O relógio marcava duas horas da tarde, do dia 29 de setembro de 2018, quando uma multidão começou a se reunir no Largo da Batata, na zona oeste de São Paulo. Apesar do clima de véspera de eleição, a aglomeração tinha pouca atmosfera de comício partidário.
O ato foi convocado via redes sociais pela Marcha Mundial das Mulheres, movimento internacional presente em 70 países. Foi sobre política. Foi sobre poder.
A manifestação, sem par na história recente do Brasil, foi um repúdio ao candidato a presidente Jair Bolsonaro e suas ideias misóginas, racistas, xenófobas, lgbtfóbicas e antidemocráticas.
Na praça e avenidas próximas ao local, ouvia-se o coro: “Ele não! Ele não! Ele não!”. Os gritos eram embalados por uma série de marchinhas feministas e pela bateria de grupos como o Ilú Obá De Min, formado apenas por mulheres.
O mesmo ato aconteceu em outras 18 capitais e 65 cidades brasileiras. Também houve protestos em cidades da Alemanha, França, Suíça, Itália, Canadá, Portugal e outros países.
As mulheres reproduziram nas ruas o que as pesquisas de opinião já falam sobre o candidato do PSL. Apesar de liderar a corrida presidencial, Bolsonaro tem uma taxa de rejeição de 46%. Entre o eleitorado feminino, de 52%.
Não se sabe, contudo, números exatos de participantes. Sintomaticamente, as polícias não contaram. Mas os coletivos femininos estimam a participação de centenas de milhares pessoas. De acordo com a candidata a deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL), o número chega a 500 mil em São Paulo – cidade com maior adesão do país.
Diversos candidatos e partidos políticos, especialmente os de esquerda e centro-esquerda, utilizaram a manifestação como ponto de encontro com eleitores. Mas eles não foram os protagonistas.
Com o protesto, as mulheres ansiavam criar uma coalizão ampla da sociedade em prol de um projeto de país. O objetivo é não haver retrocesso de direitos e a defesa da democracia e seus valores mais básicos de liberdade, igualdade, justiça, solidariedade e paz. Um manifesto entregue durante o ato dizia:
“A disputa das eleições de 2018 se insere em uma luta maior sobre os rumos de nossa sociedade: se recuperamos a soberania do nosso povo e abrimos caminhos para ampliar direitos ou se o atual retrocesso em curso se aprofundará com o fortalecimento do capitalismo racista e patriarcal”
O texto denunciava ainda o aumento do controle sobre os corpos e as vidas femininas. Nos últimos anos, aumentou consideravelmente os índices de feminicídio, estupros e outras violências contra às mulheres. Há ainda o debate sobre dificultar o acesso ao aborto seguro.
PERFORMANCE
Quem também esteve presente no ato foi o Desvio Coletivo, grupo de teatro performático composto pelos artistas Marcos Bulhões, Priscilla Toscano, Leandro Brasílio e Marie Auip.
Eles distribuíram batons e encorajaram o público a registrar num painel, fixado no muro que separa as pistas da Avenida Brigadeiro Faria Lima, sua insatisfação à candidatura de Bolsonaro.
A performance também foi um chamado à expressão de amor pela cidade e pela democracia. Em poucos minutos, a placa branca foi preenchida por marcas de lábios impressas por beijos e frases.
A arte foi clicada pelo fotógrafo Vitor Monteiro, em sua primeira colaboração para Emerge Mag.
A ação artística fez parte de uma atividade mensal do grupo. Denominada Dia de Deriva Desviante, o ato tem o objetivo de reunir pessoas para experimentar a cidade.
Acompanhada da filha criança, Maria participou da intervenção artística e deixou sua marca na parede.
“Esse candidato representa um retrocesso de séculos e não podemos deixar que ele chegue à presidência”, disse ela. “Temos que mostrar que não concordamos com as ideias equivocadas dele e a arte é um dos canais para manifestar isso”.
Embora a marcha fosse das mulheres, a hashtag #EleNão catalisou o sentimento contra Bolsonaro de diversos grupos minorizados em poder político, social e econômico. Assim, o ato teve também participação massiva de pessoas LGBTQI+ e negros. Homens cisgêneros heterossexuais brancos também compareceram.
“Eu me sinto contempladíssimo neste ato”, disse Bruno Costa, jovem gay. “Pude me posicionar frente ao fascismo e participar da performance de experimentar a cidade.”
Há várias razões para essa explosão social acontecer. E um dos catalizadores foi a criação, seguida da derrubada intencional por fascistas, do grupo do Facebook “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro”.
Se a expectativa daqueles que atacaram era de tirá-lo do ar e intimidar suas criadoras, o tiro saiu pela culatra. No Facebook os grupos e eventos contra Bolsonaro se proliferaram. Nos dias seguintes, as imagens de multidões nas principais capitais do Brasil sinalizaram a migração da onda da rede para as ruas.
E, como se foi ouvido no já histórico 29 de setembro, “se fere minha existência, serei resistência”.
IMAGENS: Vitor Monteiro