Esta reportagem contou com apoio do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+.
Após concluir a graduação em comunicação, o mineiro Augusto Drummond, 32 anos, fazia questão de falar sobre diversidade sexual e de gênero (DSG) durante entrevistas de empregos. Ciente de que a orientação sexual pode impactar na carreira, ele queria saber se o fato de ser um homem gay seria um problema para o empregador. “Se a empresa fosse receptiva, ótimo”, diz ele. “Se não, eu já declinava da proposta para não entrar em roubada”.
A sinceridade deu certo. Em 2018, ele foi contratado como trainee na Nestlé. Desde então, sua carreira tem sido meteórica. Após passar pelas áreas de marketing, planejamento estratégico e inovação e novos negócios, ele assumiu a posição de head de diversidade e inclusão em agosto do ano passado.
Augusto explica que a área de diversidade da empresa foi criada em 2020. A motivação foi uma preocupação interna de que a Nestlé precisa espelhar a realidade da população brasileira. Era uma questão de negócio.
Com mais representatividade em diferentes níveis hierárquicos, há mais chances da companhia entender o consumidor e identificar tendências de comportamento. No final do dia, significa ser capaz de criar produtos e serviços mais adequados às necessidades e desejos do público.
“Uma boa área de diversidade gera inclusão social, que é o correto a ser feito. Porém, para ser sustentável, é preciso ter uma visão de negócio. A diversidade melhora o desempenho da empresa.”
Augusto Drummond, head de diversidade e inclusão da Nestlé.
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Hoje, a área de diversidade da Nestlé responde diretamente à vice-presidência de pessoas. Para apoiá-la, há cinco grupos de afinidades (Gênero, Racial, LGBTI, Intergeracional e de pessoas com deficiência). Cada grupo possui 25 funcionários voluntários, com a responsabilidade de criar ações transformacionais.
Por exemplo, o grupo de mulheres criou o Acolhidas no Ninho. O projeto realiza palestras sobre violência doméstica em diferentes unidades da empresa. Os encontros contam com a participação de agentes públicos, como de delegacias da mulher. Algumas funcionárias recebem treinamentos e ganham um celular específico para receber ligações de colegas que estejam sendo vítimas de violência em suas residências.
“Temos a consciência de que não vamos resolver problemas complexos e estruturais”, diz Augusto. “Mas fazemos a nossa parte para atender colaboradoras que estão passando por esses problemas”.
O programa de diversidade possui mais frentes. Cada unidade da empresa (escritórios, fábricas e centros de distribuição) tem um comitê de diversidade, geralmente liderado por uma pessoa de recursos humanos. Esses comitês locais recebem a estratégia macro da sede e a adaptam para as necessidades do território.
Já na alta liderança, há comitês de gênero e raça, cada um com a presença de quatro vice-presidentes (VP). Mensalmente, os VPs também analisam os indicadores de diversidade, da mesma forma que analisam dados de outras áreas, como marketing e vendas.
Hoje, a Nestlé possui mais de mil funcionários com deficiência e 45% dos cargos de liderança são ocupados por mulheres. Via autodeclaração voluntária, funcionários LGBTQIA+ somam 6,8%.
Para garantir a ascensão de pessoas negras a cargos de liderança, a empresa lançou um programa de aceleração de desenvolvimento profissional em fábricas e áreas de apoio. Entre 2023 e 2024, 68 pessoas foram beneficiadas. Dessas, 19 tiveram progressão de carreira (veja participantes do grupo de afinidade racial da empresa na foto que abre esta reportagem).
De acordo com Augusto, o índice de rotatividade de funcionários pertencentes a grupos minorizados também é menor do que a média geral da empresa.
Os bons resultados fizeram a operação brasileira ser referência global. A cada dois anos, a Nestlé avalia o seu desempenho nos mais de 80 países em que opera.
“No quesito maturidade em diversidade, o Brasil é sempre o primeiro colocado”, diz Augusto.
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O QUE TORNA UM PROGRAMA DE DIVERSIDADE RELEVANTE?
Após décadas de conquistas, o tema diversidade, equidade e inclusão (DEI) sofreu um forte impacto em 2025. Logo ao assumir a presidência dos Estados Unidos, Donald Trump emitiu decretos para proibir programas de DEI tanto no governo federal quanto no setor privado.
De acordo com Reinaldo Bulgarelli, secretário executivo do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+, a medida também gerou efeitos em outros países.
Há empresas que operam no Brasil que recuaram no tema por ordem da matriz com sede nos Estados Unidos. Há também empresas que não são norte-americanas, mas recuaram com receio de perder contratos com organizações dos Estados Unidos.
Frente a um cenário global incerto, Reinaldo destaca a importância de valorizar os avanços já conquistados e, principalmente, reafirmar o jeito brasileiro das empresas trabalharem com diversidade.
“Precisamos entender a realidade brasileira e a construção que fizemos em torno do tema DEI, que é referência em todo o mundo, para não trazer para cá uma realidade estrangeira equivocada.”
Reinaldo Bulgarelli, secretário executivo do Fórum de Empresas e Direitos LGBTI+.
Um grande alento veio da pesquisa Panorama da Diversidade nas Organizações 2025. Mais da metade das empresas consultadas afirmou que a onda conservadora norte-americana não teve impacto na operação brasileira. Por sua vez, 6,6% relataram que o contexto internacional reforçou seu compromisso com DEI, ampliando ações ou investimentos. Apenas 10,2% relataram redução de recursos ou ações.
Realizada pela To.Gather com apoio do MIT, entre março e maio de 2025, a pesquisa consultou 305 empresas no Brasil, de 25 segmentos e diferentes portes, que somam mais de 2 milhões de funcionários.
E como construir um programa de diversidade eficiente?
Para Margareth Goldenberg, CEO da Goldenberg Diversidade e gestora executiva do Movimento Mulher 360, é necessário ter governança. Ou seja, para um programa ser sustentável e apresentar resultados concretos, é preciso ser baseado em processos, métricas, responsabilização e prestação de contas.
A consultora elenca três fatores fundamentais. Primeiro, é preciso ter lideranças comprometidas — a vontade deve existir no alto escalão da empresa. Na prática, isso se traduz em ter executivos envolvidos no tema, inclusão de metas de diversidade nas avaliações de desempenho dos líderes e declarações públicas de CEOs e presidentes a favor dos direitos humanos.
Segundo, o programa de diversidade precisa ser institucionalizado e ter estrutura própria. Por exemplo, ter profissionais com dedicação exclusiva, como gerentes e especialistas. Por sua vez, os grupos de afinidade precisam ter autonomia e orçamento para realizar suas ações.
Por fim, Margareth destaca a necessidade de ter metas de representatividade no quadro de funcionários; indicadores de clima e pesquisas de engajamento com recortes de gênero, raça, orientação sexual, entre outros marcadores sociais; e um plano de ação com cronograma, entregáveis e profissionais com papéis definidos.
“Um bom programa de diversidade pode garantir que todas as pessoas tenham espaço, voz, segurança e oportunidades reais nas empresas”, diz ela.
Margareth Goldenberg, CEO da Goldenberg Diversidade e gestora executiva do Movimento Mulher 360.
CONHECIMENTO E TRANSPARÊNCIA PARA MUDAR REALIDADES
É possível afirmar que empresas que já começaram a jornada em DEI têm dois grandes desafios. O primeiro é transformar iniciativas pontuais, geralmente realizadas em datas como Dia das Mulheres, Consciência Negra e Orgulho LGBTI+, numa agenda consistente com impacto real.
Depois, há o obstáculo de fazer com que a agenda tenha o mesmo nível de seriedade, cobrança e valorização que qualquer outra área do negócio. Isto é, que seja integrada na cultura e gestão da companhia.
Ambos movimentos são fundamentais para que o programa de diversidade seja capaz de suportar pressões internas e externas. Neste contexto, devem ser quase inexistentes profissionais de diversidade que nunca ouviram perguntas como “será que a gente deveria mesmo investir nisso?” ou “essa pauta não está gerando mais conflitos do que soluções?”.
Uma empresa que tem conseguido elevar o nível da agenda é a rede de farmácias Pague Menos.
Desde 2022, a empresa mantém um programa de diversidade. O ponto de partida foi uma escuta ativa. Foi realizado um diagnóstico organizacional com base em dados de perfil dos funcionários, seguido por mapeamento de percepções sobre inclusão e rodas de conversa com diferentes grupos, incluindo a alta liderança.
Depois, foram definidas cinco frentes prioritárias de trabalho: mulheres, pessoas pretas, pessoas com deficiência, pessoas com mais de 50 anos e pessoas da comunidade LGBTQAIPN+.
“Inicialmente, os principais desafios internos eram o nivelamento de conhecimento sobre a temática, bem como a definição de indicadores de acompanhamento”, afirma Rosi Puccetti, vice-presidente de gente, sustentabilidade e estratégia da Pague Menos.
Na questão de conhecimento, cabe uma explicação. Em diversidade, letramento é o processo educativo que visa conscientizar sobre direitos humanos e relações sociais, como raciais ou de gênero, para capacitar as pessoas a reconhecerem e combaterem o preconceito e a discriminação em suas diversas manifestações, incluindo aquelas naturalizadas, como em forma de “piadas” (racismo recreativo).
Neste sentido, os funcionários da Pague Menos são capacitados com trilhas formativas específicas sobre DEI, que envolve temas como comunicação inclusiva e comunicação não-violenta.
Em todos os casos, é importante que as ações de letramento sejam contínuas, tanto para agregar mais pessoas quanto para para oxigenar o debate. Numa interseccional entre gênero e gerações, por que não falar sobre menopausa dentro da empresa?
Já em relação a indicadores, a Pague Menos se destaca pela transparência. O programa de diversidade é gerido pela área de Sustentabilidade, que possui uma página exclusiva no site da companhia com os status dos compromissos de ESG.
A página integra diferentes quesitos, como Ética e Integridade, Satisfação do Cliente, Resultado Financeiro e Ecoeficiência.
As metas de DEI fazem parte do quesito Promoção dos Direitos Humanos. Entre elas, estão: ter 50% de mulheres em cargos de gestão e alta gestão até 2025 — em 2024 elas já ocupavam 40% das posições — e ter 30% dos cargos de liderança ocupados por pessoas pretas até 2030 — o índice estava em 13% até o ano passado.
“Aprendemos, ao longo do caminho, que diversidade não se faz com fórmulas prontas”, diz Rosi. “É preciso escutar, adaptar e ter coragem para mudar estruturas”.
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