Pesquisar
Close this search box.
Pesquisar
Close this search box.

O cinema com causa de Alice Riff

05/06/2019

Dona de sua própria produtora de documentários e diretora do premiado Meu Corpo é Político, a cineasta bebe na fonte de debates atuais da sociedade para fazer filmes. Seu último longa narra a história real de uma eleição estudantil numa escola pública de São Paulo

Alice Riff é uma cineasta curiosa e observadora do mundo. Ela se inspira nas relações pessoais que presencia no dia a dia e, utilizando uma câmera de vídeo, busca uma forma de provocar reflexões a respeito de assuntos urgentes.

Seu cinema não reforça estereótipos e nem tenta colocar as pessoas em caixinhas. Ao ver seus filmes, o que sentimos é o compromisso com causas sociais e a verdade – a sua e a nossa verdade.

Por exemplo, seu filme de estreia, o documentário “Meu Corpo é Político” (2017), aborda o cotidiano de quatro militantes LGBT, entre elas a cantora Linn da Quebrada, que vivem na periferia de São Paulo.

A obra apresenta o contexto social em que as personagens estão inseridas e a forma como agem nas ruas. O filme ganhou prêmios no Festival de Cinema LGBT de Torino, na Itália, e no Festival Internacional de Cinema de Curitiba.

ALICE RIFF: GRADUADA EM CINEMA E CIÊNCIAS SOCIAIS, SEUS FILMES DEBATEM TEMAS ATUAIS DA SOCIEDADE

Agora, seu mais recente trabalho promete tanto estardalhaço quanto o primeiro.

Lançado em março de 2019 – com exibições anteriores no Festival do Rio e no alemão Dok Leipzig –, o documentário “Eleições” discute a democracia ao apresentar a história real de uma eleição de um grêmio estudantil numa escola pública de São Paulo.

Protagonizado por jovens, que se dividem em quatro chapas na disputa da Escola Estadual Dr. Alarico Silveira, na zona oeste de São Paulo, o filme aborda diferentes visões da sociedade brasileira pelos olhos de adolescentes.

Muitos fatores são similares aos que encontramos nos pleitos políticos nacionais. Há chapas feministas, pró-diversidade, estilo zuera e conservadora. Mas, no caso do filme, existe a intenção de melhorias para a população, mesmo que às vezes de forma ingênua ou atabalhoada.

Ao longo da disputa, as chapas desenvolvem cada vez mais interesse pela política e, assim, formam argumentos, debatem propostas, descobrem o que podem ou não reivindicar e lidam com trâmites burocráticos – um exemplo de práticas democráticas de uma República.

No entanto, nem tudo são flores (para não dizer que não falamos delas). Existem estudantes que picham a escola para fazer propaganda e outros que rasgam cédulas de votação. Há também a revelação de que uma das chapas é fortemente influenciada por conceitos religiosos neopentecostais (o velho ditado “a arte imita a vida”).

Focado no público jovem, o filme é educativo e empático, uma vez que outros estudantes veem na tela as mesmas situações que encontram nas suas escolas do mundo real.

ELEIÇÕES: FILME MOSTRA NA TELA O QUE ESTUDANTES VIVEM NO DIA A DIA DE SUAS ESCOLAS (Foto: Divulgação)

Sem julgar o mérito, o longo é um ótimo exemplo de como funciona uma escola, a educação, a cidadania e a adolescência. É o cinema da Alice:

“Não faz sentido uma escola não formar cabeças que reflitam e questionem. Eu quero que os jovens gostem de eleições assim como gostam do show da Beyoncé”

LEIA TAMBÉM: A naturalidade da cineasta Julia Katharine

PAUTAS ANTIGAS

Reivindicações por melhorias no ambiente escolar e liberdade de expressão não é uma pauta isolada de poucos jovens.

Assim como demonstrado no filme de Alice, fazer política nas escolas engloba desde ações tidas como “triviais”, como poder tocar funk na hora do intervalo, até exigir que os estudantes sejam consultados em projetos de lei que afetarão diretamente suas vidas.

Para exemplificar, nem precisamos resgatar histórias clássicas como a do 30º Congresso da UNE, de 1968, em que mais de mil estudantes foram presos durante a Ditadura Militar.

Em 2015, por exemplo, um movimento coordenado por estudantes secundaristas se opôs à uma proposta do governo estadual de São Paulo de “reorganização do ensino”.

A iniciativa pretendia fechar 92 escolas e transferir 300 mil alunos – com muitos sendo enviados para unidades de ensino longe de suas casas (#passelivre).

MAKING OFF: EQUIPE DE ELEIÇÕES FILMOU ALUNOS DENTRO DE ESCOLA PÚBLICA

Uma a uma, mais de 200 escolas estaduais foram ocupadas por estudantes.

Em muitas, foi implementado um sistema de autogestão em que os próprios estudantes cuidavam da limpeza e refeições, além da organização de oficinas culturais e aulas abertas.

O movimento se espalhou para além dos muros das escolas e chegou às ruas – o que incluiu também repressão com tiro, porrada e bomba.

As paralisações pipocaram em diferentes pontos do estado e atingiram outras regiões.

Em Goiás, os alunos ocuparam as escolas contra um projeto de privatização do ensino.

Com apoio dos familiares, artistas, intelectuais e entidades da sociedade civil, o pleito ganhou corpo e forçou o chuchu Geraldo Alckmin, na época governador de São Paulo, a revogar o decreto da reorganização.

POLÍTICA NAS ESCOLAS

A escola é sim local de discussão e os estudantes devem aprender sobre diferentes correntes políticas, econômicas e sociais. Escola é lugar para fomentar a multiplicidade de pensamentos.

A reflexão que fica é: a quem interessa um jovem desinformado? Aos donos do poder, claro. E eles estão nos mais altos cargos políticos, corporativos, militares e midiáticos.

Assim como o filme “Eleições”, é importante outras medidas que façam com que o jovem tenha interesse em política. Um bom caso é o “Política na Escola”, um programa de extensão da Universidade de Brasília, que utiliza da educação horizontal (aquela em que não há hierarquia baseada em poder) para construir conhecimento em escolas de periferia do Distrito Federal.

Criado em 2004, o projeto contempla temas como representação, democracia e participação. As crianças são estimuladas a pensar em política em várias ordens e a enxergá-la no seu cotidiano. Alice comenta:

“É importante que o professor possa ter a liberdade para fazer os alunos verem sentido no que estão aprendendo. O interesse pela política se ensina, assim como a democracia só funciona com a colaboração de todos”

No entanto, em 2019, o que temos visto são iniciativas contrárias a esse pensamento. Em fevereiro, logo no primeiro dia de trabalho dos deputados, foi apresentado na Câmara o projeto de lei 246/19, que consiste num “novo” texto do Escola Sem Partido e é inspirado no movimento conservador homônimo.

Em vez de se preocupar com fatos como a queda de 16% para 11% do número de alunos em tempo integral no ensino fundamental em 2018, o PL obriga as escolas a permitir que alunos gravem professores durante as aulas.

Também menciona, em seu segundo artigo, que o “Poder público não se imiscuirá no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permitirá qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero”.

O texto genérico indica um possível cerceamento a qualquer tipo de educação escolar voltada a temas como diversidade e sexualidade em prol de práticas antidiscriminatórias e contra abuso sexual, por exemplo.

VEJA TAMBÉM: A estética política de Diva Green

A CINEASTA CIENTISTA SOCIAL

Um dos motivos que cria a ponte entre os filmes de Alice com causas da sociedade é a formação da cineasta. Ela é graduada em cinema e ciências sociais, respectivamente pela Fundação Armando Álvares Penteado e Universidade de São Paulo.

Juventude e direitos humanos são temas em alta em sua filmografia, repleta de prêmios.

CANTORA LINN DA QUEBRADA EM MEU CORPO É POLÍTICO: FILME DE ESTREIA DE ALICE COMO DIRETORA GANHOU DOIS PRÊMIOS

Ela já dirigiu oito curtas-metragens documentais, entre eles “Orquestra Invisível Let’s Dance” (2016; Prêmio Aquisição TV Cultura), “100% Boliviano, Mano” (2013; Melhor Filme Educativo no Festival Entretodos de Direitos Humanos); Cidade Improvisada (2012; Melhor Filme no Festival Visões Periféricas) e Diálogos (2012, Melhor Filme no Festival Cinesul).

Alice também assinou a produção executiva no longa documental “Histórias que nosso cinema (não) contava”, dirigido por Fernanda Pessoa, e em “Como fotografei os Yanomamis”, de Otavio Cury, que aborda a relação entre enfermeiros e indígenas numa aldeia.

Em 2015, ela fundou a Studio Riff, uma produtora audiovisual brasileira com foco em documentário. E assim ela segue com uma câmera na mão, uma ideia na cabeça e um bom debate na mira.

IMAGENS: João Grijo, com edição de Rogério Henrique.

Quem escreveu

Picture of Redação Emerge Mag

Redação Emerge Mag

Revista digital de cultura, direitos humanos e economia criativa interseccional e estúdio criativo de Diversidade, Equidade, Inclusão e Impacto Social.

NEWSLETTER EMERGE MAG

Os principais conteúdos, debates e assuntos de cultura, direitos humanos e economia criativa interseccional no seu e-mail. Envio quinzenal, às quartas-feiras.