequentemente são silenciados. Baseado nesses princípios, o Coletivo Acuenda cria espaços de aprendizados e planta sementes de questionamentos e pensamento crítico. A criatividade se estreleça na desconstrução de um presente sufocante para imaginar outros futuros possíveis, em que feridas provocadas pelo preconceito são curadas.
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Anualmente, o Coletivo Acuenda realiza o Curso Drag, uma oportunidade de desenvolvimento profissional para quem deseja explorar a arte da montação (o ato de se adornar de forma extravagante). A última edição do cursou aconteceu no segundo semestre do passado passado. Com carga horária de 36 horas, foram ministradas aulas de maquiagem, dublagem, performance e história da arte drag. O curso foi contemplado na 8ª Edição do Programa de Fomento à Cultura da Periferia, da Prefeitura de São Paulo.
Aluna do curso, a drag queen Águilla Spinoza afirma que, ao começar a fazer performances artísticas, sua relação com a família passou por mudanças.
“Minha mãe falava para o meu pai ‘seu filho está virando um artista, está subindo no palco para interpretar uma personagem; isso é tem que ser motivo de orgulho para nós’.”
Águilla Spinoza, drag queen formada no curso do Coletivo Acuenda.
Durante os eventos realizados no Espaço Cultural Mansão das Queens, é comum ouvir relatos de jovens que passaram a ter uma vida mais feliz após criar performances. O DJ Victor conta que, ao dar vida a drag Shanaya, é como se transformasse em outra pessoa, o que o reforça a sua confiança e autoestima mesmo quando não está nos palcos.
Já Igor fala que as pessoas não o chamam mais pelo nome de batismo. Agora, é mais conhecido como Midorii Kido, alcunha de sua drag que também nomeia a sua banda de heavy metal, em que é vocalista. “A Midorii é parte de mim”, diz ele.
Bruno, a Dhiana D’Água, lembra o quanto a dedicação ao Acuenda também o fortaleceu. Em 2016, um ano após a fundação do coletivo, ele perdeu o pai e um primo e sua avó ficou doente. Como consequência, o próprio artista adoeceu.
“As mortes e as doenças na família fizeram com que eu quisesse esquecer da vida. Só não apaguei as memórias porque existia o Coletivo Acuenda, que me deu força e sustentação. A arte cura, e me curou.”
Bruno Fuziwara, fundador do Coletivo Acuenda.
Entre os palcos e identidades, o Coletivo Acuenda revela como a arte drag vai muito além do espetáculo. A Dhiana de Bruno, a Águilla de Guilherme, a Midori de Igor e a Shanaya de Victor não são apenas personagens. São extensões das vidas de seus criadores. São suas próprias histórias — narrativas para criar um futuro mais inclusivo e vibrante.
No Jardim Romano, palco do Coletivo Acuenda, quando as luzes se apagam, permanece a certeza: cada transformação reverbera no coração de quem assiste e de quem se monta.
FOTO DE ABERTURA: Mylena Souza.