Trabalho em uma livraria há quatro meses e essa oportunidade tem sido enriquecedora. Nunca me interessei tanto por livros e, diariamente, me vejo com vontade de ler autores e publicações, das mais diversas áreas, que eu sequer imaginava me entusiasmar antes.
Ao mesmo tempo, passo por algumas situações um tanto quanto desconfortáveis. A maioria dos livros vendidos são da área de autoajuda e administração, com aquele papo de “destravar seu mindset” e se tornar milionário em um piscar de olhos. Outra situação que ocorre bastante é a surpresa dos clientes com o preço dos livros. Com certa frequência, comentam que “na Amazon está muito mais barato”. Mesmo assim, mostram felicidade em ter uma livraria por perto e torcem para que ela dure por um bom tempo, já que muitas fecharam ou decretaram falência nos últimos anos.
Essa experiência aponta para algumas das tendências do mercado editorial. Segundo a pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro, feita pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros, pela Câmera Brasileira do Livro e pela Nielsen BookData, por exemplo, de 2006 para 2022, o faturamento do mercado editorial brasileiro diminuiu 40%. Esse dado ganha força quando visualizamos que as duas principais redes de livrarias do Brasil, a Cultura e a Saraiva, estão passando por momentos complicados financeiramente.
Nadando contra a corrente, livrarias e editoras independentes, têm buscado criar novas formas colaborativas de consumir e disseminar literatura. São trabalhos que promovem uma curadoria cuidadosa e militante, da editoração às prateleiras.
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“DO MESMO JEITO QUE FAZÍAMOS, ESTAMOS FAZENDO LIVRO”
Na Galeria Metrópole, centro de São Paulo, está localizada a sobinfluência, editora independente que vem se consolidando no mercado editorial. Fundada em 2020, ela se dedica a publicar livros de arte, filosofia, poesia, entre outros. Todos dentro de um eixo político radical de esquerda.
As primeiras publicações eram de espectro socialista libertário e marxista heterodoxo, que propunham um diálogo entre estética e política. “Com o passar do tempo, fomos entendendo que estávamos interessados na produção que se dava pelas margens de uma forma um pouco mais ampla, mesmo que ainda dentro deste eixo de políticas radicais de esquerda”, explica Rodrigo Corrêa, editor e um dos fundadores da sobinfluência. Nesses três anos, cerca de 25 livros foram publicados pela editora, em tiragens que vão de 500 a 1.000 exemplares.
Rodrigo também é o responsável pela produção gráfica dos livros. Foi pelo seu gosto por arte, inclusive, que surgiu o nome “sobinfluência”. O termo dá título a uma série de colagens do editor e artista.
Com o tempo, ele foi entendendo os funcionamentos do mercado editorial e percebeu que a série poderia se tornar algo maior e, quem sabe, inaugurar uma editora. A ideia se intensificou quando Rodrigo começou a trabalhar na Autonomia Literária, iniciativa editorial com foco em publicações junto aos movimentos sociais, intelectuais, coletivos e novos portais de mídia independente. “Foi aí que a Fabiana, o Alex e o Gustavo se aproximaram”, comenta Rodrigo.
Alex Peguinelli e Fabiana Gibim continuam como sócios e editores da sobinfluência. Além dos três, mais duas pessoas trabalham lá, Letícia Madeira, responsável pela área comercial, e Ana de Assis, na área de comunicação. Toda a equipe tem uma relação muito próxima com todos os processos. “Não começamos com a ideia do que uma empresa precisa ter. Pelo contrário, vimos o que cada um podia fazer. Continua sendo assim, mas aprimoramos essa dinâmica, que conta com uma série de limitações financeiras e de tempo”, conta Rodrigo.
Por não virem da área editorial, Alex conta que precisaram improvisar e encontrar novas formas para realizar o que queriam. “Isso abriu um leque de oportunidades em relação à organização do trabalho. Sempre estamos em mudança, aprendendo enquanto fazemos”, aponta. Nesse sentido, as entradas de Letícia e Ana foram fundamentais para o funcionamento da editora, um acerto para que Alex, Fabiana e Rodrigo pudessem se dedicar mais à edição dos livros.
Formada em Relações Internacionais, Letícia descobriu a editora no Instagram. Seu trabalho é de viabilizar o fluxo entre a editora e os leitores, livreiros e livrarias. Quando visita estes locais, está mais preocupada com a parte afetiva do que financeira. “É um prazer enorme ter essa relação com os livreiros, de ter um rosto humano por trás dos e-mails”.
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Essa relação de proximidade se dá, principalmente, com as pequenas livrarias. É uma forma mútua de sobreviver no mundo dos livros. “Criamos laços de amizade, compartilhamos ideias para saber como tem sido a recepção dos leitores e leitoras e pensar os próximos passos”, completa.
Uma relação que é diferente com livrarias maiores e com distribuidoras: “Não temos a mesma oportunidade de estar em contato direto. Eles lidam com muitas editoras. São outros fatores que acabam entrando como prioridade”.
Outro desafio está na parte financeira. Segundo Alex a produção de um livro gera altos investimentos logo no início, seja com gráfica, tradução ou adiantamento de direito autoral. “Por sermos uma editora independente e não termos uma rede de distribuição tão grande, o retorno do investimento acaba por ser mais prolongado”. Assim, uma solução para que a conta feche no fim do mês é fazer a pré-venda dos livros, que dura por volta de dois meses e ajuda a segurar o dinheiro nesse período.
Felizmente, a principal forma de arrecadação está sendo pela venda direta dos livros, uma situação que pode não ser tão comum como se imagina, já que muitas editoras se sustentam por meio de editais ou financiamentos diversos. Eles também vendem outros produtos para potencializar a produção dos livros. No espaço da Galeria Metrópole e no site, é possível comprar cartazes, ecobags e o “Cardume”, periódico que trata sobre diversos temas presentes em seus livros.
“Do mesmo jeito que fazíamos música, estamos fazendo livro. Tem uma relação nuclear com a coisa. Existem algumas coisas que precisamos fazer da nossa vida, então vamos tentar fazer isso dar certo”, aponta Rodrigo. Além do trabalho na editora, ele é membro da banda hardcore, Time and Distance.
Antigamente, lançavam o que era possível. Agora, com uma melhor organização interna, podem-se preparar mais e projetar lançamentos com calma. Eles já estão trabalhando em livros que serão publicados no ano que vem, por exemplo. “As pessoas olham o projeto independente enquanto amadorismo e não achamos que a sobinfluência seja isso. Estamos, da nossa maneira, inseridos no mercado editorial”, diz Alex.
PRODUÇÃO LITERÁRIA E O AMBIENTE ACADÊMICO
Os desafios do mercado editorial também podem ser vistos no ambiente acadêmico. O faturamento dos livros científicos, técnicos e profissionais caiu 56% entre 2006 e 2022, segundo a pesquisa Produção e Vendas do Setor Editorial Brasileiro. Além disso, a academia pode ser um ambiente elitista e opressivo para aqueles fora dos padrões branco-cis-hetero.
No caso de pessoas transmasculinas, o debate quase não existe. Quando surge, elus são abordadas de forma patológica, como um transtorno ou sob uma perspectiva cisgênero, produzindo violência e incômodo. Foi nesse contexto que, em 2020, Bruno Pfeil, Cello Pfeil, Thárcilo Hentzy e Nicolas Pustilnick fundaram, no Rio de Janeiro, a Revista Estudos Transviades, um espaço de acolhimento e de divulgação de pessoas transmasculinas.
A publicação é composta por textos acadêmicos, mas vai além. O principal é acolher a diversidade de narrativas e potencializar formas e expressões das transmasculinidades. “Não se expressam só a partir de artigos científicos. Há uma produção muito rica de poesia, de contos, artes, qualquer material escrito ou visual”, explica Nicolas Pustilnick, psicólogo e co-fundador da revista.
Desde o início, a receptividade foi enorme. A primeira edição da revista recebeu uma grande quantidade de materiais e conta com mais de 400 páginas. “Percebemos o quanto as pessoas transmasculinas querem falar e serem ouvidas”
Visando fácil acesso, todas as edições estão disponíveis online. Mas, somada a essa preocupação, está a falta de verba, que dificulta uma versão impressa. Muitas vezes precisam, inclusive, tirar dinheiro do próprio bolso para viabilizar uma nova edição. “Até então tem sido na raça. Fizemos algumas parcerias, com retornos financeiros. Mas são muito pontuais”. O dinheiro obtido vai quase todo para quem está trabalhando e uma pequena parte é investida na revista. Atualmente, há seis pessoas no núcleo de coordenação da revista e dois designers. Todos são pessoas transmasculinas.
Os trabalhos lançados até o momento são o “Mapeamento educacional das transmasculinidades”, e o dossiê “Transmasculinidades, gravidez, abortos e relações parentais”, lançada em parceria com a Revista Brasileira de Estudos da Homocultura. Há também um trabalho impresso, o livro “Corpos Transitórios: Narrativas Transmasculinas”, uma parceria com a Editora Devires.
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A revista está com chamada aberta para o dossiê temático “Transmasculinidades e não-binariedades em perspectivas originárias”, até o dia 31 de outubro. “Queremos trazer outras perspectivas para além do binarismo. São pessoas transmasculinas que apresentam outra vivência de gênero.”, explica Nícolas.
E o esforço tem tido reconhecimento. Recentemente, os integrantes do grupo receberam uma menção honrosa na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, pelo mandato da vereadora Luciana Boiteux (PSOL), pelo trabalho com a cidadania da população trans.
AMAZON E O MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO
A pesquisa feita pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros e pela Câmara Brasileira do Livro também mostra que as livrarias exclusivamente virtuais superaram as físicas e se tornaram o principal canal no faturamento das editoras. Em alguns setores, as livrarias virtuais alcançam quase 50% das vendas. Quando vemos essas informações, o primeiro nome que nos vem à cabeça provavelmente é o da Amazon. A multinacional estadunidense se tornou um dos principais meios de se adquirir livros. Em muitos casos, os preços são abaixo dos da concorrência. Essa prática, conhecida como dumping, significa a precarização e o barateamento de outras etapas da venda, como a entrega e a compra dos livros da editora com descontos abusivos.
Para resolver a situação, o setor editorial busca a criação da Lei do Preço Fixo, que limitaria o desconto em publicações a 10% em até um ano de seu lançamento. No entanto, Alex entende que a situação é mais complexa do que se pensa. O preço do papel, por exemplo, é um grande obstáculo para as pequenas editoras.”O preço sobe umas duas ou três vezes por ano. Quando fazemos um orçamento de um livro e o colocamos na pré-venda, dois meses depois, o orçamento está mais caro”, aponta.
Outra dificuldade é o modelo consignação. “Uma coisa inimaginável pensar que você está vendendo seu produto com descontos que podem ser de até 60% para receber daqui a 90 dias. Se você receber, porque depende da venda”, explica Alex. Como consequência, esses custos são incorporados no preço final dos livros.
Para superar esses obstáculos, a coedição de publicações se tornou uma forma de dividir os custos e viabilizar projetos, além da ajuda mútua com trocas e compartilhamentos de aprendizados. Nadando contra a corrente, esses projetos se amparam, mostrando novas formas de pensar o trabalho e superar as adversidades.
Reportagem: Antônio Moraes de Paiva
Edição: Teresa Cristina
Fotos: Rafael Felix
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