#Emergereposta: Bianca Silva Sales e Estela Aguiar, originalmente publicado por Agência Mural.
O dia mal raiou e a estudante de economia e bancária Débora Borges, 22, moradora do bairro de Americanópolis, em Cidade Ademar, na zona sul de São Paulo, já está a caminho do trabalho, no Morumbi, bairro rico da região sul. Para a jovem, a rotina dividida entre o trabalho e os estudos não reflete as discussões em torno da geração Z e o mercado de trabalho.
“Não sei se a referência são jovens que vem do centro, de Alphaville que tem mais dinheiro, porque a realidade que eu vivo, e a dos meus amigos da minha geração, não é essa”, comenta. “Aqui todo mundo quer se inserir no mercado de trabalho e dar o seu melhor.”
Débora faz parte da Geração Z, composta por nascidos entre 1997 e 2012, que no Brasil somam mais de 45 milhões de pessoas, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística). Em redes sociais como LinkedIn e TikTok, tem circulado postagens em que profissionais de diversos segmentos reclamam de comportamentos e da postura profissional dos jovens dessa geração.
Mas na prática, isso é assim e é com todos os jovens dessa faixa etária? A Agência Mural ouviu moradores das periferias de São Paulo sobre isso e como eles veem o atual mercado de trabalho.
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OPORTUNIDADE X NECESSIDADE
Na lista de posts sobre a geração Z estão desde pais que acompanham filhos na entrevista de emprego até desinteresse, falta de comprometimento e exigências no formato de trabalho – seja presencial, híbrido ou home office.
Mas esse comportamento não compõe toda uma geração. Para o especialista em diversidade e cofundador do Anuário (Se)mentes, Daniel Souza, é necessário pensar em um país com muitas questões geográficas.
“Ao olhar para jovens de classe média, é preciso analisar se o trabalho é por oportunidade ou necessidade”, pontua o especialista. Quem tem mais oportunidades, começa o trabalho com a possibilidade de pensar no futuro, mas para muitos jovens essa não é a realidade.
Antes mesmo de começar a buscar oportunidades no mercado de trabalho, Débora conta que foi conscientizada pelos pais sobre os desafios que enfrentaria, sendo uma mulher preta e periférica.
“Sempre tive um pouco dessa pressão de ter que estudar, ter que ser muito boa e ter que me esforçar mais”, afirma ela. “Por isso, meus pais ‘ralaram’ muito para que eu fizesse um curso de inglês e conseguisse oportunidades melhores.”
Em 2020, com a chegada da pandemia de Covid-19 e recém formada no ensino médio, Débora, assim como inúmeros jovens da geração Z, se viu sem oportunidades de trabalho. No período, a taxa de desemprego bateu recorde com mais de 4,1 milhões de jovens à procura de emprego, segundo dados do Ipea.
Nesse período, para contribuir financeiramente com a família, Débora deu aulas de inglês, mas após três meses, conseguiu uma oportunidade no mercado de trabalho como jovem aprendiz. Para ser efetivada, precisava de mais experiência.
“Com isso, começou minha saga para conseguir inúmeras certificações e conquistar a bolsa de estudos na faculdade”, comenta.
Para Débora, é cada vez fica mais difícil se inscrever e se candidatar em vagas de emprego sem ter experiência profissional. Essas dificuldades são pouco mencionadas quando são propagados os mitos sobre a geração Z.
PLANO DE CARREIRA
Oportunidades com plano de carreira e reconhecimento é um fator que muitos jovens periféricos buscam no mercado de trabalho. De acordo com pesquisa do Instituto da Oportunidade Social, 67% dos jovens Gen Z consideram muito importante que as empresas ofereçam possibilidade de crescimento profissional.
Assim como Débora, o corre para apoiar a família financeiramente, também moveu a entrada no mercado de trabalho do técnico em eletrônica, Isaac Pereira, 21, morador do Jardim Maria Estela, na zona sul de São Paulo.
Após o falecimento do pai — a única renda da casa, Isaac se viu com a mãe e os quatros irmãos desamparados. Começou a buscar vagas de emprego ao finalizar o ensino médio.
“Cheguei a enviar currículos, fui para entrevista, mas acredito que pela falta de experiência, acabei não sendo chamado”, diz ele. “Mas, fiz alguns bicos, desde lava-rápido até garçom.”
Foi justamente o ‘bico’ em uma assistência técnica para celulares que impulsionou o jovem a ingressar no curso técnico de tecnologia. A partir da formação, Isaac conquistou uma vaga como estagiário e na sequência, foi efetivado.
Além de contribuir em casa e estudar, o jovem técnico em eletrônica planeja empreender, mas para isso será preciso aliar estudo e organização financeira.
“Querendo ou não para você seguir um sonho, é preciso estudar várias outras áreas. As pessoas falam que o jovem não quer nada com nada, mas isso não é verdade. É possível mesclar curtir e ser profissional”, comenta Isaac.
Quando esse jovem não se encontra no mercado de trabalho, o caminho que resta é o empreendedorismo, como foi o caminho da Flávia Aragão, 25, moradora de Americanópolis, na zona sul de São Paulo.
Formada em design gráfico e trabalhadora freelancer, a jovem possui uma marca online de roupas de confecção própria no estilo streetwear, modelos que aliam conforto e conexão com a cultura hip hop.
Contudo, ela ainda não consegue se manter apenas com os lucros da marca, por isso, realiza trabalhos como freelancer na criação de projetos gráficos.
“Às vezes, o jovem de periferia não quer uma relação patronal e passa a empreender”, diz o especialista Daniel “E se pensarmos na uberização, a vida vai acabar girando em torno de trabalho”.
Na perspectiva de Flávia, o trabalho também era considerado algo central e que por vezes afetava sua autoestima. “É difícil, porque hoje você vai se candidatar para vagas e as empresas querem contratar e pagar um profissional para fazer o trabalho de três, quatro pessoas”, relata.
Por isso, a jovem buscou olhar de outra maneira para a própria carreira. “É muito difícil entender o lugar de trabalho na nossa vida, ainda mais sendo jovem periférico, porque a necessidade sempre fala mais alto. Só que dá para ter um equilíbrio. E isso tem me ajudado muito”, diz.
O TRABALHO NÃO É MAIS O ÚNICO SONHO
Com essa virada de chave, Flávia manteve o foco e disciplina financeira entre os freelas e a sua loja, e conseguiu realizar o sonho de fazer um intercâmbio. A viagem de três meses tem como destino Malta, um país do continente europeu próximo à Itália. Além da carreira profissional, para a jovem a viagem mostra o que o trabalho pode proporcionar e que também deve ser vivido no hoje.
“As gerações anteriores davam a vida para o trabalho e o tinha como prioridade. Só que a gente [Geração Z], assistiu essas gerações se matando de trabalhar, com a promessa de um resultado e muitas vezes chegando lá doentes. A gente não quer seguir pelo mesmo caminho”, comenta.
Esse caminho não é exclusivo da Flávia, a marketeira e criadora de conteúdo Luiza Alencar, fala justamente sobre carreira para os mais de 180 mil seguidores no TilkTok.
A jovem, que morou durante muitos anos no Jabaquara, zona sul da capital paulista, compartilha a visão sobre o mercado de trabalho a partir do próprio olhar: uma jovem preta, periférica e Gen Z. Para ela, o trabalho não é mais um sonho, é meio para que você realize o seu sonho, seja ele qual for.
Com o trabalho, ela diz que recebe muitas mensagens de pessoas que passaram a ter uma outra visão do trabalho. “Meus seguidores compartilham comigo o que estão conquistando pelo seu trabalho, e me sinto uma porta-voz para inspirá-las, e repensar sobre o mercado”, afirma.
A criadora de conteúdo pondera que ainda sim é preciso estar de olho no que as empresas oferecem para a geração Z. “As empresas precisam pensar que o funcionário precisa ter uma vida para além dele, de pensar na saúde mental deste funcionário, em ter suporte do RH caso haja denúncias de abuso de autoridade.”
Imagens: Magno Borges (ilustração de abertura) e arquivo pessoal (demais fotos).