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Novos negócios para um novo mundo com Monique Evelle

22/04/2020

Diante da pandemia, empresária diz que iniciativas empreendedoras da periferia serão mais valorizadas e dá orientações para não surtar no trabalho

Que figura você imagina quando lê a palavra “empreendedor”? Muito provavelmente, é a de um homem branco, jovem, cisgênero, com diploma de pós-graduação no exterior, que já visitou o Vale do Silício e, recentemente, encontrou um investidor anjo que o ajudará a tirar sua inovadora ideia do papel.

Se a sua projeção foi similar a descrição acima, surpresa: te enganaram. O empreendedor brasileiro do mundo real sempre foi preto, pobre e periférico. Quem afirma é Monique Evelle, jornalista e empresária baiana entrevistada da vez da Emerge Mag.

Para Monique, o que hoje a maioria chama de empreendedorismo, a periferia sempre chamou de sobrevivência.

“A sociedade nunca conseguiu enxergar as tecnologias sociais e empreendedoras concebidas nas periferias. Espero que daqui para frente enxerguem, porque as empresas unicórnios são a falsa promessa do século XXI”

Com o agravamento da crise financeira e das condições de trabalho – potencializadas, agora, pela pandemia causada pelo coronavírus -, o desemprego tende a crescer e inflar o número atual de 12,3 milhões de pessoas sem trabalho, de acordo com o IBGE. 

Mesmo que a Covid-19 seja contida dentro dos próximos meses, o legado da pandemia viverá conosco por anos, talvez décadas. O vírus colocou em xeque a sociedade hiperconsumista e neoliberal e transformou a maneira como vivemos, nos movemos, construímos, aprendemos e nos conectamos.

Para Monique, não há como os negócios seguirem em frente como se isso nunca tivesse acontecido.

“É preciso analisar se a única coisa que você sabe fazer hoje é suficiente para a continuidade do seu negócio, se é melhor se adaptar ou, ainda, focar em novos mercados”, afirma.

Monique tem aplicado a reflexão em seus próprios negócios. Por dez anos, a Desabafo Social foi uma organização com foco em educação e comunicação em Direitos Humanos, produzindo conteúdo sobre questões como raça, gênero e empreendedorismo. Porém, desde março, a empresa deu uma guinada. Passou a estimular a criação de soluções de problemas sociais e a remunerar ideias criativas através de micropagamentos com o aplicativo Itsnoon. E vem mais coisa por aí. A empresária conta que, em breve, lançará uma plataforma de educação e, em seguida, ferramentas de acesso a microcrédito para pessoas negativadas, com ou sem CNPJ, a baixíssimas taxas de juros.

É por ações como essas que Monique Evelle foi considerada uma das 30 jovens com menos de 30 anos mais promissoras do país pela Forbes. Ela também integra a lista Top Voices do Linkedin, que elenca os profissionais que mais se destacaram no ano e que os profissionais deveriam parar para ouvir.

Mas Monique Evelle é humana, lutando como todo mundo para se adaptar aos novos paradigmas. “Tenho buscado equilíbrio e não sofro quando não consigo seguir o planejado”, diz ela. “Tem dias que acordo mais otimista e tem outros que nem tanto.”

Na condução das nossas vidas, não há resposta simples e muito menos fórmulas mágicas. Mas a entrevista a seguir, realizada pela repórter Karol Pinheiro, reflete exatamente um dos propósitos da Emerge: compartilhar pensamentos de pessoas inspiradoras, na esperança de que as reflexões propostas ajudem os leitores, minimamente, a descobrirem o mundo a sua volta e, assim, a si mesmos. Leia os principais trechos da entrevista respondida por e-mail.

Emerge Mag: Contra a melancolia do isolamento, a produtividade tem sido colocada como solução. Temos uma série de cursos on-line e videoaulas sendo oferecida gratuitamente por exemplo. Qual tem sido a sua estratégia para não surtar nessa quarentena?

Monique Evelle: Eu não tenho acompanhando lives, nem feito cursos online e está tudo bem. A sociedade que construímos até aqui exige que sejamos produtivos o tempo todo, demanda esforços para além dos nossos limites e acredita que o sucesso virá do nosso esgotamento mental e físico. Por isso não sofro por não acompanhar. Tenho seguido uma rotina: antes das 10h, cuido de mim; entre 10h e 12h, inicio os trabalhos; entre 12h e 13:30, dou uma pausa para fazer algum exercício, seja físico ou de leitura, e almoço; depois volto a trabalhar e fico até, no máximo, 18h30. Dessa forma tenho buscado equilíbrio e também não tenho sofrido quando não consigo seguir o planejado. Tem dias que acordo mais otimista e tem outros que nem tanto.

Uma frase muito dita por você é que empreendedorismo para periferia é sobrevivência. O Brasil tinha 12 milhões de desempregados antes da pandemia começar e, ao que tudo indica, esse está subindo. Em tempos de crise, muitos desempregados se tornam empreendedores. Acredita que as demais partes da pirâmide estão entendendo esse contexto de sobrevivência?

Espero que sim, até porque agora, com a pandemia, muitas fraturas sociais foram expostas e colocadas à prova. De um lado, há grandes startups consideradas unicórnios e inovadoras – ou seja, com valor de mercado de 1 bilhão de dólares ou mais –, demitindo funcionários. Do outro lado, temos as periferias do Brasil tentando garantir a existência e o direito à vida, tentando movimentar a economia local, mesmo diante desse cenário. A diferença é que a sociedade nunca conseguiu enxergar as tecnologias sociais e empreendedoras concebidas nas periferias. Espero que, daqui para frente, enxergue porque as empresas unicórnios são a falsa promessa do século XXI.

É muito comum vermos em livros a descrição das características de um empreendedor de sucesso: autoconfiança, liderança, aptidão para um determinado tipo de negócio… Geralmente, uma lista de predicados que não tem fim e que assusta quem, eventualmente, não tenha uma dessas características. O empreendedorismo é algo que pode ser aprendido?

Existem algumas situações sociais que nos impedem de fazer muitas coisas, inclusive, empreender ou deixar florescer esse chamado espírito empreendedor.

Quando estamos falando de mulheres que também são negras, sabemos que a sociedade construiu um território nada acolhedor para esse público. Logo, ausência de autoestima, abundância da síndrome do impostor, ausência de ferramentas – e por aí vai – impedem que pessoas se movimentem com a agilidade que poderiam se movimentar.

Os velhos costumes, como machismo e racismo, por exemplo, muitas vezes paralisam as pessoas.

LEIA TAMBÉM: “As pessoas negras sabem que seus direitos estão sendo violados”

Termos como “disrupção” e “inovação” viraram moda e costuam ser usados de forma genérica. Na sua concepção, o que é inovação?

Inovação é criar algo que funcione. Não adianta subirmos em palco de grandes eventos para falar das nossas vitórias, projetos e negócios e as coisas não funcionarem. Sempre falei que visibilidade é algo que seduz e ao mesmo tempo paralisa as pessoas. Podemos nos acostumar a sair em revistas, jornais e sites e esquecermos de colocar as coisas em pé, fazer rodar, fazer a conta fechar. E muita gente se prende a lógica da visibilidade e esquece de construir uma jornada de credibilidade e de dinheiro. Fiz um capítulo no meu livro [Empreendedorismo Feminino: Olhar Estratégico sem Romantismo, 2019] falando só sobre isso. Entre mudar o mundo e ganhar dinheiro, sempre escolhi os dois – não um ou outro. O que estamos vivendo hoje nos faz enxergar quem são os empreendedores inovadores que realmente vão conseguir continuar atuando no mercado, vão conseguir fazer seus trabalhos sem chegar à falência total.

Inovação não é um discurso roteirizado no palco do TEDx. Inovação é criar algo que realmente funcione para as pessoas, para sociedade e para o mercado.

Uma ideia comumente vendida a respeito do empreendedorismo é a de ser feliz fazendo o que ama, em outras palavras, trabalhar com propósito. O quanto há de verdade e o quanto há de mentira nessas concepções?

Empreender é trabalhar. Então, por mais que eu ame fazer o que faço hoje e desde sempre, é um trabalho. E, como todo trabalho, preciso equilibrar carga horária e fazer outras coisas diariamente para não chegar no esgotamento mental e físico. Logo, é possível ser feliz fazendo o que ama considerando isso. Mas em nenhuma hipótese, irei verbalizar para determinado público que precisa sustentar família e outras pessoas, que é importante, acima de tudo, escolher o que ama ao invés do dinheiro. O importante varia de acordo com o contexto. Talvez, a gente esteja entendendo isso agora em meio a pandemia do coronavírus.

Consumidores estão de olho em como as marcas lidam com a crise do coronavírus. Existe uma percepção geral de que as empresas devem fornecer soluções significativas, não apenas vender coisas. Como deve pensar o pequeno e médio empreendedor diante da crise?

MONIQUE: AGORA É O MOMENTO DE ANALISAR O SEU NEGÓCIO, SE ADAPTAR E COGITAR FOCAR EM OUTROS MERCADOS (Foto: Diva Nassar)

Os micros e pequenos empreendedores precisam ter em mente que foram responsáveis por mais de 70% das vagas de emprego em 2019 – número muito maior do que os das médias e grandes empresas. Ao mesmo tempo, a taxa de desemprego vai aumentar a partir de agora. Entendendo isso, é o momento de sair da lógica de vender produtos, vender projetos, vender coisas e criar mecanismos para prestação de serviços. E isso envolve analisar se a única coisa que você sabe fazer hoje, realmente é o suficiente para continuar fazendo seu negócio existir, se é melhor se adaptar ou começar a apostar em novos mercados.

Existem modelos de negócios que são mais sustentáveis que outros neste momento. Estamos falando da demanda super alta por educação à distância e de serviços de autocuidado e entretenimento, que devem se manter em ao longo prazo. Talvez, pessoas que trabalha com a área de beleza, que teve uma queda absurda nas últimas semanas, tenham uma demanda alta pós pandemia. Por outro lado, quem empreende com eventos, turismo e afins pode demorar para sentir a demanda aumentar. Então, precisamos analisar cenários, criar cenários e ver o que faz sentido neste momento.

O coronavírus tem se mostrado um grande acelerador de movimentos que já vinham acontecendo. Fez com que parte das pessoas parasse para questionar seu estilo de vida e consumo. Considera que o capitalismo está em crise? Como a crise do capitalismo impacta o empreendedorismo?

O capitalismo sempre esteve em crise. Em um mundo onde os bilionários têm mais riqueza do que 60% da população mundial, é um sinal de crise porque não tem equilíbrio. A crise do capitalismo é sim, de certa forma, a crise do empreendedorismo também. Mas é a crise do empreendedorismo das empresas unicórnios que, mesmo com investimento de mais de 1 bilhão de dólares, não conseguem garantir empregabilidade das pessoas e, na primeira crise, demitem mais da metade do quadro dos funcionários. Isso é o resultado de quem coloca dinheiro de forma concentrada em determinado lugar e não faz esse dinheiro girar. Os investidores poderiam sentir menos dor de cabeça se não apostassem todas suas fichas em um único lugar.

Vi em algumas entrevistas e podcasts você comentar sobre sua experiência com sintomas de esgotamento profissional. Que lições você tirou desse período da sua vida e como as usa junto a sua equipe?

Não quero mais passar por esgotamento e por isso adotei hábitos que me deixam melhor e mais equilibrada. Antes da pandemia, tanto na Sharp quanto no Desabafo Social, sempre pontuamos a importância de o time não ultrapassar os horários de trabalho, mesmo com alguns profissionais querendo ultrapassar horários e afins, mas isso não é permitido e nem vai ser uma prática.

Agora, durante a pandemia, tivemos que criar algumas estratégias para garantir que as pessoas fiquem bem e, ao mesmo tempo, que as empresas não parem. Sabíamos que não era só fazer trabalho de casa, porque, assim como eu, tem dias que muita gente acorda bem e outros não tanto. Então, estamos equilibrando esses altos e baixos, freando demandas, perguntando para cada pessoa do time qual melhor prazo, auxiliando com indicações de psicólogos e terapeutas, construindo um fluxo de encontro semanal, mesmo que on-line, para trocarmos figurinhas sobre qualquer coisa que não seja trabalho – e isso dentro da carga horária de trabalho. Enfim, são algumas formas de aliviar tensões e criar esse ponto de confiança com toda equipe.

Como as empresas em que você é sócia, como a Desabafo Social e a Sharp, estão atuando em época pandemia? Quais são as iniciativas vigentes relacionadas a pandemia?

Pelo Desabafo Social, estamos desde o dia 17 de março a criar desafios sociais e remunerando as ideias mais criativas através de micropagamentos. Já são mais de R$ 160 mil reais distribuídos para mais de 2 mil pessoas com valores entre R$ 60 e R$ 200 reais. Então, tem pessoas que compraram alimentos, itens de higiene, pagaram suas contas, compraram ou assinaram algum produto e serviço e por aí vai. Colocamos o dinheiro nas mãos das pessoas para que elas decidam o que realmente é urgente – não somos nós que vamos decidir. Agora, estamos indo para fase dois que será focada em auxiliar os empreendedores. Lançaremos, em breve, nossa plataforma de educação e, em seguida, o acesso ao microcrédito para pessoas negativadas, com ou sem CNPJ, com baixíssimas taxas e afins. E estamos aceitando parcerias de empresas e organizações desde já.

Pela Sharp, além dos cuidados que estamos tendo com nosso time neste momento, vamos lançar uma novidade em breve, mas não é o momento de falar.

Em março, o iFood recebeu 175 mil inscrições de candidatos interessados em atuar como entregadores da plataforma ante 85 mil pedidos em fevereiro. A “uberização” ou a “aplicativização” do trabalho é vista por alguns como uma forma de empreendedorismo. Como você vê esse processo de uberização do trabalho?

É a estratégia perfeita construída por essa sociedade do desempenho. Esgotamos e precarizamos um lado da sociedade e fazemos a manutenção das desigualdades.

É desesperador quando grandes empresas não se responsabilizam pelas pessoas que estão prestando serviços para elas – ainda mais quando são entregadores. O processo de uberização do trabalho é o processo de gameficação das vidas, onde você ganha mais moedas se conseguir entregar algo em determinado tempo.

Logo, o que vemos são pessoas ultrapassando leis de trânsito, colocando sua vida e a do outro em risco, tentando bater meta em menos de 24h e prejudicando também a saúde mental para ganhar um valor que não é justo. Só consigo visualizar esse processo como gameficação das nossas vidas.

Com a evolução da tecnologia, estima-se que as crianças de hoje terão empregos que ainda não existem. Além disso, muitos empregos de hoje serão feitos por robôs. Como sobreviver ao darwinismo digital, reconhecer e criar habilidades para os empregos do futuro?

Essa é uma resposta complexa, que levaria horas e dias para explicar. Mas, na história da humanidade, tivemos momentos assim, em que surgiram novos empregos e outros se tornaram obsoletos. A diferença é que agora o processo está cada vez mais acelerado. E, pensando nas crianças de hoje e no momento que estamos vivendo, espero que as escolas que ainda utilizam o formato do século XVIII, com professores que pararam no século XX e estudantes do século XXI, entendam que esse é o momento limite para reinvenção da aprendizagem e do ambiente escolar. O digital não precisa ser inimigo e sim um complemento.

IMAGEM DE ABERTURA: Mari Cobra

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